sábado, 10 de agosto de 2024

O nacionalista Carles Puigdemont voltou ao trabalho no autoexílio

 

O antigo presidente do governo autonómico da Catalunha (2016-17), Carles Puigdemont, protagonizou, a oito de agosto, um rocambolesco episódio de escapismo, face aos corpos e às forças de segurança do Estado, que tinham a obrigação de detê-lo. E, como assegurou Jordi Turull, secretário-geral do partido Juntos pela Catalunha (JxCat), de direita e independentista, chefiado por Puigdemont, o político nacionalista deu explicações sobre o seu desafio a Espanha.

Já disse que nunca tive vontade de me entregar voluntariamente ou de facilitar a minha detenção, porque considero inaceitável que esteja a ser perseguido por razões políticas e que […] a lei da amnistia não esteja a ser aplicada. Compreendo as razões pelas quais o Supremo Tribunal está obcecado em deter-me, mas nem a operação nem a reação dos comandantes políticos e policiais dos Mossos são compreensíveis ou aceitáveis”, escreveu, em catalão, no Twitter, no dia 9.

A 7 de agosto, Carles Puigdemont apresentou-se, num vídeo televisivo, rodeado das bandeiras da União Europeia (UE) e da Catalunha, a garantir que viria à sessão de investidura do presidente do governo catalão, o socialista Salvador Illa, líder do Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC), ramo regional catalão do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda, não independentista, que encabeça o governo central de Espanha.

Salvador Illa acompanhou, em Madrid, o chefe político, no pico da pandemia, mas voltou, logo que pôde, à sua Catalunha natal, para trabalho político, com menor protagonismo público.

A investidura ocorreu apenas a 8 de agosto, porque só recentemente a Esquerda Republicana de Catalunha (ERC), independentista, e a Em Comum Somar, esquerda radical, aprovaram o acordo com o PSC, para apoio parlamentar a Salvador Illa, mantendo-o no poder, durante quatro anos.

Na verdade, depois de o presidente do governo espanhol Pedro Sanchez haver promovido a lei da amnistia, o presidente do governo da Catalunha marcou eleições parlamentares para o dia 12 de maio, o que o PSC venceu, mas sem maioria, pelo que precisava de acordos, preferencialmente, à esquerda, a independentista (a primeira) ou a alinhada com Madrid (a segunda). 

Fica, assim, terminado o consulado de 14 anos sob a égide de independentistas ou de nacionalistas na Catalunha. A região passou esse período, sumida num processo de tentativa de secessão que Puigdemont encabeçou, mas a confirmação parlamentar de Illa à frente do governo catalão encerra, na opinião da maioria dos analistas, o procès independentista, que chegou a ter 60% da população. Hoje os apoiantes da independência são minoritários.

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A atenção da opinião pública centrou-se, nestes dias, nos pormenores anedóticos do regresso de Puigdemont a Espanha e da subsequente fuga, deixando na penumbra a relevância política dos atos que o ex-presidente quis boicotar. Jordi Turull afirmou, no dia 9, a vários meios de comunicação que o foragido passou dias escondido na Catalunha, antes de aparecer, no dia 8 de manhã, num comício com 3500 fiéis, sobretudo funcionários da administração pública catalã.

 

Por seu turno, a polícia catalã, acusada de negligência ou de cumplicidade, desculpa-se, alegando que não podia deter Puigdemont, sem gerar “desordem pública”. Por isso, os comandantes dos Mossos d’Esquadra (polícia regional catalã) não aceitam qualquer autocrítica e classificam de “imprópria” a conduta do antigo presidente do governo regional.

Do seu lado, Jordi Turull admitiu, em público, ter tido participação direta na nova fuga do antigo governante, que logrou contornar o pesado dispositivo policial mobilizado para a sua captura, ao abrigo de mandado de busca e captura em vigor, emitido por um magistrado do Tribunal Supremo.

Puigdemont, depois do discurso perante os seguidores que o aclamaram junto do Parque da Cidadela, recinto que alberga a sede do Parlamento regional, decidiu desaparecer, porque percebeu que “fora montado um aparato policial nunca antes visto na Catalunha, nem com terroristas, nem contra o maior dos delinquentes”, o que o impediria de entrar no Parlamento, “para exercer os seus direitos políticos” como deputado autonómico.

