À semelhança
do que se passa no Mundo, mais de dois
terços dos Portugueses desenvolvem algum tipo de desporto ou atividade física.
Ginásios, ciclovias, ecovias e trilhos de caminhadas ganharam praticantes
regulares. E vê-se gente de todas as idades a caminhar ao fim de semana, em
contraste com a diminuição da prática religiosa dominical. Os Jogos Olímpicos
Paris 2024, apresentaram, ao mais alto nível, a diversidade de modalidades e o
resultado de treino e superação que leva anos a preparar. Assim, é pertinente que
relação se pode estabelecer entre o campo religioso e espiritual e o do
exercício físico e do desporto.
A esta reflexão vem o contributo de Alessandra Maigre com a tese
de doutoramento em Teologia, que defendeu em 2023, na Universidade de Friburgo,
na Suíça, intitulada “Les défis de la spirtualité dans le sport: limite,
jeu et identité” [Os desafios da espiritualidade no desporto: limite, jogo e
identidade], em vias de publicação. Com base na investigação, sustenta que o
importante não é tanto saber se no desporto há elementos de natureza religiosa,
mas que “o desporto é um facto cultural que tem fins religiosos”. E explora
essa ótica a partir de três ângulos: o corpo (como pode a
visão cristã do corpo apoiar uma visão mais ampla do desporto?); a vocação (o que é o atleta chamado a fazer: como se
enquadra a vocação desportiva na vocação humana?); e o jogo (o desporto, se visa o desempenho, tem a dimensão
do jogo, a não negligenciar, na vida cristã).
A par da dimensão física e da saúde mental, Maigre
preocupa-se com a “saúde espiritual”.
Em entrevista
publicada a 1 de agosto, pelo site
católico catch.ch, ao ser-lhe
perguntado como se conjuga a dimensão competitiva do desporto com a dimensão da
fragilidade e dos falhanços, diz que “a priori, não tem
lugar aí”, que temos de atuar e ser os melhores. Mas, se o atleta se define só
por esta função, o que lhe resta quando não puder praticar desporto, devido a
uma lesão? Há uma questão de identidade. Como integrar a fragilidade na
totalidade da vida da pessoa? Se ela não se define só pelo desporto, pela lesão,
o que mais é? A preparação dos atletas deve integrar este questionamento e a
concepção holística da pessoa. E isto implica “um acompanhamento espiritual a
montante”.
E, pegando no facto de a tese ter como objetivo delinear
“fundamentos teológicos para uma ação pastoral em ambientes desportivos na
Suíça”, Maigre considera que esta é uma área a desenvolver e a definir no
âmbito de capelanias desportivas, as quais, mais do que o desempenho do atleta,
podem dar um contributo relevante da dimensão da formação humana.
A teóloga,
que foi, até há pouco, jogadora de uma equipa de nível nacional de hóquei no
gelo, que ascendeu à primeira divisão, mas que, pelas exigências daí
decorrentes, passou a jogar numa da terceira divisão, acumula, entre outras
atividades, com as funções de capelã do exército. Quando lhe perguntam se não
estaria disponível para exercer tal função num clube desportivo, alude às
dificuldades que o desafio comportaria e ao estado fragmentário e pontual do
que chama de pastoral do desporto no seu país. E adianta que, inspirada na
introdução da Gaudium et Spes, os valores do desporto se aproximam
dos valores evangélicos: perseverança, rigor de treino e, nos desportos
coletivos, solidariedade e atenção ao próximo.
***
A ideia,
pertinente, não é nova. Ao invés, tem desencadeado várias iniciativas eclesiais.
Ainda este ano, de 16 a 18 de maio, o Dicastério para a Cultura e Educação da
Santa Sé organizou a “Conferência Internacional sobre Desporto e
Espiritualidade”, sob o tema com o tema “Pôr a vida em jogo”, para trazer
contributos para o debate sobre uma pastoral do desporto.
O português cónego
Paulo Franco, presidente do Conselho de Gerência do Grupo Renascença Multimédia,
que foi um dos participantes, aplaude os “bons exemplos” de pastoral do
desporto apresentados, que destacam a necessidade de “inclusão e de tolerância”,
e considera que, mais do que a relação entre a Igreja e o desporto, a discussão se tem centrado na dignidade da
vida humana.
