A 15 de agosto, praticamente toda a Itália está em pausa, por força do
Ferragosto. As persianas das lojas, dos bares e dos restaurantes, nas grandes
cidades, são fechadas a cadeado e ornadas com os letreiros cor de laranja “Chiuso per vacanze” (“fechado para férias”); em todos os
bairros, exceto nos mais populares, entre os turistas, só se encontram as
proverbiais ervas daninhas; e as cidades turísticas e praianas ficam sobrelotadas.
É a mesma alegria vivida pelos brasileiros e por outros povos, ao chegar o
mês de dezembro. Só querem saber de férias, de sol, de praia e de churrasco. É o
que acontece com os Italianos em agosto, pelo mesmo motivo: o auge do verão. Só
que, na Itália, há um dia mágico para o começo da diversão, o 15 de agosto.
Por isso, já na véspera as pessoas se reúnem nas praias, acendem fogueiras e
esperam pela meia-noite, um pouco à semelhança do Ano Novo nas praias de alguns
países, com direito a queima de fogos, a banhos de mar e a muita
confraternização.
É o feriado “sagrado” que os Italianos dizem remontar aos velhos tempos
romanos: celebração que o imperador Augusto (é do nome do Imperador Octavius
Caesar Augustus, que provém o nome de agosto atribuído ao mês sextilis: o ano
tinha 10 meses e julho era o sexto) concedia aos Romanos, incluindo os
escravos, como recompensa por uma época de trabalho árduo nos campos.
“Ferragosto” é termo com origem na expressão latina “Feriae Augusti” (“descanso
de Augusto”). Era o nome dos festivais dedicados ao imperador Augusto, que
os introduziu no ano 18 a.C. e que juntava várias outras comemorações,
como as antigas festas romanas “Vinalia Rustica” ou “Consualia”, em homenagem
ao deus da agricultura Conso, e que caíam no mesmo mês, para celebrarem a vindima e o fim
de longo período de intenso trabalho agrícola.
Porém,
de acordo com Richard Overy, autor de Uma História da Guerra em 100
Batalhas, o feriado de Ferragosto foi introduzido por Caius Caesar Octavianus,
o futuro Augusto, após a sua vitória sobre Marco António, na Batalha de Ácio, a
2 de setembro do ano 31 a.C.
As Feriae Augusti, além da função de propaganda, vincularam os
vários festivais de agosto, para proporcionarem um período de descanso mais
longo, os Augustalia, que se sentiu necessário, após o árduo
trabalho das semanas anteriores, e que se repetia por volta de 12 de outubro.
Durante
as celebrações, eram organizadas corridas de cavalos, em todo o Império, e
libertadas dos seus deveres de trabalho e decoradas com flores bestas
(incluindo bois, burros e mulas).
Essas
tradições antigas ainda estão vivas, agora, praticamente inalteradas na forma e
no nível de participação durante o Palio dell’Assunta, a 16 de agosto,
em Siena.
Na
verdade, o termo “Palio” vem do latino “pallium”, uma peça de tecido precioso que era o prémio usual
dado aos vencedores das corridas de cavalos na Roma Antiga. Durante a festa, os
trabalhadores cumprimentavam os seus patrões, que lhes davam, em troca, uma
gorjeta. O costume tornou-se tão fortemente enraizado que, na Renascença, se
tornou obrigatório nos Estados Pontifícios.
***
Atualmente, em Itália, festejar o Ferragosto, passando o dia inteiro na
praia ou a preguiçar à sombra é “um direito humano”. Todavia, a 15 de agosto,
alguns políticos italianos decidem passar o dia na prisão, por sua própria
vontade e em nome dos direitos humanos dos menos afortunados.
De acordo com o costume estabelecido por Marco Pannella, falecido político,
ativista e jornalista, muitos políticos têm abdicado do seu dia de folga para
chamarem a atenção para as condições adversas das prisões, algo que o presidente
Sergio Mattarella, há apenas algumas semanas, disse ser “indecoroso para um
país civilizado”. Porém, neste ano, o deputado liberal Matteo Renzi, o
presidente da Câmara de Roma, Roberto Gualtieri, e os colegas de Pannella do
seu Partido Radical estiveram entre os que passaram algum tempo com os
reclusos.
