segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Há 10 anos, o Banco de Portugal aplicou a medida de resolução ao BES

 

O enunciado em epígrafe é um eufemismo a significar que o Banco de Portugal (BdP), por imposição do Banco Central Europeu (BCE), acabou com o Banco Espírito Santo (BES).

Na noite de 3 de agosto, domingo (além de se acabarem licenciaturas ao domingo, também se encerram bancos), o governador do BdP, comunicava ao país, através das televisões: “O conselho de administração do Banco de Portugal deliberou, hoje, aplicar ao Banco Espírito Santo S.A. uma medida de resolução. A generalidade da atividade e do património do BES é transferida para um banco novo, denominado Novo Banco, devidamente capitalizado e expurgado de ativos tóxicos. Fica inequivocamente afastada a hipótese de haver perdas para os depositantes.”

No dia seguinte, abriu portas o Novo Banco (NB), com a injeção de capital de cinco mil milhões de euros, com a imprescindível ajuda dos contribuintes de outros bancos. Era o banco bom, que resultara da resolução do BES, ficando para trás o banco mau (Banco Espírito Santo), até à liquidação, para o qual foram transferidos os ativos problemáticos, incluindo acionistas e credores subordinados que perderam todo o dinheiro. É um facto que emoldura um dos capítulos mais trágicos da História económica e financeira de Portugal. Um dos seus maiores bancos teve de ser resgatado, face ao risco de o colapso provocar disrupção em todo o sistema financeiro e danos incalculáveis na vida das famílias e empresas portuguesas.

A resolução imposta pelo BCE estriba-se na legislação portuguesa sobre a matéria, que apresenta dois aspetos diferentes: um trabalho premeditado e um trabalho feito sobre os joelhos.

O primeiro tem a ver com o Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, pelo qual o governo, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 58/2011, de 28 novembro, confere poderes ao BdP para intervir em instituições sujeitas à sua supervisão, em situações de desequilíbrio financeiro, procede à criação do Fundo de Resolução (FdR) e do procedimento pré-judicial de liquidação para as instituições sujeitas à supervisão do BdP, alterando, ainda, outros aspetos conexos com o processo de liquidação. Esta precaução legislativa mostra que a medida de resolução seria aplicada a qualquer banco ou instituição similar que deixasse de ter condições para funcionar. É contrapartida ao resgaste económico e financeiro a que o país se submeteu.

O segundo aspeto está espelhado no Decreto-Lei n.º 114-A/2014, de 1 de agosto, que altera o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, procedendo a alterações ao regime previsto no Título VIII relativo à aplicação de medidas de resolução, e transpondo, parcialmente, a Diretiva n.º 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento. O diploma, que entrou em vigor no dia seguinte à sua publicação, foi aprovado em Conselho de Ministros de 31 de julho, foi promulgado também a 31 de julho e referendado e publicado a 1 de agosto. Assim, entrou em vigor num sábado.

Surge, depois, o Decreto-Lei n.º 114-B/2014, de 4 de agosto, que altera o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, procedendo a alterações ao regime previsto no Título VIII relativo à aplicação de medidas de resolução. Ou seja, afina o anterior. E é um diploma que entrou em vigor a 5 de agosto, o dia seguinte ao da publicação, mas que foi aprovado em Conselho de Ministros de 3 de agosto e promulgado e referendado no mesmo dia. Quer dizer, o BdP deliberou a resolução do BES, quando não estavam em vigor todos os instrumentos legislativos pertinentes. Ninguém ou quase ninguém apontou esta irregularidade.

A deliberação do conselho de administração do BdP afastava “a hipótese de haver perdas para os depositantes”; e, mais tarde, o BdP assegurava não haver prejuízo para os contribuintes.

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Dez anos depois, nada ficou como dantes, mas o colapso do banco e de um dos mais importantes grupos económicos, o Grupo Espírito Santo (GES), a que o BES estava exposto, continua a suscitar perguntas que merecem resposta, como: Ricardo Salgado será condenado? Aprendemos a lição? E os contribuintes serão reembolsados?”