“Por um
lado, procurámos olhar para [...] como deve a Igreja atuar e ter a sua
participação neste ambiente desportivo. Por outro lado, focámo-nos nas questões
relacionadas com a dimensão científica do desporto e até que ponto isso põe em
causa o humanismo, a dignidade humana e a ética subjacente a isso”, explanou,
vincando que a Igreja “não quer ter uma
presença residual nestes temas”, pelo que se associou à embaixada de
França junto da Santa Sé para a organização desta convenção, que decorreu a poucos
meses da edição dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.
Paulo Franco
releva que têm sido apresentados “bons exemplos das pastorais do desporto em
vários países”, muitos deles já
relacionados com a competição olímpica e com a necessidade de primar pelos princípios
da inclusão e da tolerância. E aplaude a partilha de práticas como
“introdução de capelães em federações e clubes desportivos ou a valorização do
desporto na pastoral escolar e paroquial”, por permitirem uma mudança no
trabalho feito pela Igreja.
“[Podemos]
utilizar o desporto também para a evangelização e a dimensão missionária da
Igreja. O desporto torna-se o ponto de partida. Nós estamos habituados ao contrário.
Temos atividades pastorais com momentos desportivos. Mas agora começam a existir
outras experiências: [...] ter uma atividade de missão [...] a partir da
promoção do desporto”, rematou.
A
16 de maio, o Papa, em mensagem aos
participantes, reconheceu que o desporto assume um papel cada vez mais
importante na sociedade, sendo uma forma de aproveitar o tempo livre, “que
desperta interesses e oportunidades de encontro, aproxima, cria comunidade,
dinamiza a vida de forma ordenada e promove sonhos. E defendeu uma visão multifacetada, onde a disciplina e a temperança dos
atletas e o espírito competitivo saudável têm sido valorizados como “metáforas
da vida cristã virtuosa”. E acrescentou que, ainda hoje, “esta metáfora pode
ser eficaz para todos os que, de algum modo, desejam e se esforçam para agradar
a Deus e ser seus amigos”.
Francisco reconhece
que o desporto assume cada vez mais importante papel na sociedade, sendo uma
forma de aproveitar o tempo livre “que desperta interesses e oportunidades de
encontro, aproxima, cria comunidade, dinamiza a vida de forma ordenada e
promove sonhos, especialmente nas gerações mais jovens”. Por isso, é necessária
a “pastoral do desporto e da educação nos valores genuínos da competição,
purificados do egoísmo e dos interesses materiais”.
O Pontífice
quer que a Igreja reflita sobre a experiência desportiva e a valorize
adequadamente na ação evangelizadora, “alertando para os riscos de
desumanização e corrupção, promovendo-a como local privilegiado de encontro e
fraternidade entre os povos”. Assim, espera que a Conferência pense o “desporto
para além do desporto”, com visão multifacetada, para aprofundar os seus
valores éticos, sociais, culturais, políticos e espirituais.
A
6 de maio, o cardeal Tolentino
de Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, sublinhou,
perante os jornalistas, a ligação entre desporto e espiritualidade e disse que
o “Pôr a vida em jogo” é um convite que
o Papa lança ao mundo do desporto e não só. Por outro lado, recordou o que o Papa disse numa entrevista,
em 2021, a dois jornalistas do Gazzetta
dello Sport: “Para mim,
treinar – e também um Papa deve estar sempre a treinar-se! – é pedir todos os
dias a Deus: “O que queres que eu faça, o que queres da minha vida?”
Para o
purpurado, a figura de Jesus “tem muito a dar ao desporto” e a Igreja “tem
muito a aprender com o fenómeno desportivo”. Neste contexto, a Conferência quer
dar voz a quem está na Igreja e a pessoas externas à Igreja que nos ajudarão,
com as suas reflexões”, disse Tolentino. É “um belíssimo exercício de
‘sinodalidade desportiva’, neste tempo de escuta tão polifónica. E, assim,
arriscamos uma cultura do encontro, como sublinha o Papa”.
