terça-feira, 30 de abril de 2024

União Europeia tem de alargar, para constituir um bloco de força

 

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, sentenciou, a 29 de abril, a propósito da passagem, a 1 de maio, dos 20 anos desde o maior alargamento de sempre, da União Europeia (UE), que esta deve ficar maior ou arriscar-se a enfrentar uma “nova Cortina de Ferro”, ao longo da sua ala do Leste. “O alargamento é vital, para o futuro da UE, porque, sem ele, [há] o risco de uma nova Cortina de Ferro”, disse Michel em entrevista a um grupo  de jornalistas.

“Seria extremamente perigoso, se tivesse uma vizinhança instável com falta de prosperidade ou [com] falta de desenvolvimento económico. Estes são os nossos interesses comuns – dos países candidatos e da UE – para fazer progressos, para acelerar”, justificou.

A advertência surge no 20.º aniversário do “Big Bang” do alargamento de 2004, quando dez países – incluindo sete antigas repúblicas soviéticas ou Estados satélites – aderiram à UE. Se não fosse essa expansão histórica, a UE como está hoje seria dividida por uma “Cortina de Ferro de facto”, segundo Charles Michel, sendo os países do lado oriental alvo de “tentativas políticas e ideológicas do Kremlin para os ocupar”.

Nove países da Europa de Leste e dos Balcãs Ocidentais aguardam, nos bastidores, para se tornarem membros de pleno direito da UE. O processo de adesão é longo e complexo, com os países candidatos obrigados a responder às exigências da UE, incluindo reformas judiciais e constitucionais significativas. Embora a invasão da Ucrânia pela Rússia tenha criado novo ímpeto na política de alargamento adormecida da UE, as tentativas de acelerar o processo de adesão correm o risco de ser impedidas por Estados-Membros mais céticos. Por sua vez, os críticos sustentam que os longos atrasos na integração dos países estão a fomentar um sentimento de exasperação com Bruxelas.

Em dezembro de 2023, o húngaro Viktor Orbán, cujo governo ocupará a presidência rotativa de seis meses do Conselho da UE, a partir de 1 de julho, ameaçou travar a abertura das negociações de adesão com a Ucrânia, pelo veto. Porém, o presidente do Conselho da UE desvalorizou as especulações de que a presidência húngara, combinada com um Parlamento Europeu (PE) eventualmente mais polarizado, após as eleições, poderia dificultar ainda mais o caminho dos países candidatos à adesão. “Estou muito confiante de que o próximo ciclo institucional será a ocasião para reafirmar a nossa vontade política conjunta de alargar”, afirmou Charles Michel.

Questionado sobre se o governo húngaro poderia inviabilizar ainda mais a adesão da Ucrânia, excluindo a questão do alargamento da agenda do Conselho, declarou: “Não estou de todo nervoso. […] Estou confiante porque sinto que os líderes – a grande maioria deles – estão absolutamente convencidos de que isto é importante para o futuro.”

Charles Michel acredita que a “abstenção construtiva” – notoriamente usada por Orbán em dezembro de 2023, ao sair da sala, após os 26 colegas aprovarem a abertura das conversações de adesão da Ucrânia à UE – poderá ser uma rede de segurança para decisões semelhantes no futuro. “Usamos a abstenção construtiva, que está a dar a possibilidade de um país dizer: olhe, não gosto e não estou muito confortável com esta decisão, e faço pública a minha opinião, mas não quero bloquear a grande maioria dos Estados-membros”, explicou.

A possível integração da Ucrânia – o país que sofre a guerra e cujo produto interno bruto (PIB) per capita é três vezes menor do que o da Bulgária, a menor economia da UE – está a suscitar receios de que a adesão de Kiev destabilize a estrutura orçamental do bloco, vindo muitos países da UE a passar de beneficiários líquidos a contribuintes líquidos.

Um relatório do think tank Bruegel (dedicado à pesquisa de políticas em questões económicas) estima que a adesão do país devastado pela guerra custaria à UE entre 110 e 136 mil milhões de euros, ao longo de sete anos. Charles Michel diz que, para aliviar o potencial impacto da adesão da Ucrânia na economia da UE, o país precisaria de uma transição específica baseada num modelo que não está atualmente no sistema, sobretudo devido ao custo potencial da sua reconstrução pós-guerra. Porém, apelou ao bloco para não ter medo da integração da Ucrânia, afirmando que o país será um local atrativo para investir como parte do mercado único. E admitiu que outros países mais alinhados com a economia do bloco possam vir a ser aceites como membros da UE, antes do final da década. Para tanto, a UE deve fazer o trabalho de casa, incluindo a implementação das reformas necessárias, para estar pronta para o alargamento, o mais tardar até 2030.

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O alargamento é a política externa mais eficaz da UE, mas, desde a grande vaga de novos membros, em 2004, o processo estagnou. A invasão da Ucrânia criou novo sentido de urgência, com os líderes da UE a multiplicarem as reuniões com os sete países candidatos, na cimeira da Comunidade Política Europeia (CPE), a 5 de outubro de 2023, em Granada, na Espanha. No entanto, alguns daqueles países têm as candidaturas bloqueadas, há mais de 10 anos, apesar de o processo de adesão e as suas exigências continuarem os mesmos.

Antes de 2004, segundo Ian Bond, diretor de política externa do Centro para a Reforma Europeia, “tudo parecia ir na direção de um mundo global mais aberto”. Aqueles países estavam na transição do comunismo para a democracia e para a economia de mercado livre, pelo que “havia um grande sentimento de esperança e de que estávamos a devolver estes países à Europa”. Mais tarde, Herman van Rompuy, o então presidente do Conselho Europeu, saudou a adesão dos 10 países, maioritariamente da Europa de Leste, dizendo que “a Europa tinha voltado a ser Europa”.

Agora, para Bond, a UE é um lugar mais sóbrio, olha os riscos, as desvantagens e as ameaças, tentando equilibrar tudo, quando pensa na próxima ronda de alargamento”. Esta cautela é devida, em parte, às crises globais que o Mundo enfrentou, incluindo várias crises financeiras, uma crise migratória, a pandemia global de covid-19 e, agora, a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia. Toda esta série de crises desviou a atenção do alargamento, que foi, até 2004, o projeto emblemático da UE. Porém, devido a esta distração, a urgência do alargamento eclipsou-se.

A arquitetura financeira foi alterada, as tentativas de elaborar uma política comum de migração começam a cristalizar-se, foram introduzidos contratos públicos conjuntos, para adquirir vacinas e gás, foi emitida dívida comum, para angariar fundos e, agora, a UE estuda uma política comum de segurança e de defesa. Os desenvolvimentos internos também são responsáveis pela situação, tais como a ascensão do populismo e do nacionalismo na UE, que levou alguns Estados-membros a bloquearem o progresso da adesão, por causa de questões bilaterais com os países candidatos.