Renzi regressou, no dia 15, à sua cidade natal, Firenze, para visitar a
superlotada prisão de Sollicciano, onde metade dos cerca de 500 reclusos estão
detidos, a aguardar a sentença final. “Instalações como Sollicciano devem ser
demolidas e reconstruídas de raiz”, afirmou o ex-primeiro-ministro, num post no
X, “para garantir condições humanas
aos detidos”, não poupando as palavras nas críticas ao governo de Giorgia
Meloni, que tentou, recentemente, aliviar alguns dos problemas, prometendo
construir novas prisões, aumentar o número de pessoal prisional e simplificar o
processo de libertação antecipada, entre outras coisas.
Contudo, a lei aprovada no início de agosto criminalizou mais uma série de
delitos, incluindo a infame medida antirrave (RAVE – Rock
And Voice Eletronic), que penaliza com até seis anos de prisão os organizadores de festas ou o
que a lei denomina “invasão de terrenos ou edifícios com perigo para a saúde
pública ou para a segurança pública”.
O RAVE é um evento festivo
dançante de longa duração (normalmente acima de 12 horas) dominado por música eletrónica,
que ocorre longe dos centros urbanos, onde disc jockeys (DJ) e artistas plásticos,
visuais e performáticos se apresentam a interagir com o público.
O líder de extrema-direita da Liga, Matteo Salvini, foi um feroz defensor
da lei antirrave, quando foi aprovada no final de 2022. A ocupação arbitrária
de propriedade destinada ao domicílio de outrem, como é referida na lei, pode levar,
agora, alguém para a prisão.
Quanto ao pessoal adicional, a nova medida, segundo a imprensa nacional, prevê
a contratação de apenas mil novos guardas, enquanto o sindicato dos funcionários
penitenciários pediu 24 mil. Entretanto, a pena de prisão para certos crimes,
maioritariamente financeiros, foi reduzida ou mesmo suprimida. Renzi, por seu
turno, classificou a medida como “uma fofura” e disse que “uma política que não
lida com as dificuldades, [com] a saúde mental, [com] as dependências e, claro,
[com] as prisões (em si) não é uma política séria”.
“Deixo Sollicciano com as imagens de algumas crianças mais novas do que os
meus filhos gravadas no meu coração. […] Sei que não é agradável ter o vosso
Ferragosto perturbado pelas minhas reflexões. Mas penso que foi justo e correto
estar hoje em Sollicciano, considerou Renzi.
A plataforma jurídica “Justicia insieme” (Justiça em Conjunto) também
criticou a nova lei, afirmando que, “perante o clima de tensão que se instalou
nas instituições penais […], era legítimo esperar soluções mais corajosas e, sobretudo,
de aplicação imediata”.
Entretanto, o desespero nas prisões italianas continua a aumentar,
resultando numa série de suicídios em todo o país. De acordo com o provedor de
Justiça das prisões italianas, em julho, cerca de 50 reclusos suicidaram-se,
desde o início do ano – ou seja, mais 16 do que no mesmo período de 2023 –
número contestado pelos sindicatos das prisões que afirmam serem 51.
Entre os que se suicidaram, 19, ou seja, mais de um terço, estavam a
aguardar julgamento e 23, ou seja, quase metade, eram estrangeiros, um número
invulgarmente elevado, se tivermos em conta que o número de estrangeiros em
Itália é de cerca de 5% da população total.
A crise de saúde mental tornou-se tão evidente que Sergio Mattarella disse
que as prisões italianas estavam a tornar-se “um lugar onde toda a esperança
está perdida”. E a nova lei pode significar “mais pobres na prisão e menos
gestores, que não vão para a prisão de qualquer forma”, disse Francesco Conte,
jornalista e fundador da Mama Termini, associação de ajuda aos sem-abrigo de
Roma, observando: “Há dois grandes problemas em geral: o primeiro é que os
julgamentos em Itália demoram muito tempo; o segundo é que muitas pessoas que
estão na prisão não têm residência, por isso não podem estar em prisão
domiciliária, o que faz com que muitos estrangeiros sejam presos por pequenos
crimes. Entretanto, os Italianos com residência, incluindo aqueles que
cometeram crimes mais graves, estão normalmente em prisão domiciliária.”
“Depois, há o desespero por não serem ajudados por advogados. Esse é outro
grande problema, muitos advogados ‘gratuitos’ (atribuídos aos arguidos) não
fazem bem o seu trabalho. Depois, claro, há os maus tratos, por parte dos
colegas reclusos e da polícia”, acrescentou Conte.