Na véspera de o BES apresentar os resultados, o BdP já tinha ideia da dimensão da catástrofe financeira iminente. A 29 de julho, o supervisor enviou carta ao banco para que apresentasse, no prazo de dois dias, o plano de reforço de capital devidamente calendarizado e com compromissos firmes de investidores. Quando o BES, a 30 de julho, anunciou prejuízos de 3,5 milhões de euros, os resultados não apanharam o governador Carlos Costa de surpresa, mas as perdas desferiram profundo golpe no capital do banco, o ponto de o deixarem semimorto. De súbito, era preciso dinheiro e com urgência, para repor os rácios de solvabilidade que desceram para 5%, abaixo do limite mínimo de 7%. E não havia tempo para o banco – que o Presidente da República afirmara de boa saúde e em fase de capitalização (mil milhões de euros, perdidos em dois meses) – enfrentar uma crise de desconfiança sem precedentes e a perder depósitos a ritmo galopante.

Nesse dia, Vítor Bento, presidente do BES, foi à procura de soluções: primeiro, junto do BdP e, depois, do governo. Queria saber da disponibilidade dos contribuintes em ajudar o banco, caso não encontrasse investidores privados interessados em injetar dinheiro. Porém, Vítor Bento não ouviu a resposta que queria da ministra das Finanças. Assim, percebeu que a capitalização pública era incerta, complexa e morosa, para a urgência do banco. A solução passaria pelos investidores privados, como grandes fundos de investimento ou outros bancos, mas não era em dois dias que levaria a cabo tal empreitada. E foi disso que informou o supervisor, ao final da tarde do dia 31, apesar de haver potenciais interessados.

Esse dia não terminaria sem Carlos Costa receber a notícia mais indesejada. Após a hora de jantar, o telemóvel toca. Era do BCE. Dizem-lhe para se preparar: no dia seguinte, o conselho de governadores discutiria a suspensão do estatuto do BES como contraparte do banco central, com efeito imediato. Assim teria de devolver, de imediato, a totalidade do seu crédito junto dos outros bancos centrais, no montante de 10 mil milhões de euros. Seria, o inexorável fim do BES.

Carlos Costa tinha menos de 15 horas e uma noite para decidir o que fazer. Rapidamente, chegou à decisão, porque a alternativa seria desastrosa e com consequências imprevisíveis. “O que estava no prato da balança era o risco de termos uma disrupção financeira muito grave no sistema, com perda de confiança dos depositantes, quebras de financiamento; ou do outro lado, fazer o que fizemos”, contou o ex-governador no Parlamento.

Carlos Costa tinha de preparar um plano de resolução capaz de convencer os pares a alterar o que parecia decidido. Pelas 23 horas, seguiu um e-mail para o BCE. O plano de resolução do BES estava preso por um detalhe, o BCE tinha de aceitar o adiamento da retirada do estatuto de contraparte para depois do fim de semana. Apesar das reservas levantadas por dois governadores, Carlos Costa saiu da reunião com o que pretendia. O futuro do BES estava nas mãos do BdP, que tinha o fim de semana para executar uma operação inédita naquelas dimensões.

Apenas um grupo muito restrito de pessoas sabia o que ia acontecer ao BES. Nem o presidente do banco, nem o governo, nem os outros reguladores estavam a par das decisões de Frankfurt. Só mais tarde foram informados por Carlos Costa. Todavia, após o almoço do dia 1 de agosto, o BES começa a registar um comportamento estranho na bolsa, com muitas ações a trocarem de mãos e a preço cada vez mais baixo, bem como a saída de dinheiros depositados.

Pouco depois das 15h, a pressão vendedora sobre as ações intensificou-se. O BES caiu a pique na bolsa para 10 cêntimos por ação. Soaram os alarmes no BdP. A informação de que o supervisor se preparava para resolver o BES já chegara a muitos ouvidos. Temendo fuga de informação, Carlos Costa ligou a Carlos Tavares, presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que estava de férias, a pedir, com urgência, para suspender a negociação das ações do BES. Quem comprou ações do BES naquela tarde a pensar que tinha feito o negócio do século, mal sabia que, passados três dias, valeriam zero.