Os responsáveis dos Mossos d’Esquadra encarregados de aplicar o mandado de detenção contra Puigdemont admitem ter sofrido um golpe na sua credibilidade, mas asseguram, em comunicado, que “o trabalho decorreu de forma exemplar, conforme os planos previstos”. O comissário-chefe dos Mossos, Eduard Sallent, explicou numa conferência de imprensa, ao início da tarde do dia 9, que a operação, em que participaram mais de 600 agentes daquela força de segurança, visava deter Puigdemont “no momento mais adequado, para não gerar desordem pública”. Porém, após o seu discurso de seis minutos, o antigo presidente foi protegido por “uma massa de pessoas que formaram um muro humano”, ocultando-o e conduzindo-o até um automóvel de cor branca, no qual escapou da zona.

Eduard Sallent confirmou que dois colegas seus foram detidos por alegada cumplicidade no plano de escape de Puigdemont: um é proprietário do carro de marca Honda em que o foragido viajou, acompanhado em parte do trajeto por Jordi Turull; o outro colaborou no plano. Todavia, ambos foram deixados em liberdade pelo juiz, devendo prestar declarações mais tarde. E Ibon Domínguez, porta-voz do sindicato da Polícia Nacional (Jupol), considerou que “o grande erro foi deixar apenas nas mãos dos Mossos a responsabilidade pela captura de Puigdemont, porque toda a gente sabe que este corpo policial tem uma cúpula altamente politizada”.

O magistrado que emitiu o mandado de captura contra Puigdemont, Pablo Llarena, pediu explicações formais aos dirigentes dos Mossos d’Esquadra e do Ministério do Interior espanhol. Quer que clarifiquem as circunstâncias em que foi impossível deter o político independentista, que ainda não beneficia da amnistia aprovada pelo Parlamento espanhol há dois meses, porque a Justiça considera não amnistiáveis os seus presumíveis delitos de desvio de fundos públicos.

Os meios de comunicação mais representativos reagiram, de forma diversa, aos recentes factos, que põem em causa a capacidade dos corpos policiais e dos serviços de informação. Recordam, em especial, que a ocultação de Puigdemont e a possibilidade de fugir aos perseguidores tem paralelo na ação do governo regional que chefiava, em 2017, para esconder os preparativos do referendo ilegal de autodeterminação de 1 de outubro desse ano. Ninguém sabe explicar como nesse dia, de manhã cedo, milhares de escolas e de locais públicos em toda a Catalunha estavam preparados para a consulta popular, munidos de urnas e boletins de voto.

O diário “El Mundo”, crítico de Pedro Sánchez e das cedências ao independentismo catalão, escreve num editorial, a 9 de agosto, que “é um fracasso do Estado de Direito que Puigdemont não tenha sido detido, ao cruzar a fronteira”. Vendo no episódio “uma crise de excecionalidade humilhante para o Estado”, frisa que “uma democracia avançada é incompatível com os factos ocorridos em Barcelona”. “Carles Puigdemont humilhou o Estado, com a conivência de alguns cuja função era protegê-lo. A burla às instituições e à cidadania é gravíssima e procede do aliado parlamentar que mantém Pedro Sánchez no poder, o que volta a realçar a irresponsabilidade do governo, ao assumir como sócio para reconfigurar o Estado um partido cuja razão de ser é atuar contra a democracia e o próprio Estado”, escreve o jornal conservador.

Já o progressista “El País” vinca o saldo positivo da investidura de um presidente do governo catalão não independentista, ao fim de 14 anos: “Se Puigdemont pretendia roubar protagonismo a Salvador Illa, deixar em situação embaraçosa o governo cessante da Esquerda Republicana da Catalunha e dar munições ao Partido Popular [PP, centro-direita] e ao Vox [extrema-direita] para o seu permanente bombardeamento ao governo de Sánchez, só alcançou este último objetivo.”

“As astúcias cénicas de Puigdemont não podem ocultar o rotundo fracasso do seu falso regresso. Só uns poucos milhares dos seus partidários se concentraram para recebê-lo e [para] ouvir a sua breve arenga”, lê-se noutro parágrafo. “Não entrou no Parlamento, como tinha anunciado.”