Entre os
vários participantes nesta Conferência Internacional, contou-se Arturo Mariani,
ex-atleta paralímpico de futebol, cuja
história começou antes de nascer, quando os pais receberam a notícia de que
nasceria só com uma perna e com outras malformações. “A sua
decisão de acolher a minha vida, tal como era, sem reservas nem
arrependimentos, lançou a base da minha relação com a entrega, a confiança, com
a fé num desígnio superior”, testemunhou, assegurando: “Não somos só matéria,
nem só bilhete de identidade ou, como no meu caso, não somos apenas um
diagnóstico que nos é dado, somos alguma coisa mais.” E revelou aos
jornalistas: “Ao longo do tempo, questionei-me se eu seria apenas Arturo – o
que tem só uma perna, Arturo, o deficiente. E de que modo a minha condição
limitaria as minhas possibilidades desportivas e até de toda a minha vida.”
Com olhar
positivo sobre a vida, Arturo foi um dos intervenientes na Conferência que,
entre outros, contou um padre português de Braga, Marco Gil, ligado ao Clericus
Cup, um campeonato de futebol do Vaticano disputado por sacerdotes e
seminaristas.
A Conferência contou com cerca de 200 participantes, para dar uma visão
poliédrica sobre o fenómeno desportivo, olhando-o na vertente pedagógica,
filosófica, política, antropológica, ética e teológica, para discernir o que o
desporto tem a dizer à Igreja e o que a Igreja tem a dizer ao desporto, relação
que não é recente, mas que acompanha a História da Igreja, desde as cartas de
São Paulo, os escritos dos Padres da Igreja, os decretos dos concílios
medievais ou os pronunciamentos pontifícios a partir do século XX. Das experiências
partilhadas, como “o desporto na paróquia”, “a escola católica e o desporto”,
“a figura do capelão desportivo”, “a presença da Igreja nos Jogos Olímpicos e
Paralímpicos”, o presbítero bracarense falou da experiência da “Clericus Cup
Europeia” e da “Clericus Cup Portugal”.
Na sua intervenção, referiu a importância destes eventos na vida
presbiteral, pelo encontro com presbíteros de outras dioceses e países, pelo
enriquecimento cultural e pastoral que se desencadeia e pela fraternidade
presbiteral intergeracional que se proporciona. Para tal, partilhou inúmeras
histórias e detalhes, salientando a importância de se valorizar, cada vez mais,
este ramo da pastoral, e compartilhou como o desporto influenciou o seu
percurso biográfico, enquanto disciplina de autoconhecimento, aprendizagem da
arte da derrota e experiência do perdão entre adversários.
O programa incluiu uma sessão de cinema
desportivo, a exibição de arte performativa, uma exposição sobre a História do
Desporto e uma prova desportiva de cariz solidário.
***
A 2 de junho de 2018, realizou-se, em Fátima, na Casa “Domus
Carmeli”, a 14.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, focada na temática
do Desporto, debatendo as suas virtudes e riscos. O tema refletiu as intervenções
de Francisco e de alguns dos antecessores sobre o Desporto, o que levou o
Conselho Pontifício da Cultura a criar um departamento exclusivo.
O evento centrou-se na interpretação antropológica e nas conexões
socioculturais do Desporto, desde a poética e a ética do corpo e do espírito,
aos poderes e desvios da irradiação social (negócio, corrupção, alienação,
etc.). Entre outras pessoas, marcaram presença Ismael Teixeira, o “iron priest” (padre de ferro), assim conhecido
por ser o primeiro padre a completar mais de 220 km de ultramaratona, o
escritor Gonçalo M. Tavares e o treinador de râguebi Tomaz Morais. Os conferencistas refletiram
sobre a hipótese de “atualização da perspetiva cristã do ideal humanista “mens sana in corpore sano”
(mente sã em corpo são).
O encontro, aberto a crentes e não crentes, teve como público-alvo
agentes da Pastoral da Cultura, professores, educadores e responsáveis pela
juventude de paróquias, organismos e movimentos, dirigentes e treinadores de
clubes desportivos a nível federativo e escolar.
***
Entre as iniciativas do Vaticano contam-se a
primeira conferência global, sobre fé e desporto, a organização de competições
internacionais de atletismo, de futebol de salão e de críquete, a participação
de delegações da Santa Sé nos Jogos Olímpicos e a criação de equipas
desportivas.
