A
justiça está no centro de toda discussão ética. Viver eticamente é viver
conforme a justiça. A justiça ilumina a subjetividade humana e a ordem
jurídico-social. Neste sentido, “ser ético é ser justo”. Aristóteles e São Tomás
de Aquino, pensadores da Antiguidade Clássica e da Idade Média, respetivamente,
afirmam que a justiça é o centro animador de todas as virtudes. Immanuel Kant,
pensador da modernidade, considerou a justiça como o princípio orientador da
sociedade política.
“A
justiça como centro animador de todas a virtudes” e “a justiça como princípio
orientador da sociedade política” são postulados com duplo alcance da ética
como justiça: representar um conjunto de convicções ligadas à qualidade de ser
humano, enquanto indivíduo; e outras do ser humano, enquanto membro de uma
comunidade.
Assim,
a sociedade é uma comunidade de comunidades. E a faculdade de escolher (o livre
arbítrio ou livre escolha) implica uma escolha (mesmo por omissão) do indivíduo
na comunidade. Por exemplo, a omissão de socorro é ato legalmente punível e moralmente
reprovável. Assim, o homem está sempre em escolha, mesmo na omissão. Por isso,
pode construir-se ou perder-se nas suas decisões, dividido entre razão e
sensibilidade, entre paixão e inteligência, entre sabedoria prática e desejo
descomprometido. A escolha individual pode chocar com a vontade de outro
indivíduo ou com a vontade coletiva. Por isso, a ética, como justiça,
administra as encruzilhadas da vida e dos conflitos da liberdade: aponta os
caminhos da construção pessoal e coletiva; e adverte quanto à ameaça de autodestruição.
Outro
problema com que se depara a ética, cuja resolução se dá pela justiça, ocorre
quanto à disponibilidade dos bens, que são coisas úteis, numeráveis e limitadas.
Como os bens são limitados quantitativamente e são ilimitados os interesses e o
apetite de cada cidadão, a ética revela-se (segundo John Rawls) como esforço de
superação de conflitos sociais nascidos da disputa dos bens materiais e
culturais. Assim a ética, como justiça, é a mediadora para superar os conflitos
de interesses atinentes ao homem e à sociedade e para dimensionar os comportamentos
pessoais e coletivos, no sentido da construção de uma vida feliz, numa
sociedade justa.
Para
definir sociedade justa, Rawls sustenta, que toda a pessoa deve ter o direito
ao sistema mais largo de liberdades de bases iguais para todos, compatível com
um sistema similar para todos os outros, devendo as desigualdades sociais e económicas
ser tais que, nos limites do justo princípio de poupança, se garanta a maior
vantagem possível aos menos favorecidos e sejam ligadas a tarefas e posições
acessíveis a todos, em função da justa igualdade de oportunidades.
O
princípio da liberdade e dos limites dos direitos humanos fundamentais garante
os direitos de participação política, de opinião, de reunião, de consciência,
de religião, etc. É absolutamente prioritário e sempre inegociável, pois a
liberdade nunca pode ser negociada por ofertas materiais e sociais. As
limitações da liberdade são determinadas sóe pela própria liberdade, para
ordenar a coexistência livre. Já o princípio da diferença refere-se aos
interesses materiais, à repartição equilibrada dos bens primários, dos
encargos, dos deveres e das vantagens sociais.
***
Deparamo-nos com questões de justiça e de ética, no
quotidiano, nos debates mais diversos e, principalmente, nos tribunais. Um
julgamento justo pode não ter decorrido de um processo ético, e um trâmite
processual ético pode não levar a sentença justa. E esse diário enfrentamento
pela busca da justiça e da ética é crucial, porque, em todas as normas e na sua
aplicação, justiça e ética devem andar entrelaçadas. Rigor da lei sem ética e
justiça gera despotismo.
São a ética e a justiça que impõem o avanço da
ciência, possibilitando a busca por melhoria na qualidade de vida da sociedade.
Alguns sustentam que tal avanço não pode proceder de modo desenfreado, devendo ser
protegidos os direitos pessoais. Todavia, levanta-se a questão: “É justo a
ciência trabalhar apenas mediante o consentimento e a autorização do indivíduo?”
De facto, pode o indivíduo fechar-se, egoisticamente, no capricho ou no receio.
É reconhecida a importância da ética aplicada a ponto
de muitos cursos superiores, com vista à inclusão dos alunos no mundo do trabalho,
inscreverem no elenco curricular a “Ética Aplicada”, ou a “Ética Prática”, entre
outras denominações. Ora, ao lado da ética, deve ser observada e aplicada a
justiça. Na verdade, é difícil, por exemplo, tratar a existência e o uso do
banco de dados genéticos, sem avaliar o que é justo, num caso concreto. Discutir
a justiça é tarefa da Ética, enquanto ciência que estuda as normas morais, para
detetar o certo e o errado, o justo e o injusto.