Residem, atualmente, nas prisões italianas cerca de 61 mil reclusos, quando
a capacidade oficial é de cerca de 51 mil, com uma taxa de sobrelotação de
130%, segundo a agência noticiosa Ansa.
Enquanto o governo de Meloni se empenha em exportar os requerentes de asilo
para a Albânia, onde está a terminar a construção de dois centros de detenção (outra
decisão muito criticada pelos grupos de defesa dos direitos humanos), os que
vieram do estrangeiro, incluindo os refugiados, passam por momentos
particularmente difíceis, quando se encontram do outro lado da lei.
A maior parte deles mal podia esperar para se tornarem residentes legais e
iguais. No entanto, só encontram aparência de igualdade quando estão atrás das
grades – pesada ironia que traz desilusão e tristeza, com pouca esperança de
que haja algo de bom. “Conheço duas pessoas na prisão, devido ao meu trabalho
com a Mama Termini. Uma delas foi condenada a quatro anos de prisão por
perturbação e é um tipo muito pacífico e gentil. Quando pessoas como ele são
condenadas a penas pesadas por algo menor, é fácil entrar em desespero”,
recorda Conte, sustentando: “A prisão não é para toda a gente, embora algumas
pessoas não gostem muito dela, sobretudo porque estão num sítio mau, de
qualquer maneira. Outro amigo disse uma vez: ‘o único sítio onde trabalhei
legalmente foi na prisão’.”
***
Nos primeiros tempos, a festa era comemorada no dia 1 de agosto, mas, por
influência da Igreja Católica, a data foi transferida para o dia 15, para
coincidir com a Assunção da Virgem Maria, na tentativa de imprimir cunho
religioso a uma comemoração até então inteiramente pagã.
A
tradição popular de fazer viagens durante a Ferragosto surgiu no regime
fascista. Na segunda metade da década de 1920, em meados de agosto, o regime de
Mussolini organizou centenas de
viagens populares, por meio das organizações fascistas de lazer e recreação de
várias corporações e da instalação dos “Trens do Povo de Ferragosto”, isto é, comboios
de férias, disponíveis a preços com desconto (bilhetes de baixíssimo custo, para
este período de férias). A iniciativa deu oportunidade a classes sociais menos
favorecidas de visitarem cidades italianas ou de chegarem a estâncias
litorâneas (praias) e de montanha. A oferta estava limitada a 13, 14 e 15 de
agosto e compreendia duas opções: a “Viagem de um dia”, num raio de 50 a 100 quilómetros,
e a “Viagem de três dias”, num raio de cerca de 100 a 200 quilómetros.
Não foram incluídas comidas
e bebidas, pelo que os Italianos associam os almoços para viagem e os churrascos
a este dia. Por metonímia, é também o período de férias de verão em
meados de agosto, que pode ser um fim de semana prolongado (ponte di
ferragosto ) ou a maior parte de agosto. Até
2010, 90% das empresas, lojas e indústrias fechavam, mas, com a crescente
influência de outros países não católicos, e o facto de fechar a indústria de
um país por um mês inteiro significou perda incrível de dinheiro e trabalho em
atraso, a maioria das empresas agora fecha por cerca de duas semanas, obrigando
os trabalhadores a tirar férias impostas, como por ocasião do 25 de dezembro.
Em 2022, por força das restrições impostas pela pandemia da covid-19,
muitos serviços e procissões religiosos foram cancelados ou limitados. As
boates continuavam fechadas e os eventos comemorativos ou culturais tinham um
limite de 200 pessoas, em locais fechados, e mil, em ambientes abertos.
Além disso, não houve
fogueiras na maioria das praias. A proibição atingia, principalmente, a
noite de 14 para 15 de agosto. Alguns prefeitos proibiram o transporte de
carvão e de bebidas alcoólicas. Assim, podia comprar-se bebida, mas não transportá-la.
E nada de churrasco. Porém, com ou sem fogueiras, o Ferragosto continua a
ser uma das festas mais tradicionais da Itália e o feriado mais esperado pelo
povo italiano.
Enquanto a Igreja Católica cristianizou um festival pagão, sob a égide da Assunção
de Maria, que mergulha na tradição bíblica, na ressurreição de Cristo e na sua
ascensão, o fascismo serviu-se da religião para se tornar simpático e poderoso,
opressivo e repressivo anti-humano e anticristão, o que a Igreja tem dificuldade
em criticar, ao invés do que faz com as esquerdas políticas.
2024.08.17 – Louro de
Carvalho
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