Isto nota-se em relação à República da Macedónia do Norte, que apresentou o pedido de adesão em 2004, obteve o estatuto de candidato, em 2005, e está num impasse, há 17 anos. A candidatura foi, de início, bloqueada pela França e pelos Países Baixos, porque o processo de alargamento precisava de melhoria, e pela Grécia, depois, por causa da disputa sobre o nome do país. Resolvida a questão, em 2018, a Bulgária exigiu o reconhecimento formal de que a cultura e a língua da Macedónia do Norte são fortemente influenciadas pela Bulgária, bem como uma maior proteção da minoria búlgara do país. E as negociações de adesão foram reabertas, em julho de 2022.

“O processo de negociação tornou-se cada vez mais difícil e não pode ser concluído com sucesso no mandato de um governo”, disse Zulfi Ismaili, chefe da missão da República da Macedónia do Norte junto da UE, vincando que a evolução das negociações se baseou na lição aprendida pela UE com os anteriores alargamentos e num apoio político mais reservado ao processo.

A Hungria, liderada pelo conservador e populista Viktor Orban, declarou que vetaria a adesão da Ucrânia, enquanto este país não garantisse determinados direitos à minoria étnica húngara.

Sempre fez parte do processo de alargamento lidar com questões bilaterais, mas a ascensão de partidos populistas de extrema-direita torna difícil o avanço, porque estas questões bilaterais se tornam proeminentes. Depois, há o problema do retrocesso democrático e da erosão do Estado de direito em alguns Estados-membros. Foram precisos anos de conflitos jurídicos entre a Comissão Europeia e, em especial, a Polónia e a Hungria, para criar, em 2022, um novo mecanismo de Estado de direito que liga o respeito pela legislação e pelos valores da UE ao desembolso de fundos comunitários. 

Os progressos continuam lentos, pois ambos os países vêm arrastando a aplicação das decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e têm tentado utilizar o veto noutros dossiês da UE, para garantirem concessões e fundos. O receio é que a democracia e o respeito pelo Estado de direito sejam já muito mais frágeis e a corrupção mais frequente nalguns dos países candidatos à UE e que estes sejam mais propensos a tentar jogar com o sistema. Por isso, Ian Bond sustenta que é importante, para o funcionamento do mercado único que “a UE continue a ser um espaço jurídico único, um espaço jurídico comum”, estando Orbán (na Hungria) e o PiS (na Polónia) estão a pôr isso em risco, “com as suas reformas judiciais: não se pode ir a um tribunal em todos os 27 Estados-membros e obter a mesma decisão com base nos factos do caso”.

Outro obstáculo ao alargamento, nas últimas décadas, é o debate crescente sobre a capacidade de absorção: a capacidade da UE para integrar novos membros, sem pôr em causa a sua eficiência e desenvolvimento. Os dois grandes argumentos invocados pelos Estados-membros para abrandar o processo são o dinheiro e o direito de veto. Os novos membros tendem a ser mais pobres e poderão absorver grande parte dos fundos de coesão do bloco, num futuro próximo. Os dez países que aderiram em 2004 tinham um PIB muito inferior à média do bloco. E há quem preveja que a Ucrânia, uma potência agrícola, poderia tornar-se o único beneficiário líquido da Política Agrícola Comum (PAC), se aderisse, sem a UE proceder a uma reforma dessa política.

É também mencionada a preocupação com o impacto potencial dos novos membros na tomada de decisões e com o facto de poder ser mais difícil obter o consenso necessário para a resposta célere a desafios inesperados, a menos que a utilização da votação por unanimidade seja mais limitada, em favor da votação por maioria qualificada. Por exemplo, a Hungria, bloqueou algumas sanções contra os oligarcas russos obteve uma derrogação significativa do embargo petrolífero russo. A França e a Alemanha utilizaram a regra da unanimidade em seu proveito. Porém, Ian Bond considera este receio “largamente exagerado”, visto que a UE foi capaz de se adaptar às várias crises ao longo das últimas duas décadas.

A UE poderia ter resolvido todas estas preocupações, desde 2004, se o alargamento tivesse sido feito. A invasão da Ucrânia pela Rússia foi um dos resultados de não o ter feito. No início, o objetivo era consolidar a Europa no contexto do confronto Leste-Oeste. E agora, mais uma vez, é o entendimento de que não deve haver zonas cinzentas entre a UE e a Rússia. Desde que Moscovo fez entrar os tanques na Ucrânia, os dirigentes da UE fizeram duas cimeiras com os homólogos dos Balcãs Ocidentais e tomou a iniciativa da criação da CPE, para reforçar os laços com os países europeus não pertencentes à UE e para facilitar os intercâmbios a nível dos dirigentes.

E uma ideia que está a ganhar força é a da integração gradual, com os países candidatos a poderem aderir a políticas e a programas da UE, à medida que avançam no processo. A ideia, defendida pelo presidente francês, Emmanuel Macron, mereceu o apoio da Macedónia do Norte. Assim, o processo não deve centrar-se só no objetivo final, a adesão plena, mas deve integrar os candidatos nas estruturas da UE, à medida que fazem as reformas. Um capítulo encerrado deve significar um lugar à mesa na formação adequada do Conselho, sem direito a voto, pois o fosso de convergência entre Estados-membros e candidatos deve diminuir, em vez de aumentar.

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São candidatos à UE: o Montenegro, a Sérvia, a Turquia, a Macedónia do Norte, a Albânia, a Ucrânia, a Moldávia, a Bósnia-Herzegovina e a Geórgia. Têm, pois, de assegurar, politicamente, a estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos e o respeito e a proteção das minorias; economicamente, o funcionamento da economia de mercado e a capacidade de fazer face à pressão concorrencial e às forças de mercado; e, administrativa e institucionalmente, a capacidade para aplicar o acervo da UE (os direitos comuns) e para assumir as obrigações decorrentes da adesão à UE.

Precisa-se de uma UE cidadã, vigorosa, progressista e com autoridade no Mundo.

2024.04.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Alguns episódios que atravessaram a IX Legislatura do PE

 

Os membros do Parlamento Europeu (PE) regressarão aos 27 países de origem e alguns deverão entrar em campanha para eventual reeleição, no escrutínio que decorrerá de 6 a 9 de junho, para a escolha de 720 eurodeputados para o mandato de 2024 a 2029.

Para muitos, este período eleitoral representará uma pausa – para alguns o termo de uma carreira ou de uma experiência europeia –, após cinco anos a navegar por notória sucessão de crises na União Europeia (UE) e em todo o Mundo, que exigiram atos legislativos complexos e reformistas e obrigaram à digestão de alguns escândalos. Assim, o PE realizou a última sessão plenária do seu 9.º mandato, que decorreu de 2019 a 2014. E, em jeito de balanço, a sua presidente, Roberta Metsola, declarou à Euronews: “Nunca teria sido capaz de prever o quanto conseguimos alcançar, mas também quantas crises e desafios tivemos de superar e lidar.”