Na obra “Teoria Pura do Direito”, Hans Kelsen trabalha
os conceitos de Direito e Ciência Jurídica, ligando-os aos de Moral e Ética. Assim,
as normas do Direito são o objeto da ciência jurídica, ao passo que as normas
morais são o objeto da Ética. Já na obra “O problema da Justiça”, sustenta que
“a justiça de um indivíduo é a justiça da sua conduta social”, consistindo esta
em corresponder a uma norma que constitui o valor justiça”. Nestes termos, se o juiz
aplica, no caso concreto, a norma do direito positivo, a decisão é correta. Os
valores como ‘justiça e injustiça’ são afastados do aplicador da lei, sendo só
necessário aplicar a norma positiva. Assim, ao adaptarem-se à Teoria Pura do
Direito, os juízes afastam das decisões a ética e a justiça, limitando-se a
observar as normas impostas e desvalorizando os fundamentos. Ora, sabe-se da importância
dos costumes e das diversidades entre os indivíduos. Porém, Kelsen ignora a
existência de valores – em especial, a justiça – e julga-os desnecessários, já
que, para existir um direito puro, importa isolá-lo.
Enfim, Kelsen desconsidera aspetos intrinsecamente
importantes à criação do Direito. Em certos estudos do Direito, não basta
aplicar a lei, mas devem ser considerados os aspetos morais do indivíduo.
Assim, a criação de legislação é importante, mas não podem ser afrontados os
direitos pessoais do ser humano e só a ele pertinentes.
Por sua vez, Kant, defende que o
valor do caráter moral estará em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.
Dessa forma, a ação não encontra o valor no objetivo almejado, mas no
“princípio do querer”, que prescinde de todos “os objetos da faculdade de
desejar”. Nestes termos, o conceito
de justiça está conexo com o agir, de forma a conviver com a liberdade dos
outros. Portanto, agir assim seria atuar de forma justa. Ao invés, quando o
outro age de modo a restringir a minha liberdade, é injusto; e, se fico
impedido de praticar a liberdade, sofro injustiça. Assim, o conceito de justiça
está ligado ao de liberdade: todos os atos que nos impedem de exercer a
liberdade são injustos; e tudo o que nos torna livres é justo.
A justiça é, pois, a busca pela liberdade, pela felicidade
e pela igualdade, o que implica o princípio da liberdade como critério de
validade das leis jurídicas. Assim, a coação exercida contra uma ação justa do
outro é obstáculo à liberdade. Assim, a liberdade é conditio sine qua non do Direito e, a justiça, baseada no princípio
da liberdade, é impedir que a ação de uma pessoa invada a liberdade de outra,
pela coação. Neste sentido, o ideal da justiça é a liberdade: “Uma ação é justa,
quando, por ela ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio de um pode
continuar com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal”, disse
Kant.
Aristóteles concebe a justiça como o que devemos uns aos
outros, consistindo na equidade, pela qual é satisfeita a justa e definitiva exigência
do outro (nem mais, nem menos). A justiça respeita os outros, já que ninguém
deve justiça a si próprio. Aristóteles distingue a justiça distributiva, que
promove a repartição equitativa dos bens e as honras na cidade, da justiça coercitiva,
que pune as vantagens obtidas pela força e com o desrespeito do que é
devido. A ética aristotélica visa a felicidade, definida como atividade da alma,
segundo a perfeita virtude. Assim, a felicidade é o fim definitivo de todas as nossas
ações, o bem que buscamos por causa dele e não de outro ulterior. Assim,
devemos buscar os bens que nos tornam felizes.
O que torna feliz
uma pessoa não torna, necessariamente, feliz a outra. Por isso, Aristóteles destaca
os bens que ajudam na conquista da felicidade: os bens corporais, que auxiliam
na busca do prazer corporal; e os bens externos ou a riqueza composta pelas coisas
que fazem o ser humano sentir-se melhor. A falta de certa quantidade de riqueza
é obstáculo para viver bem e para atingir a felicidade, tal como a privação de
certa quantidade de liberdade. Ao vincar “certa quantidade”, Aristóteles
remete-nos para a virtude, que está presente, quando o ser humano aprende e consegue viver no “meio-termo”, devendo
ser sempre cultivada.