O
Papa São Pio X foi promotor dos Jogos Olímpicos, em 1908, os quais não podendo realizar-se
em Roma, devido à grave crise económica, foram celebrados em Londres, diz Pierre
de Coubertin, instigador dos Jogos modernos, que pediu ajuda à Santa Sé, e foi
o Papa que o apoiou. Quem o afirma é Antonella Stelitano no livro “Pio X e o
Desporto”, notando, que no início do século XX menos de 1% da população
praticava desporto. E Pio X via o desporto como forma de educar os jovens, de modo
que, estando juntos, seguissem regras e respeitassem o adversário, e como forma
de levar a que as pessoas estivessem juntas de modo simples, unidas sem
problemas de raça, religião ou ideias políticas diferentes. Aliás, dada a
dificuldade em se compreender, nessa altura, a ginástica, o próprio Papa terá
dito a um cardeal: “Muito bem! Se não entendem que é algo que se pode fazer,
pôr-me-ei eu próprio a fazer ginástica, diante de todos, e assim verão que, se
o Papa a pratica, todos a podem praticar.” É claro que os Jogos Olímpicos não
se reduzem ao lema olímpico: citius, altius, fortius (mais
rápido, mais alto, mais forte). Lá estão outros interesses que não os
desportivos (aliás, é o que se passa nos outros desportos, concretamente no futebol),
como os negócios e a corrupção, o perigo da idolatria e imensas frustrações e
humilhações. Seja como for, nunca foi esquecido o lema: “mens sana in corpore
sano” e os Papas recentes não deixaram de vincar a importância e o valor do
desporto.
Pio
XII, “o amigo dos desportistas” e o primeiro a instalar um ginásio no Vaticano,
perguntava e respondia: “Qual é […] o sentido e o objetivo do ‘desporto’, sã e
cristãmente entendido, senão cultivar a dignidade e a harmonia do corpo humano,
desenvolver a saúde, o vigor, a agilidade e a graça do mesmo?” E acrescentava: “O
desporto, adequadamente dirigido, desenvolve o caráter, faz do ser humano uma
pessoa valorosa, que perde com generosidade e vence sem presunção; afina os sentidos,
ilumina a mente e forja uma vontade de ferro para perseverar. Não é só
desenvolvimento físico. O desporto corretamente entendido tem em conta o homem
todo.”
O
desporto tem a capacidade de contribuir para a formação integral e para a
fraternidade universal e a paz. São João XXIII notou que o desporto “constitui
um dos fenómenos mais vivos e interessantes da cultura contemporânea”. E o
Concílio Vaticano II recomendou: “Empreguem-se os descansos oportunamente para
distração do ânimo e para consolidar a saúde do espírito e do corpo, […] com
exercícios e manifestações desportivas que ajudam a conservar o equilíbrio
espiritual e a estabelecer relações fraternas entre os homens de todas as
classes, nações e raças.”
São
Paulo VI dirigiu-se aos atletas das XIX Olimpíadas: “Procedeis de tantos
países, representais ambientes e culturas, mas une-vos um ideal idêntico: ligar
todos os homens com a amizade, a compreensão, a estima recíproca. Isto prova
que a vossa meta final é mais elevada: a paz universal.” O desporto simboliza a
vida: “A vida é um esforço, a vida é um risco, a vida é uma corrida, a vida é
uma esperança para a meta final, uma meta que transcende o palco da experiência
comum e que a alma entrevê e a religião nos apresenta.”
São
João Paulo II, o papa dos desportistas, disse-lhes: “Sede cônscios da vossa
responsabilidade. Não apenas o campeão no estádio, também o homem com toda a sua
pessoa deve converter-se em modelo para milhões de jovens, que têm necessidade
de líderes, e não de ídolos.” E exortou: “Que o desporto
esteja sempre ao serviço do homem e não homem ao serviço do desporto.” E Bento
XVI afirmou que, para o cristão, a chama olímpica “remete para o Verbo
encarnado, Luz do mundo que ilumina o homem em todas as dimensões, incluindo a
desportiva”.
Aprofunde-se
a temática e instaure-se uma pastoral coerente e orgânica!
2024.08.10 – Louro
de Carvalho
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