A IX Legislatura, que está prestes a terminar, foi marcada por alguns episódios que merecem registo, nem todos pelos melhores motivos. 

O primeiro foi a confirmação  de Ursula de Von der Leyen como presidente da Comissão Europeia. Ela veio do nada, por assim dizer, para a cena europeia. Nascida em Bruxelas, a cidadã alemã era figura quase desconhecida na sede das instituições da UE, até ao verão de 2019. Servira no governo federal da chanceler Angela Markel, como detentora de várias pastas ministeriais, tendo sido a última a da Defesa. A sua ascendência ocorreu, de súbito, depois de o Conselho Europeu, sob a influência do presidente francês, Emmanuel Macron, ter rejeitado o líder do Partido Popular Europeu (PPE), Manfred Weber, para presidir à Comissão. Porém, como o centro-direita ganhara as eleições, Macron sugeriu o nome de Ursula von der Leyen, elogiando-a como conservadora pragmática que satisfaria as fações liberais, socialistas e verdes, no que até Viktor Orbán, líder da Hungria, concordou. O PE reagiu criticamente ao desmantelamento do sistema Spitzenkandidaten (método de vincular a escolha do presidente da Comissão às eleições para o PE), a que Macron se opôs veementemente. Não obstante, Von der Leyen foi confirmada, mas só com 382 votos a favor, apenas nove acima dos 374 exigidos.

Outro episódio está conexo com o Brexit, difícil de digerir por Bruxelas. A saída do Reino Unido da UE foi um exercício prolongado que testou os limites da boa vontade eurodiplomática. A sua pertença cessou a 29 de janeiro de 2020, quando os eurodeputados aprovaram o acordo de saída oficial da UE, após 47 anos, tornando-se este o primeiro Estado a deixar a união. E, após o anúncio dos resultados da votação (621 a favor e 49 contra), os eurolegisladores levantaram-se e cantaram, de mãos dadas, um resgate de “Auld Lang Syne”, popular canção escocesa que evoca o fim de longa amizade. Poucos dias depois, o PE redistribuiu os lugares dos 73 eurodeputados britânicos.

Depois, surgiu a saga de József Szájer, eurodeputado eleito, por cinco vezes, pelo Fidesz (partido da Hungria no poder) e censurado, em 2021, por liderar propostas de legislação anticomunidade LGBT, para proteger as crianças. Porém, foi surpreendido pela polícia belga numa orgia com  25 homens, num apartamento no centro de Bruxelas, estando em vigor o confinamento no quadro da pandemia de dovid-19. A polícia foi ao local, depois de vizinhos se queixarem do barulho.

Segundo o Ministério Público (MP), tentou escapar à detenção, saindo da casa por uma tubagem no exterior do edifício e foi encontrado com as mãos ensanguentadas e estupefacientes na mochila, que não usou. “Lamento ter violado as regras de assembleia. Foi irresponsável da minha parte. Vou aceitar as penalidades por isso”, confessou, em comunicado, dias após a demissão.

Outro revés esteve ligado à pandemia de covid-19. Confrontada com uma pandemia que acontece uma vez num século, a UE procedeu à compra conjunta de vacinas, entregando muito dinheiro às multinacionais farmacêuticas. Embora as entregas iniciais tenham sido compreensivelmente lentas, devido à enorme procura, uma empresa específica irritou os eurodeputados com os atrasos constantes: a AstraZeneca. A empresa tinha-se comprometido a fornecer 90 milhões de doses no primeiro trimestre de 2021, mas reviu a entrega para apenas 30 milhões.

O PE procedeu a uma audição por videoconferência, para interrogar os presidentes executivos das empresas farmacêuticas, com muitas perguntas sobre produção, sobre autorizações e sobre horários. E todos apontaram Pascal Soriot, da AstraZeneca, como o principal culpado. “Como é possível que não tenha ideia?”, questionou a eurodeputada finlandesa Silvia Modig, que chamou a Soriot “pedaço de sabão”, mercê das suas declarações confusas sobre entregas.

Posteriormente, a Comissão processou a AstraZeneca, mas o litígio foi resolvido por acordo.

Chocante, para o PE, foi o anúncio, na madrugada de 11 de janeiro de 2022, do falecimento de David Sassoli, o presidente do PE, socialista italiano, de 65 anos, devido a complicações de saúde.

A notícia abalou Bruxelas, por ser figura apreciada por todo o espectro político e admirada pelo seu sorriso fácil e pelo seu caráter caloroso. Por isso, o PE acolheu um evento comemorativo ainda com os seus membros a usarem máscaras, que abriu com o elogio fúnebre, feito em Italiano pela sua sucessora, Roberta Metsola, maltesa de centro-direita. “A Europa perdeu um líder, a democracia perdeu um campeão e todos nós perdemos um amigo”, disse Roberta Metsola, que acrescentou: “Homem de grande visão e convicções profundas, soube sempre traduzir os valores em que acreditava em ações concretas.”

Sassoli foi sepultado em Roma, após funeral de Estado na Basílica de Santa Maria degli Angeli.

À semelhança de vários parlamentos nacionais, também o PE foi sensível ao clamor do presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, quando os mísseis russos começaram a cair, reiterada e intensamente sobre Kiev e o destino da Ucrânia foi suspenso pelo mais fino dos fios. Com efeito, Zelenskyy concebeu um audacioso realinhamento geopolítico e solicitou a adesão à UE.

Procurando dissipar dúvidas sobre as suas ambições, Zelenskyy foi a figura central numa sessão extraordinária do PE, a 1 de março de 2022, e prometeu que “ninguém nos vai quebrar”. “Estamos a lutar pelos nossos direitos, pelas nossas liberdades e, agora, lutamos pela sobrevivência. Também estamos a lutar para sermos membros iguais da Europa”, assegurou Zelenskyy, para clamar: “Provem que estão connosco. Provem que não nos deixarão sozinhos. Provem que são realmente europeus. E, depois, a vida vencerá a morte e a luz vencerá a escuridão. Glória à Ucrânia!” Um dos mais memoráveis discursos proferidos no hemiciclo europeu, tendo até um dos intérpretes quase começado a chorar.

Um dos escândalos mais escaldantes do PE foi o ‘Qatargate’, um escândalo como nenhum outro.

O PE já tinha sido palco de alguns escândalos políticos, mas não esperava a borrasca inédita que caiu em cima, em dezembro de 2022.

A polícia belga revelou a existência de corrupção envolvendo grandes quantias de dinheiro e presentes substanciais, alegadamente pagos pelos governos do Qatar e de Marrocos, para influenciar a tomada de decisões da instituição. Ambos os países negam qualquer irregularidade.

O caso levou à prisão a vice-presidente Eva Kaili, socialista grega em ascensão no PE, juntamente com o parceiro, Francesco Giorgi, assistente parlamentar. Kaili teria sido “apanhada em flagrante” a tentar livrar-se de uma mala de dinheiro, com ajuda do pai, o que levou ao levantamento automático da imunidade e à permanência na prisão, por mais de quatro meses.