No BdP, Carlos Costa reuniu os seus pares de deliberação, para executar a operação da resolução do BES em pouco mais de 48 horas e que iria sacrificar os acionistas e os credores. Foram destacados cerca de 60 trabalhadores. Para muitos, foi um agosto sem as férias de verão. À noite, Carlos Costa comunicou a Vítor Bento que estava em curso a intervenção do BdP no BES: o banco bom seria um banco de transição, uma instituição a prazo e a viver em cima da corda bamba, sem uma vida normal como os outros. Foi o que os advogados do banco explicaram a 1 de agosto. Vítor Bento e os outros dois administradores, João Moreira Rato e José Honório, não queriam continuar, quando as postas reabrissem no dia 4, mas o governador convenceu-os a ficar.

No sábado à tarde, as equipas do BES juntaram-se aos técnicos do BdP, no sentido de ajudarem com a prestação de informação e de agilizarem o processo, desde o inventário do património até à separação dos ativos e passivos bons e maus do banco.

Do lado do supervisor, havia que gerir a informação com as outras autoridades. Só no sábado é que a CMVM e o Instituto de Seguros de Portugal foram informados da medida de resolução. Porém, o governo, a Comissão Europeia e o BCE foram mantidos a par de tudo que foi ocorrendo.

Às 20 horas de domingo, enquanto os Portugueses jantavam, o BdP aprovou a resolução, em reunião extraordinária – uma formalidade do que acontecera nas 72 horas anteriores. E, cerca de três horas depois, às 22h45, Carlos Costa informou o país da decisão, através de longo discurso.

No processo de insolvência do BES, foram reconhecidos cinco mil credores que reclamam créditos num valor que ultrapassa os cinco mil milhões de euros. Mas o dinheiro que sobrará da massa insolvente, cerca de 200 milhões, foi para o FdR. O NB resistiu à pressão das regras de Bruxelas, mas a muito custo. Além dos cinco mil milhões injetados em 2014, teve de pedir mais 3,4 milhões de euros ao FdR, para limpar o legado de Ricardo Salgado, nomeadamente, ruinosos empréstimos que provocaram perdas milionárias.

Após ter comprado o NB, em 2017, por mil milhões de euros, a Lone Star vislumbrava um bom encaixe financeiro com a venda da instituição estabilizada. Porém, o FdR deve 7,5 milhões de euros ao Estado e aos bancos, por conta dos resgates ao BES e, depois, ao Banif, em 2015. Quanto a Ricardo Salgado, o grande visado nos processos conexos com a queda do BES (era o dono disto tudo), está a contas com a Justiça. Foi condenado pelo BdP e CMVM, em alguns processos, mas o principal, que o acusa de 65 crimes, só agora parece encaminhado para o desfecho.

***

Face a tudo isto, é preciso desmistificar algumas asserções correntes, contrapondo-lhes outras mais justas. À cabeça, vem a de que a resolução de um banco não surgiu de súbito, nem por inspiração divina; e é de duvidosa validade a afirmação de que não havia alternativa.

O BES, na sua arrogância de que não precisava de ajuda europeia, viu-se na necessidade, imposta pelo BdP, de capitalização, perdendo os resultados em dois meses.

O NB não absorveu dinheiros dos contribuintes. O FdR é constituído por um sindicato de bancos, sendo o sócio maior a Caixa Geral de Depósitos (CGD), que é dos contribuintes. Além disso, o FdR financiou-se junto do BdP (organismo do Estado). Mais: os bancos que investiram no FdR deixaram de pagar o correspondente imposto; e os acionistas, os credores e os depositantes são contribuintes do Estado (perdendo dinheiro, não pagam o correspondente imposto).

Carlos Costa não evitou a contaminação no sistema financeiro: a CGD, o maior sócio do FdR, foi objeto de capitalização da parte do Estado, em 3,9 milhões de euros, e de privados, em cerca de mil milhões de euros (ao todo, 4944 milhões de euros). Mais tarde, foi aplicada a resolução ao Banif. E o Banco Popular foi vendido por um euro. A banca baixou salários, dispensou pessoal e encerrou balcões. Os lesados do BES protestam. E, se alguns trabalhadores do BES foram chamados para outros bancos, muitos outros foram para casa. Porque enganaram o povo?

2024.08.05 – Louro de Carvalho

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