O saldo positivo da investidura de Illa põe à frente do Executivo catalão uma pessoa experiente e sensata. Concorde-se ou não com as suas políticas, respeita-se a sua trajetória, louva-se o seu sentido prático e negociador e vinca-se a sua grande capacidade de trabalho.

Filósofo de formação académica, Illa, de 58 anos, obteve atenção pública na sua passagem pelo Ministério da Saúde no período mais grave da pandemia. Terminada essa tarefa, pediu a Sánchez para regressar à Catalunha, para funções de menor implicação comunicativa. O chefe do governo central viu nele o candidato ideal para romper a dinâmica separatista da Catalunha. Venceu as eleições de 2021 (mas os partidos independentistas formaram maioria alternativa) e no passado dia 12 de maio, também sem maioria, mas sem alternativa de governo.

No discurso de investidura, Illa apelou à superação dos confrontos identitários entre catalães e comprometeu-se a avançar para um modelo de Estado “confederal e plurinacional”. Pediu que a lei de amnistia fosse aplicada, de forma rápida, geral “e sem subterfúgios” e, em alusão indireta à presença de Puigdemont em Barcelona, sustentou que “ninguém deve ser detido por atos que os representantes dos cidadãos decidiram amnistiar”. Todavia, os parceiros da investidura – a ERC, independentista, e a Em Comum Somar, esquerda radical, aliada nacional da coligação de Sánchez – frisam que o pacto é só para a investidura, “e não para a legislatura”. Se não cumprir os acordos, incluindo a soberania fiscal da Catalunha e o perdão de parte da dívida histórica, retirar-lhe-ão o apoio.

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A 30 de maio, no termo de processo legislativo de seis meses, as Cortes de Espanha aprovaram a lei de amnistia para separatistas catalães condenados ou procurados pela Justiça, por causa da tentativa de autodeterminação da região que culminou com um referendo ilegal, com a declaração unilateral de independência, em 2017, e com violentos confrontos de rua até 2019. Dos 349 deputados que votaram, resultaram 177 votos a favor, 172 contra e nenhuma abstenção.

A amnistia, que abrangerá os envolvidos no movimento separatista catalão entre 1 de novembro de 2011 e 13 de novembro de 2023, foi exigência dos partidos independentistas ERC JxCat, para viabilizarem o último governo do socialista Pedro Sánchez, em novembro de 2023.

A nova “lei orgânica de amnistia para a normalização institucional, política e social na Catalunha” seria publicada no Boletim Oficial do Estado (BOE) e entraria em vigor nos dias subsequentes, cabendo aos juízes a sua aplicação, apreciando caso a caso, com as opiniões dos juristas a dividirem-se sobre os efeitos que poderão ter eventuais pedidos de apreciação ao Tribunal Constitucional, às instâncias judiciais da UE ou outros recursos de magistrados titulares de processos que envolvem os separatistas.

Este período abrange, como dissemos, a consulta popular e um referendo considerados ilegais em 2014 e 2017, bem como a declaração unilateral de independência de 2017 e os tumultos nas ruas que se seguiram à sentença que condenou dirigentes catalães em 2019. O PSOE estima que 309 pessoas ligadas ao movimento independentista sejam amnistiadas, assim como 73 polícias que enfrentam processos judiciais por causa da atuação em manifestações e no dia do referendo ilegal.

Ora, sendo a Espanha, nos termos constitucionais, uma Monarquia parlamentar e um “Estado social e democrático de Direito”, emanando a Justiça do “povo” e sendo os juízes “submetidos ao único império da lei”, é caso para perguntar como é que os juízes querem a detenção do potencial amnistiado, acusado de desvio de fundos públicos e da tentativa de separar a Catalunha.

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Contudo, enquanto a Catalunha tem um governo a funcionar regularmente e o governo central (como as polícias e os serviços de informação) está sob o fogo da crítica das direitas políticas, o político e jornalista Carles Puigdemont “regressou ao trabalho”, como disse ao seu advogado belga, Simon Bekaert. Por isso, ou estará no seu escritório no Sul de França ou, o que é mais provável, no seu escritório e residência de Waterloo, em Bruxelas. E a marcha continua!

2024.08.10 – Louro de Carvalho

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