Também foram acusados Marc Tarabella e Andrea Cozzolino, dois eurodeputados em exercício, e Pier Antonio Panzeri, ex-eurodeputado, que fecharia, mais tarde um acordo para ter uma pena mais leve, como contrapartida à disponibilidade de explicar o esquema.

Kaili, Tarabella e Cozzolino negaram as alegações de Panzeri e contestaram as acusações criminais, clamando inocência. No entanto, o turbilhão de acusações, de incursões policiais, de informações confidenciais divulgadas na imprensa e de acusações a juízes, revelou-se prejudicial para o PE, que estabeleceu um novo código de conduta para conter uma das suas piores crises de relações públicas. Recentemente, viu-se confrontado com dois escândalos: o “Russiagate” (um assessor do PE é suspeito de receber dinheiro para intervir na Voz da Europa a favor da Rússia) e “Chinagate” (um outro assessor do PE é suspeito de espiar a favor da China).

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Nem só de casos tristes ou escandalosos viveu o PE, sendo de assinalar que o mandato 2019-2024 produziu diplomas legislativos ambiciosos e de longo alcance, alguns das quais foram intensamente negociados e debatidos até chegarem à linha de chegada. Porém, nenhum bate a Lei de Restauração da Natureza, para reabilitar, gradualmente, as áreas terrestres e marítimas da UE degradadas pelas alterações climáticas e pela atividade humana.

O texto era bastante discreto em comparação com outras peças do Pacto Ecológico que tinham atraído maior atenção. Porém, na primavera de 2023, o Partido Popular Europeu (PPE) iniciou audaciosa campanha para derrubar a lei, aduzindo que poria em risco a produção de alimentos, aumentaria os preços de retalho e devastaria os meios de subsistência dos agricultores.

Os pontos de discussão foram contestados por eurodeputados progressistas, por organizações ambientalistas, por juristas e até por multinacionais, que disseram que era indispensável restaurar a Natureza, para manter uma economia próspera e cadeias de abastecimento sustentáveis. O PPE avançou com polémico impulso nas redes sociais, alegando que a legislação transformaria a cidade de Rovaniemi, onde o Pai Natal vive, numa floresta. E, embora o PE tenha aprovado uma versão diluída da lei, com 329 votos a favor e 275 contra, a batalha abriu caminho para contestação mais ampla do Green Deal, no período que antecede as eleições de 2024.

Com as eleições a aproximar-se, o PE acelerou para fechar o maior número possível de dossiês. O pico ocorreu em dezembro de 2023, quando os legisladores chegaram a um acordo provisório com os Estados-membros sobre duas das leis mais significativas do mandato: a Lei de Inteligência Artificial (IA), uma primeira tentativa mundial de frear a tecnologia revolucionária, e o Novo Pacto sobre Migração e Asilo, uma reforma abrangente da política de migração.

A Lei da IA foi concluída, após negociações ao longo de 35 horas, em três dias consecutivos, para expandir a lista de práticas proibidas, para não infringir os direitos fundamentais. As negociações sobre o Pacto de Migração e Asilo foram divididas em várias sessões, para permitir que o PE e o Conselho da UE (Estados-membros) acordassem sobre cinco leis interligadas.

Entretanto, Yulia Navalnaya compareceu no PE, no final de fevereiro de 2024, dias depois de o marido, Alexei Navalny, ter morrido em circunstâncias suspeitas, numa prisão russa. E prestou homenagem à coragem do falecido líder da oposição russa, dizendo aos eurodeputados que passem das palavras aos atos. “Se, realmente, querem derrotar Putin, têm de ser inovadores, têm de deixar de ser aborrecidos. Não se pode ferir Putin com outra resolução ou outro conjunto de sanções que não é diferente da última”, clamou, garantindo: “Não se pode derrotá-lo, pensando que é um homem de princípios que tem moral e regras. Ele não é assim. E Alexei percebeu isso há muito tempo. Não estão a lidar com um político, mas com um monstro sangrento.”

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Por fim, é de referir que, durante a última década, o PE liderou a acusação contra o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, e contra o retrocesso democrático que conduziu no país. O tema foi um leitmotiv deste último mandato e de uma resolução a dizer que a Hungria “já não era uma democracia”, o que levou o PE a reagir negativamente à decisão da Comissão de transferir 10,2 mil milhões de euros em fundos de coesão para o governo de Budapeste, congelados devido a preocupações com o Estado de direito. Os eurodeputados alegaram que a reforma judicial do governo de Orbán ficou aquém das condições necessárias e que os tribunais ainda estavam em risco de interferência política. E o facto de a Comissão ter desbloqueado o dinheiro um dia antes de cimeira sobre a Ucrânia, em que Orbán ameaçou com o veto, engrossou a acusação de “acordos de bastidores e de maquinações quid-pro-quo”, o que o executivo comunitário negou. E o PE aprovou a apresentação de queixa em tribunal contra a Comissão, em março de 2024.

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O PE não será exemplar no processo legislativo, mas é de realçar a denúncia que facilita de casos dúbios, sobretudo se passíveis de atuação da Justiça, talvez por estar sob escrutínio de todos.

2024.04.29 – Louro de Carvalho

Jesus é a vide a que devem estar ligados os discípulos como sarmentos

 

A Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Páscoa, no Ano B, fala-nos de Jesus Cristo como a fonte da Vida, de que bebem, unidos a Ele, os discípulos feitos apóstolos, para testemunharem essa Vida em gestos concretos de amor.

No trecho evangélico desta dominga (Jo 15,1-8), que integra o seu discurso de despedida, Jesus apresenta-se como “a verdadeira vide” e convida os discípulos a permanecerem ligados a Ele para receberem a Vida. Jesus, a videira, e os discípulos, os sarmentos, não se ficam na mera decoração do espaço, mas produzirão frutos bons, os que Deus espera. Enquanto se mantiverem unidos a Jesus, os discípulos serão testemunhas verdadeiras, entre os homens, da Vida nova de Deus.

Estamos em Jerusalém, na noite de quinta-feira, antes da celebração da Páscoa judaica, cerca do ano 30. Jesus, reunido com os discípulos à volta da mesa, está cônscio de que os dirigentes judaicos decidiram dar-Lhe a morte e de que a cruz estava no horizonte próximo. Assim, Jesus mandou organizar a ceia de despedida, a preparar os discípulos para o drama que se avizinhava. Não queria que a sua morte os lançasse no caos da desesperança.

Naquele momento, várias questões pairavam no ar. Os discípulos tinham de concretizar o Reino de Deus. Viveriam no Mundo e testemunhariam o que tinham aprendido enquanto caminhavam atrás de Jesus. Podiam e tinham de manter a ligação a Jesus e de continuar a receber d’Ele a Vida de que necessitavam para continuarem a caminhada. Por isso, Jesus conversou longamente com eles e deu-lhes preciosas indicações. Seriam uma comunidade de serviço, poriam no centro de tudo o mandamento do amor (que os identificaria perante o Mundo), teriam o Espírito Santo e a sua paz, nunca ficariam abandonados nem órfãos e continuariam unidos a Ele e entre si. As palavras e os gestos de Jesus, naquela hora, são o seu “testamento”.