Ao lado dos bens referidos, Aristóteles apresenta os
bens da alma, os bens psicológicos, ligados à mente. Em todos, deve haver um
usufruto moderado (meio-termo). Ao fazer-se isso, cria-se o hábito. A todos os
bons hábitos, Aristóteles chama ‘virtude’. Portanto, se o ser humano possui
bons hábitos, decidiu de maneira correta, o que o torna virtuoso. Assim, quem busca
a felicidade só a adquire, se possuir virtudes. Essa busca é a razão da
existência do ser humano e só pode ser encontrada numa sociedade justa,
entendendo-se a justiça como virtude adquirida pelo exercício do hábito. Assim,
a justiça é a disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer e a
desejar o que é justo. Logo, o homem justo é o que respeita a lei e a
igualdade; e injusto é o que se posiciona contrário à lei e de forma não
igualitária.
Platão afirma que aquele que pudesse cometer a
injustiça e fosse um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem
sofrer injustiças, pois seria loucura, porque o homem age pela ambição, mas,
por convenção, é forçado a respeitar a igualdade. Sócrates sustenta que a
justiça se refere não só ao indivíduo, mas à cidade bem ordenada. E Rousseau, conhecendo
o íntimo das pessoas, procuraria tornar os homens felizes. Sendo uma espécie de
Deus, que tudo vê, sem ser visto, e julga os corações dos homens, Rousseau
empenharia este poder mágico em prol da sociedade e libertar-se-ia da
desconfiança em relação aos homens, pois poderia conhecer os outros e o que escondem
nas suas mentiras ou as suas virtudes. Ao pensar na harmonia da convivência em
sociedade, preocupa-se com o íntimo das pessoas: “A lei não se grava nem no
mármore nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos.”
Para Platão, se existe uma sociedade criada com
educação de qualidade, os indivíduos saberão o que é certo e o que é errado,
justo ou injusto, sendo desnecessária a criação de leis para regular o comércio
entre os povos. É a educação que prioritariamente forma o bom hábito, e dela
deve ocupar-se o Estado, sem delegar poderes. Platão considera a educação
trabalho de constituição ontológica do homem, à luz dos valores do Estado
ideal, cujo modelo é eidético, é forma intemporal e imutável. E Rousseau afirma
que a educação é importante para o indivíduo e para a sociedade, já que é
condição necessária para a vida pública. Na obra, “O Contrato Social”, dispõe
que o homem, que nasceu livre, evoluiu para um estado de liberdade
convencional, fruto de um pacto social e, portanto, a liberdade, não se
originaria da natureza, mas seria oriunda do pacto.
Para Rousseau, por um contrato social, assente na
vontade geral, o que se possibilitou foi “uma forma de associação que defenda e
proteja, contra toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado e pela
qual cada um, unindo-se a todos, apenas obedeça a si próprio e se conserve tão
livre como antes”. Assim, há que proteger os direitos fundamentais do indivíduo
para a sociedade estar protegida. Criar regras e regulamentações torna o
cidadão seguro, em relação à defesa dos direitos pessoais. Porém, Rawls vincula
a ideia de justiça à sensibilidade moral, na qual os juízos ordinários são
formulados de acordo com os nossos princípios, onde uma teoria moral próspera carateriza
o nosso senso de moralidade, por meio de um conjunto de princípios morais,
revelando, pelo equilíbrio reflexivo, os elementos essenciais das nossas
capacidades morais.
A sociedade só é democrática se, operando os princípios
da justiça, é definível como bem-ordenada, isto é, quando, numa cultura
política efetivamente pública, subsiste a compreensão de sociedade como sistema
equitativo de cooperação entre pessoas reconhecidamente livres e iguais.
Afirmar que a sociedade é bem-ordenada implica o conceito duma sociedade na
qual cada um reconhece que os demais também reconhecem a mesma conceção política
de justiça e de justiça política. É, pois, correto dizer que a justiça é a
primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é para os sistemas
de pensamento.
***
Concluindo, parece correto equilibrar os direitos
pessoais com o interesse comum. Porém, é conveniente não invocar as convicções
morais e religiosas para sustentar o discurso sobre justiça e direitos. Pessoas
com pleno poder de raciocínio, em debates livres, não têm de chegar todas à
mesma conclusão. Há um direito positivo, baseado nas leis, e um direito
natural, assumido pelas pessoas e pela memória coletiva. A imparcialidade postula
que se separe a identidade cidadã das convicções morais. Para a busca da justiça,
há que pôr de lado as crenças e aprendizagens morais e religiosas e ater-nos
aos argumentos que se espera, razoavelmente, que os cidadãos aceitem. Os juízes
não podem invocar noções pessoais de moralidade, ideais e virtudes da
moralidade geral ou visões religiosas ou filosóficas deles próprios ou de
outras pessoas. O dever de todos é respeitar a liberdade de todos, e não impor códigos
morais. O bem comum deve estar em primeiro plano, pois a liberdade de todos é
imprescindível para a vida em sociedade.
2024.08.17 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário