O antigo presidente do governo autonómico da Catalunha
(2016-17), Carles Puigdemont, protagonizou,
a oito de agosto, um rocambolesco episódio de escapismo, face aos corpos e às forças
de segurança do Estado, que tinham a obrigação de detê-lo. E, como assegurou Jordi
Turull, secretário-geral do partido Juntos pela Catalunha (JxCat), de direita e
independentista, chefiado por Puigdemont, o político nacionalista deu
explicações sobre o seu desafio a Espanha.
“Já disse que nunca tive vontade de me entregar
voluntariamente ou de facilitar a minha detenção, porque considero inaceitável
que esteja a ser perseguido por razões políticas e que […] a lei da amnistia
não esteja a ser aplicada. Compreendo as razões pelas quais o Supremo Tribunal
está obcecado em deter-me, mas nem a operação nem a reação dos comandantes
políticos e policiais dos Mossos são compreensíveis ou aceitáveis”, escreveu,
em catalão, no Twitter, no dia 9.
A 7 de agosto, Carles Puigdemont apresentou-se, num
vídeo televisivo, rodeado das bandeiras da União Europeia (UE) e da Catalunha,
a garantir que viria à sessão de investidura do presidente do governo catalão,
o socialista Salvador Illa, líder do Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC),
ramo regional catalão do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda,
não independentista, que encabeça o governo central de Espanha.
Salvador Illa acompanhou, em Madrid, o chefe político,
no pico da pandemia, mas voltou, logo que pôde, à sua Catalunha natal, para
trabalho político, com menor protagonismo público.
A investidura ocorreu apenas a 8 de agosto, porque só
recentemente a Esquerda Republicana de Catalunha (ERC), independentista, e a Em
Comum Somar, esquerda radical, aprovaram
o acordo com o PSC, para apoio parlamentar a Salvador Illa, mantendo-o
no poder, durante quatro anos.
Na verdade, depois de o presidente do governo espanhol
Pedro Sanchez haver promovido a lei da amnistia, o presidente do governo da
Catalunha marcou eleições parlamentares para o dia 12 de maio, o que o PSC
venceu, mas sem maioria, pelo que precisava de acordos, preferencialmente, à
esquerda, a independentista (a primeira) ou a alinhada com Madrid (a segunda).
Fica, assim, terminado o consulado de 14 anos sob a
égide de independentistas ou de nacionalistas na Catalunha. A região passou
esse período, sumida num processo de tentativa de secessão que Puigdemont
encabeçou, mas a confirmação parlamentar de Illa à frente do governo catalão
encerra, na opinião da maioria dos analistas, o procès independentista,
que chegou a ter 60% da população. Hoje os apoiantes da independência são
minoritários.
***
A atenção da opinião pública centrou-se, nestes dias,
nos pormenores anedóticos do regresso de Puigdemont a Espanha e da subsequente
fuga, deixando na penumbra a relevância política dos atos que o ex-presidente
quis boicotar. Jordi Turull afirmou, no dia 9, a vários meios de
comunicação que o foragido passou dias escondido na Catalunha, antes de
aparecer, no dia 8 de manhã, num comício com 3500 fiéis, sobretudo funcionários
da administração pública catalã.
Por
seu turno, a polícia catalã, acusada de negligência ou de cumplicidade,
desculpa-se, alegando que não podia deter Puigdemont, sem gerar “desordem
pública”. Por isso, os comandantes
dos Mossos d’Esquadra (polícia regional catalã) não aceitam
qualquer autocrítica e classificam de “imprópria” a conduta do antigo
presidente do governo regional.
Do seu lado, Jordi Turull admitiu, em público, ter
tido participação direta na nova fuga do antigo governante, que logrou contornar
o pesado dispositivo policial mobilizado para a sua captura, ao abrigo de
mandado de busca e captura em vigor, emitido por um magistrado do Tribunal
Supremo.
Puigdemont, depois do discurso perante os seguidores
que o aclamaram junto do Parque da Cidadela, recinto que alberga a sede do
Parlamento regional, decidiu desaparecer, porque percebeu que “fora montado um
aparato policial nunca antes visto na Catalunha, nem com terroristas, nem contra
o maior dos delinquentes”, o que o impediria de entrar no Parlamento, “para
exercer os seus direitos políticos” como deputado autonómico.
Os responsáveis dos Mossos d’Esquadra encarregados de
aplicar o mandado de detenção contra Puigdemont admitem ter sofrido um golpe na
sua credibilidade, mas asseguram, em comunicado, que “o trabalho decorreu de
forma exemplar, conforme os planos previstos”. O comissário-chefe dos Mossos,
Eduard Sallent, explicou numa conferência de imprensa, ao início da tarde do
dia 9, que a operação, em que participaram mais de 600 agentes daquela força de
segurança, visava deter Puigdemont “no momento mais adequado, para não gerar
desordem pública”. Porém, após o seu discurso de seis minutos, o antigo
presidente foi protegido por “uma massa de pessoas que formaram um muro
humano”, ocultando-o e conduzindo-o até um automóvel de cor branca, no qual
escapou da zona.
Eduard Sallent confirmou que dois colegas seus foram
detidos por alegada cumplicidade no plano de escape de Puigdemont: um é
proprietário do carro de marca Honda em que o foragido viajou, acompanhado em
parte do trajeto por Jordi Turull; o outro colaborou no plano. Todavia, ambos
foram deixados em liberdade pelo juiz, devendo prestar declarações mais tarde. E
Ibon Domínguez, porta-voz do sindicato da Polícia Nacional (Jupol), considerou
que “o grande erro foi deixar apenas nas mãos dos Mossos a responsabilidade
pela captura de Puigdemont, porque toda a gente sabe que este corpo policial
tem uma cúpula altamente politizada”.
O magistrado que emitiu o mandado de captura contra
Puigdemont, Pablo Llarena, pediu explicações formais aos dirigentes dos Mossos
d’Esquadra e do Ministério do Interior espanhol. Quer que clarifiquem as
circunstâncias em que foi impossível deter o político independentista, que
ainda não beneficia da amnistia aprovada pelo Parlamento espanhol há dois meses,
porque a Justiça considera não amnistiáveis os seus presumíveis delitos de
desvio de fundos públicos.
Os meios de comunicação mais representativos reagiram,
de forma diversa, aos recentes factos, que põem em causa a capacidade dos
corpos policiais e dos serviços de informação. Recordam, em especial, que a
ocultação de Puigdemont e a possibilidade de fugir aos perseguidores tem
paralelo na ação do governo regional que chefiava, em 2017, para esconder os
preparativos do referendo ilegal de autodeterminação de 1 de outubro desse ano.
Ninguém sabe explicar como nesse dia, de manhã cedo, milhares de escolas e de locais
públicos em toda a Catalunha estavam preparados para a consulta popular,
munidos de urnas e boletins de voto.
O diário “El Mundo”, crítico de Pedro Sánchez e das
cedências ao independentismo catalão, escreve num editorial, a 9 de agosto, que
“é um fracasso do Estado de Direito que Puigdemont não tenha sido detido, ao
cruzar a fronteira”. Vendo no episódio “uma crise de excecionalidade humilhante
para o Estado”, frisa que “uma democracia avançada é incompatível com os factos
ocorridos em Barcelona”. “Carles Puigdemont humilhou o Estado, com a conivência de alguns
cuja função era protegê-lo. A burla às instituições e à cidadania é gravíssima
e procede do aliado parlamentar que mantém Pedro Sánchez no poder, o que volta
a realçar a irresponsabilidade do governo, ao assumir como sócio para
reconfigurar o Estado um partido cuja razão de ser é atuar contra a democracia
e o próprio Estado”, escreve o jornal conservador.
Já o progressista “El País” vinca o saldo positivo da
investidura de um presidente do governo catalão não independentista, ao fim de
14 anos: “Se Puigdemont pretendia roubar protagonismo a Salvador Illa, deixar
em situação embaraçosa o governo cessante da Esquerda Republicana da Catalunha
e dar munições ao Partido Popular [PP, centro-direita] e ao Vox
[extrema-direita] para o seu permanente bombardeamento ao governo de Sánchez,
só alcançou este último objetivo.”
“As astúcias cénicas de Puigdemont não podem ocultar o
rotundo fracasso do seu falso regresso. Só uns poucos milhares dos seus
partidários se concentraram para recebê-lo e [para] ouvir a sua breve arenga”,
lê-se noutro parágrafo. “Não entrou no Parlamento, como tinha anunciado.”
O saldo positivo da investidura de Illa põe à frente
do Executivo catalão uma pessoa experiente e sensata. Concorde-se ou não com as
suas políticas, respeita-se a sua trajetória, louva-se o seu sentido prático e
negociador e vinca-se a sua grande capacidade de trabalho.
Filósofo de formação académica, Illa, de 58 anos,
obteve atenção pública na sua passagem pelo Ministério da Saúde no período mais
grave da pandemia. Terminada essa tarefa, pediu a Sánchez para regressar à
Catalunha, para funções de menor implicação comunicativa. O chefe do governo
central viu nele o candidato ideal para romper a dinâmica separatista da Catalunha.
Venceu as eleições de 2021 (mas os partidos independentistas formaram maioria
alternativa) e no passado dia 12 de maio, também sem maioria, mas sem
alternativa de governo.
No discurso de investidura, Illa apelou à superação
dos confrontos identitários entre catalães e comprometeu-se a avançar para um
modelo de Estado “confederal e plurinacional”. Pediu que a lei de amnistia
fosse aplicada, de forma rápida, geral “e sem subterfúgios” e, em alusão
indireta à presença de Puigdemont em Barcelona, sustentou que “ninguém deve ser
detido por atos que os representantes dos cidadãos decidiram amnistiar”. Todavia, os parceiros da investidura – a
ERC, independentista, e a Em Comum Somar, esquerda radical, aliada nacional da
coligação de Sánchez – frisam que o pacto é só para a investidura, “e não para
a legislatura”. Se não cumprir os acordos, incluindo a soberania fiscal da Catalunha
e o perdão de parte da dívida histórica, retirar-lhe-ão o apoio.
***
A 30 de maio, no termo de processo legislativo de seis
meses, as Cortes de Espanha aprovaram a lei de amnistia para separatistas
catalães condenados ou procurados pela Justiça, por causa da tentativa de
autodeterminação da região que culminou com um referendo ilegal, com a
declaração unilateral de independência, em 2017, e com violentos confrontos de
rua até 2019. Dos 349 deputados que votaram, resultaram 177 votos a favor, 172 contra e nenhuma abstenção.
A amnistia, que abrangerá os
envolvidos no movimento separatista catalão entre 1 de novembro de 2011 e 13 de
novembro de 2023, foi exigência dos partidos independentistas ERC JxCat, para
viabilizarem o último governo do socialista Pedro Sánchez, em novembro de 2023.
A nova “lei orgânica de amnistia
para a normalização institucional, política e social na Catalunha” seria
publicada no Boletim Oficial do Estado (BOE) e entraria em vigor nos dias
subsequentes, cabendo aos juízes a sua aplicação, apreciando caso a caso, com
as opiniões dos juristas a dividirem-se sobre os efeitos que poderão ter
eventuais pedidos de apreciação ao Tribunal Constitucional, às instâncias
judiciais da UE ou outros recursos de magistrados titulares de processos que
envolvem os separatistas.
Este período abrange, como dissemos,
a consulta popular e um referendo considerados ilegais em 2014 e 2017, bem como
a declaração unilateral de independência de 2017 e os tumultos nas ruas que se
seguiram à sentença que condenou dirigentes catalães em 2019. O PSOE estima que
309 pessoas ligadas ao movimento independentista sejam amnistiadas, assim como
73 polícias que enfrentam processos judiciais por causa da atuação em
manifestações e no dia do referendo ilegal.
Ora, sendo a Espanha, nos termos constitucionais,
uma Monarquia parlamentar e um “Estado social e democrático de Direito”, emanando
a Justiça do “povo” e sendo os juízes “submetidos ao único império da lei”, é
caso para perguntar como é que os juízes querem a detenção do potencial
amnistiado, acusado de
desvio de fundos públicos e da tentativa de separar a Catalunha.
***
Contudo, enquanto a Catalunha tem um
governo a funcionar regularmente e o governo central (como as polícias e os serviços
de informação) está sob o fogo da crítica das direitas políticas, o político e jornalista
Carles Puigdemont “regressou ao trabalho”, como disse ao seu advogado belga, Simon
Bekaert. Por isso, ou estará no seu escritório no Sul de França ou, o
que é mais provável, no seu escritório e residência de Waterloo, em Bruxelas. E
a marcha continua!
2024.08.10 – Louro de Carvalho
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