O trecho em referência, designado como a “alegoria da videira (ou vide) e dos ramos”, integra o “discurso de despedida”. Esta alegoria tem profundas conotações veterotestamentárias e assume grande significado no universo religioso judaico. No Antigo Testamento – sobretudo nos Profetas – a videira e a vinha eram símbolos do Povo de Deus. Israel era como que a videira que Javé arrancou do Egito, que transplantou para a Terra Prometida e da qual sempre cuidou com amor. Era a vinha que Deus plantou com cepas escolhidas, de que Ele cuidou e da qual esperava frutos abundantes, mas que só produziu frutos amargos e impróprios. A antiga videira ou vinha de Javé revelou-se uma verdadeira desilusão: não produziu os frutos que Ele esperava.

Jesus apresenta-Se como a verdadeira videira, a que estão ligados os ramos, que são os seus discípulos. Esta videira, com estes ramos, forma, portanto, o novo Povo de Deus. Da ação criadora e vivificadora de Jesus nasce o novo Povo de Deus, a comunidade do Reino. Deus continua a ser o agricultor que trata bem a sua vinha. Desta união vital nascerão bons frutos, os frutos que Deus espera, os mesmos que Jesus produziu quando andava pelos caminhos da Galileia e da Judeia a anunciar o Reino de Deus, a curar os doentes, a libertar os que viviam prisioneiros, a dar Vida a todos os que estavam privados de Vida. Se algum dos ramos não der bons frutos, o agricultor (Deus) terá de o cortar. Esse ramo não recebe Vida da videira ou não deixa que essa Vida se traduza nos frutos que Deus espera. Está, assim, a autoexcluir-se da comunidade de Jesus.

Em contrapartida, Deus, o agricultor, cuidará de todos os ramos que dão bons frutos, para que, pelo processo de limpeza (conversão) nunca terminado, se libertem, cada vez mais, do egoísmo e deem frutos, cada vez mais abundantes, de amor e de Vida.

Para que o dinamismo de Vida se concretize, os ramos devem permanecer ligados à videira, pois, como não têm vida própria, não podem produzir frutos por si próprios, mas precisam da seiva da videira. Têm, pois, os discípulos de permanecer em Jesus. O verbo “permanecer” (“ménô”) é uma das palavras-chave do texto (do v. 4 ao v. 8, aparece sete vezes), que exprime a confirmação ou renovação de atitude já antes assumida. Supondo que o discípulo já tenha aderido a Jesus, pretende-se que a adesão adquira solidez, estabilidade, constância e continuidade. É um convite a que o discípulo mantenha a adesão a Jesus e a identificação e a comunhão com Ele. Se o discípulo mantiver a sua adesão, Jesus permanece no discípulo, isto é, continuará fielmente a oferecer ao discípulo a sua Vida, o seu Espírito.

O discípulo permanece em Jesus, se continua a escutar as suas palavras, a acolhê-las no coração, a pautar a sua vida por elas, a ver os gestos que Ele fazia e a desenhar, a partir deles, o seu estilo de vida. O discípulo permanece em Jesus, se não O perde de vista e caminha atrás d’Ele, numa adesão todos os dias renovada. Há uma asserção de Jesus, no “discurso do Pão da Vida”, que pode iluminar o sentido do permanecer unido a Jesus: “Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele” (Jo 6,56). A carne de Jesus é a sua vida, o seu sangue é a sua entrega por amor até à morte. Assim, “comer a carne e beber o sangue” de Jesus é assimilar a sua existência, feita serviço e entrega por amor, até ao dom total de si; é comprometer-se com uma existência feita entrega a Deus e aos irmãos, até à doação completa da vida por amor. E a Eucaristia, em que comemos a carne e bebemos o sangue de Jesus, é a celebração renovada da nossa comunhão e do nosso compromisso com Jesus.

É preciso frisar que a união com Jesus não é automática, que chega no Batismo e que fica para sempre. Depende, antes, da decisão livre e consciente do discípulo, que tem de ser continuamente renovada e assumida.

É possível que os discípulos se mantenham ligados a Jesus e recebam d’Ele Vida, mesmo depois de Ele deixar de caminhar fisicamente no meio deles, porque Ele lhes garantiu que seria sempre a “verdadeira videira” onde os discípulos (os “ramos”) encontram Vida em abundância. Porém, os discípulos têm de permanecer ligados a Jesus, de continuar a escutar as suas indicações e de continuar a assumir, em cada passo da vida, o seu estilo de viver e de amar.

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primeira leitura (At 9,26-31), ao relatar a inserção de Paulo de Tarso na comunidade cristã de Jerusalém, lembra-nos que a experiência cristã se constrói em comunidade. É no diálogo e na partilha com os irmãos que a fé nasce, cresce e amadurece. A comunidade cristã deve ser a casa de portas abertas, onde todos têm lugar e podem fazer, de mãos dadas com os outros irmãos, a experiência de encontro com o Ressuscitado.

O trecho em apreço situa-nos em Jerusalém, logo após o regresso de Paulo. Inclui, num versículo final, um breve sumário da vida da Igreja, como tantos outros, através dos quais Lucas faz um balanço da situação e prepara os temas que vai tratar nas secções seguintes.

Na sua narração, o autor dos Atos dos Apóstolos apresenta um conjunto de informações históricas sobre o acolhimento de Paulo pela comunidade de Jerusalém, após a sua fuga de Damasco. Porém, Lucas, além das informações históricas, deixa entreler algumas interrogações e desafios aos membros das comunidades cristãs – do seu tempo e de todos os tempos e lugares – sobre a forma de viver e de testemunhar, em comunidade, a fé em Jesus.

A desconfiança dos cristãos de Jerusalém em relação a Paulo (“todos o temiam, por não acreditarem que fosse discípulo”) decorre do que os cristãos de Jerusalém sabiam do passado de Paulo. Todavia, sem ser demasiado direto, Lucas põe as comunidades cristãs de sobreaviso para um perigo real: o medo do risco, a excessiva prudência e a instalação nos velhos esquemas de sempre, podem ser obstáculos ao acontecer do hoje de Deus. Se a comunidade cristã de Jerusalém tivesse decidido, por medo ou prudência excessiva, fechar as portas a Paulo, tê-las-ia fechado ao dom de Deus e à novidade do Espírito, o que teria empobrecido imenso a Igreja de Jesus.

O esforço de Paulo em integrar-se (“chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos”) mostra a importância que dava ao viver em comunidade, à partilha da fé. O cristianismo não é só encontro pessoal com Jesus; é também a experiência de partilha da fé e do amor com os irmãos que aderiram ao mesmo projeto e que são membros desta grande família. No diálogo e na partilha comunitária, questionamos os limites dos entendimentos pessoais, enriquecemo-nos com a experiência dos irmãos, ajudamo-nos mutuamente a vencer as dificuldades, discernimos as sendas do Espírito e purificamos a nossa experiência de fé.

O papel de Barnabé na integração de Paulo é significativo (“Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos apóstolos e contou-lhes como Saulo, no caminho, tinha visto o Senhor”): acredita em Paulo e leva a comunidade a acolhê-lo. Mostra o papel de cada cristão na integração comunitária dos irmãos, inclusive dos que, pelo seu percurso de vida, foram rotulados e afastados, e mostra que é tarefa do crente questionar a comunidade e ajudá-la a descobrir os desafios sempre novos de Deus.

Fica realçado o entusiasmo com que Paulo dá testemunho de Jesus e a coragem com que enfrenta as dificuldades e oposições resultantes do seu testemunho – atitude que vai caraterizar toda a sua vida apostólica. O verdadeiro encontro com Jesus resulta no testemunho do Evangelho. Paulo está consciente de que foi chamado por Jesus, de que recebeu de Jesus a missão de anunciar a salvação a todos os homens, pelo que nada nem ninguém será capaz de arrefecer o seu zelo no anúncio do Evangelho. E Lucas sugere, com esta notícia, que todos os que se encontram com Jesus devem tornar-se testemunhas credíveis e corajosas do Evangelho. É verdade que a pregação cristã suscita o conflito com os poderes interessados em perpetuar as trevas, a mentira, a opressão. A fidelidade ao Evangelho e a Jesus provoca sempre a oposição de quem teme a luz e a verdade. O caminho do discípulo de Jesus é um caminho marcado pela cruz (não caminho de morte, mas de Vida). E os discípulos, cônscios disto, não se deixem paralisar pelo medo.

O sumário final recorda um elemento que está sempre presente no horizonte da catequese lucana: é o Espírito Santo que conduz a Igreja na sua marcha pela história. É Ele que lhe dá estabilidade (“como um edifício”), lhe alimenta o dinamismo (“caminhava no temor do Senhor”) e a faz crescer (“ia aumentando”). E esta certeza deve fundamentar a nossa esperança.

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O texto da segunda leitura (1Jo 3,18-24) pertence a uma secção que poderíamos intitular “Viver como filhos de Deus” (1Jo 3,1-24) e conclui a reflexão sobre o amor aos irmãos, apresentado como consequência da filiação divina.

Na base da vida cristã está o “acreditar em Jesus” e o amar os irmãos “como Ele mandou”. São esses os “frutos” que Deus espera de todos os que estão unidos a Cristo. Se testemunharmos em gestos concretos o amor de Jesus, estamos unidos a Jesus e a vida de Jesus circula em nós.

No versículo que antecede o trecho em apreço, a Carta interpela os crentes: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?” (1Jo 3,17). E, logo a seguir, conclui que o amor aos irmãos não se manifesta em declarações de boas intenções, mas em gestos concretos de partilha e de serviço, em prol dos irmãos. E é assim que se revela a autenticidade da vivência cristã e se dá testemunho do desígnio salvador de Deus.

Se deixamos o amor conduzir a nossa vida, estamos no caminho da verdade. Com o coração aberto ao amor, ao serviço e à partilha, estamos tranquilos porque estamos em comunhão com Deus. Pode a consciência acusar-nos dos erros passados e reprovar algumas das nossas opções; mas, se amarmos, estamos perto de Deus, pois Deus é amor. O amor liberta-nos de todas as dúvidas e inquietações, pois dá-nos a certeza de que estamos na rota de Deus; e se Deus “é maior do que o nosso coração e conhece tudo”, nada temos a recear. Viver no amor é viver em Deus e estar entregue à sua bondade e à misericórdia. Com a consciência em paz e sabendo que Deus nos acolhe e ama (porque acolhemos o amor e nele vivemos), podemos dirigir-Lhe a oração, certos de que Ele nos escuta, pois atende a oração daquele que cumpre os seus mandamentos.

Os dois versículos finais recapitulam o que ficara dito. A exigência basilar da via cristã é crer em Jesus e amar os irmãos. Crer em Jesus e cumprir o mandamento do amor são a mesma questão. Quem guarda os mandamentos (especialmente o do amor, que tudo resume) vive em comunhão com Deus e já possui algo da natureza divina (o Espírito). É o Espírito de Deus que dá aos crentes a possibilidade de produzirem obras de amor.

2024.04.28 – Louro de Carvalho

domingo, 28 de abril de 2024

Eleições europeias: os temas europeus ofuscarão os nacionais?

A pouco mais de um mês das eleições para o Parlamento Europeu (PE), no próximo mês de junho (em Portugal, no dia 9 e, no resto da UE, entre os dias 6 e 9), a grande questão que se levanta é se os eleitores terão em mente a ação da União Europeia (UE) ou o seu país, quando colocarem o seu voto na urna respetiva. Ou seja, os cidadãos votarão por razões nacionais ou europeias?

Em alguns países, como a França, as eleições europeias são apresentadas por alguns como eleições intercalares ou como antecipação das eleições presidenciais; noutros, como Portugal e a Itália (a primeira-ministra italiana o assume), servem para testar o governo em exercício.

As eleições europeias “são, antes de mais nada, eleições intercalares”, diz Jordan Bardella, cabeça de lista do partido de extrema-direita National Rally, que apela à “sanção da Europa de Macron”.

Pascal Perrineau, professor emérito da Sciences Po Paris e autor de “O gosto pela política” (Éditions Odile Jacob), considera: “A tentativa e a tentação são fortes para utilizar as eleições europeias como ‘eleições intercalares’, como se diz nos Estados Unidos da América (EUA), em que as pessoas descarregam a sua raiva sobre quem está no poder. E a extrema-direita europeia joga este jogo quando não está no poder.

“Se eu estiver na liderança, é claro que vou pedir a dissolução da Assembleia Nacional [AN], nessa mesma noite”, disse Bardella, em entrevista à RTL. Mas isso não passa de um desejo, porque, segundo a Constituição francesa, só o Presidente da República pode tomar tal decisão.

“Sim, as eleições europeias de 2024 vão abrir caminho para as eleições presidenciais de 2027”, disse Jean-Luc Mélenchon, que concorre na lista da France insoumise.

Para Éric Maurice, analista político do Centro de Política Europeia, em França, esta é a grande eleição antes da próxima eleição presidencial. Porque é eleição de lista nacional, a tentação de nacionalizar o escrutínio é forte.

Um ano após as primeiras eleições europeias, em 1979, os investigadores Karlheinz Reif e Hermann Schmitt classificaram o escrutínio de “eleição nacional de segunda ordem”. Permitiriam às forças políticas avaliar a sua popularidade, a nível nacional, sobretudo se realizadas a meio do mandato presidencial. Além disso, os investigadores chamam “nacionais” às eleições europeias, por serem organizadas a nível nacional, de acordo com regras nacionais, e oporem candidatos nacionais a candidatos nacionais sobre questões nacionais. O método, o dia e a idade legal para votar ou para se candidatar diferem de um Estado-Membro para outro. Contudo, vários estudos observaram o aparecimento de atitudes europeias, relativamente às eleições para o PE. Céline Belot e Virginie Van Ingelgom, por exemplo, mostraram a existência de uma escolha eleitoral baseada em posições europeias nas eleições europeias de 2014.

Para já, a tendência para a europeização é ligeira. Foi um pouco visível nas últimas eleições europeias de 2019, quando se registou um aumento da afluência às urnas. Então, ficou a impressão de que mais Europeus estavam interessados nas eleições europeias e no poder do PE.

Éric Maurice  refere que as compras conjuntas de equipamento médico e de vacinas, durante a pandemia de covid-19, e a adoção de sanções contra Moscovo, na sequência da invasão, em grande escala, da Ucrânia pela Rússia, mostram que as crises recentes catapultaram, para o primeiro plano, a UE ou, pelo menos, a ação a nível europeu.

Resta saber se isto será suficiente para dar mais visibilidade às questões europeias nas eleições de junho. Com efeito, o trabalho da UE continua a ser pouco conhecido do grande público.

Neste ano, as questões europeias poderão ser ofuscadas pelas questões nacionais nas eleições europeias, enquanto a atenção de muitos países é desviada por outras eleições. Em 2024, estão a ser organizadas cerca de dez eleições nacionais na UE. Na Bélgica, as eleições federais e regionais realizar-se-ão no mesmo dia que as eleições europeias, 9 de junho. Na Finlândia, na Eslováquia, na Lituânia e na Roménia, realizam-se eleições presidenciais em 2024, enquanto, em Portugal, na Áustria e na Croácia, os eleitores são ou foram chamados às urnas para eleições legislativas.

As eleições europeias podem também ser uma oportunidade para os partidos no poder ou na oposição avaliarem a sua popularidade antes de futuras eleições.

A Espanha realizou eleições em 2023. O seu governo é bastante contestado, nomeadamente no que se refere à sua aliança com os nacionalistas catalães. Este é um teste a Pedro Sanchez.

Na Polónia, as eleições legislativas de outubro de 2023 provocaram a mudança de governo, após a derrota do partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS) e a vitória da Coligação Cívica liderada por Donald Tusk. Para o PiS, que foi derrotado no outono, esta será também uma oportunidade para retomar o caminho a nível nacional.

A mesma análise é válida para a Chéquia, onde o partido do antigo primeiro-ministro Andrej Babis, que perdeu as últimas eleições presidenciais, está à frente nas eleições europeias. Para ele, é também a perspetiva de voltar ao poder, talvez nas próximas eleições presidenciais.

É, pois, mais provável que os eleitores votem por razões nacionais, económicas e sociais – neste momento, o aumento dos custos da energia, os problemas da inflação – do que por questões europeias, sejam elas instituições europeias, as políticas europeias ou mesmo a guerra na Ucrânia.

Em França, as questões nacionais prevalecem sobre as europeias, para metade dos inquiridos, segundo uma sondagem da IPSOS para o “Le Monde”, para o Cevipof, para a Fondation Jean Jaurès e para o Institut Montaigne. Afirmaram 53% dos inquiridos que teriam em conta, para determinar o seu voto, “sobretudo as propostas dos partidos sobre questões nacionais”, e 47% sobre questões europeias. Além disso, 52% dos inquiridos afirmaram que “votariam, sobretudo, para manifestar o apoio ou a oposição ao Presidente da República ou ao governo.

De acordo com o estudo, a europeização das preocupações está socialmente dividida. “Em certos círculos – penso, em particular, nos trabalhadores de colarinho branco, nos executivos e nos trabalhadores com menos de 50 anos – há a consciência de que a Europa é mais do que algo distante em Bruxelas ou em Estrasburgo”, explica Pascal Perrineau. “Por outro lado, em certos círculos mais afastados da Europa – penso nos operários, nos empregados, nos desempregados [...] as preocupações nacionais sobrepõem-se muitas vezes às preocupações europeias”, explica o autor de “O gosto pela política”.

Em contrapartida, as questões europeias, como a imigração, a Política Agrícola Comum e o apoio à Ucrânia, também estão a entrar nas eleições nacionais. Além disso, as questões nacionais e europeias estão tão interligadas que, por vezes, é difícil separá-las.

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A maioria dos Europeus prioriza o combate à inflação. Os Portugueses são os mais preocupados com o aumento do custo de vida e as desigualdades. A direita dá mais atenção às questões sociais, na eleição de 2024 do que em sufrágios anteriores, segundo uma sondagem da IPSOS, em exclusivo para a Euronews, a primeira do género a ser realizada em 18 países europeus, na antecâmara do sufrágio europeu.

No contexto da crise inflacionária sentida em 2023, sobretudo no atinente aos alimentos, o aumento do custo de vida preocupa 68% dos inquiridos (mais de um terço). Depois, a maioria dos eleitores (64%) exige a redução das desigualdades e a preservação dos sistemas de proteção social. A preocupação com o bem-estar e o nível de vida está bem presente na mente dos Europeus, com 62% a reclamarem mais crescimento económico. Em quarto lugar nas prioridades, está a luta contra a imigração ilegal (59%), uma das bandeiras da extrema-direita, o que reflete o crescimento desta ideologia na Europa. Logo a seguir, surge o combate ao desemprego (57%). E, por fim, vem a resposta às alterações climáticas (52%).

Os eleitores, com especial incidência no Sul da Europa, estão crescentemente virados para uma UE mais social. De acordo com a referida sondagem, 84% dos Portugueses demonstram maior preocupação, face à subida dos preços. Na segunda posição, aparecem os Espanhóis (76%) e, em terceiro lugar, estão os Italianos (71%), seguidos dos Franceses (69%). 

Na realidade, mais de dois terços dos Europeus (68%) estão preocupados com a alta de preços, apesar do abrandamento registado, em janeiro, em 15 dos 27 países da UE. Só para 7 % dos potenciais eleitores, é que a inflação não é uma prioridade, com os Finlandeses a serem os menos preocupados com o custo de vida. 

Sinal dos tempos de crise é os cidadãos da UE terem um sentimento de empobrecimento geral. Assim, 64% das pessoas querem que o bloco europeu salvaguarde os seus direitos sociais e pedem que as desigualdades sociais sejam reduzidas. Apenas 8 % são contra. 

Os Portugueses (82%) estão, novamente, no topo, enquanto os Polacos são os menos preocupados com as discrepâncias no nível de vida. De Portugal vem também o pedido mais veemente para políticas que estimulem o crescimento económico. Nestes termos, 62% dos inquiridos exigem à UE medidas eficazes para impulsionar o crescimento económico. E os Neerlandeses são os menos favoráveis a qualquer forma de intervenção à escala europeia para robustecer economia.

A direita está mais atenta às questões sociais. Nas eleições de 2024, as questões sociais não são apenas prioridades dos partidos de esquerda e de centro-esquerda. Os  conservadores moderados, os liberais e mesmo os que ainda estão mais à direita parecem reclamar mais intervenção legislativa social e económica da UE do que nos atos eleitorais anteriores. Os partidos de direita, incluindo o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, na sigla inglesa) e, sobretudo, a extrema-direita do grupo Identidade e Democracia (ID), sinalizam a importância de medidas contra a inflação. Já no tocante às desigualdades e à proteção social, os partidos de esquerda e de centro-esquerda são, sem surpresa, os mais exigentes.

As formações da Grande Coligação – Partido Popular Europeu (PPE), Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), Renovar a Europa (RENEW) – são as que querem mais assertividade quando se trata de tomar medidas que estimulem o crescimento económico.

Os líderes da UE para os próximos cinco anos têm de encontrar uma solução para responder às exigências dos cidadãos, que podem exigir mais despesa pública. Assim, não se percebe como algumas listas de candidatos a eurodeputados, em Portugal, são tão pobres.

Os líderes dos dois principais partidos tomaram decisões inexplicáveis sobre as candidaturas às eleições do PE. O líder do Partido Socialista (PS) prescindiu dos nove eurodeputados, onde se contam três ex-ministros e dois ex-secretários de Estado, prescindindo da experiência adquirida em Bruxelas e em Estrasburgo, geralmente bem avaliada, e das posições adquiridas na bancada do S&D e no PE. E o líder do Partido Social Democrata (PSD), como refere o constitucionalista Vital Moreira, prescindiu do presidente da Câmara do Porto, “trocando-o, à última da hora, por um jovem e politicamente incerto comentador político na moda, cujo registo político inclui uma candidatura a deputado nacional pelo CDS [Partido do Centro Democrático Social], há anos”.

Tais decisões, segundo Vital Moreira, “só podem ser explicadas por desconhecimento sobre as exigências do mandato parlamentar europeu – que não é uma ociosa sinecura, como muita gente pensa – e por uma correspondente incapacidade para levar a sério o Parlamento Europeu e a sua importante agenda política no próximo quinquénio”. Além disso, é de realçar que nenhum líder anterior teve necessidade de substituir todos os candidatos; não se conhece hostilidade do grupo de eurodeputados à nova liderança; esta é uma das maiores delegações do PS no PE, preenchendo nove dos 21 eurodeputados portugueses; e o desempenho do grupo é tido como muito positivo.

Prevê-se que o PE, com 720 deputados, após as próximas eleições, mantenha o peso relativo dos dois principais partidos europeus, o PPE e o PSE/S&D; sofra perda significativa de Renovadores (liberais) e de Verdes; e tenha aumento acentuado da representação dos dois partidos mais à direita, isto é, o ECR e, sobretudo, o ID. Portanto, uma deriva à direita, o que devia ter suscitado mais empenho na formação de listas dos partidos democráticos!

2024.04.28 – Louro de Carvalho


sábado, 27 de abril de 2024

A democracia é imperfeita, mas os seus cravos não podem murchar

 

A 24 de abril, a Euronews publicou um artigo de Joana Mourão Carvalho intitulado “50 anos do 25 de Abril: o que ainda falta cumprir da revolução?”, em que reconhece que “Portugal está hoje melhor que há 50 anos”, mas sustenta que “a pouca produtividade da economia, a precariedade no trabalho e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, relativamente a outros congéneres europeus”.

Por outro lado, a 25 de abril, publicou um artigo de Ilaria Frederico, sob o título “Portugal: 50 anos depois da revolução, os cravos estão a murchar?”, considerando que “o dia 25 de abril de 2024 marca o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos, em Portugal”, a revolução que pôs fim a 50 anos de ditadura e deu início a uma era de democracia”. E aponta que a efeméride é celebrada num momento de mudança do panorama política, com o centro-direita a vencer as últimas eleições e a extrema-direita a ganhar terreno. Ora, a mudança à direita não é inédita. O que é excecional é a ascensão da direita radical. Ironicamente, um partido desses tem assento parlamentar com 50 deputados, no cinquentenário da revolução da Liberdade.    

Joana Mourão Carvalho exalta a comemoração dos 50 anos da democracia, com liberdade de imprensa, com eleições livres, com direito à saúde, à greve, ao ensino – as muitas conquistas da revolução. Porém, nas celebrações do 25 de abril, sempre se discute-se o que falta cumprir. 

A historiadora social Raquel Varela, professora da NOVA FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) aponta as concretizações, sobretudo, ao nível do espaço de trabalho, onde os Portugueses exigiram a amplitude de direitos nunca antes existentes, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o sistema educativo, o que, durante muitos anos, significou “avanços qualitativos” a nível social. Ao lado dos direitos, liberdades e garantias, emergiu o Estado social e a segurança e proteção no emprego, tendo muitas dessas coisas retrocedido, a partir do final dos anos 80. Porém, ficou a perceção esperançosa de que é possível viver de outro modo, que não pode ser apagada. “Pode-se voltar atrás nas concretizações materiais, mas não se volta atrás do ponto de vista da ideia em ato”, refere a historiadora.

“A consequência do retrocesso da democracia nos locais de trabalho foi o avanço brutal dos investidores e da remuneração do lucro, que faz com que as pessoas trabalhem 24 horas por dia na indústria, os médicos tenham pessoas, que não são médicos, a dizer quanto tempo devem estar com os doentes, os professores sem uma palavra a dizer sobre o currículo, ou seja uma completa degradação dos serviços públicos e essenciais à nossa vida”, frisa Raquel Varela

Portugal está melhor do que há 50 anos, mas a pouca produtividade, a precariedade e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, face a outros. A produtividade por trabalhador em Portugal é 28% inferior à média dos países da Zona Euro. Há, pelo menos, 10 anos que o país se mantém na cauda da produtividade do espaço da moeda única. Em seis anos, foi ultrapassado pelos três países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e, no contexto da União Europeia (UE), foi ultrapassado pela Croácia, Roménia e Polónia. Porém, ninguém diz a que preço os outros cresceram, nem se acusa a falta de organização do trabalho.

Para a coautora do livro Breve História de Portugal, as causas do problema de produtividade estão ligadas ao facto de o capital ser mais favorecido em detrimento do trabalho. “Há, sobretudo a partir do século XXI, uma intensa degradação dos serviços públicos com uma alta remuneração dos capitais pela via do juro, portanto, por via de empréstimos, da dívida pública, o que vai destruir a capacidade instalada, a capacidade de produzir do país, e também erodir os serviços públicos”, defende.

O produto interno bruto (PIB) per capita do país continua a abaixo da média europeia. Em 2023, segundo o Eurostat, Portugal ascendeu à 18.ª posição entre os Estados-membros da UE, subindo dois lugares, face a 2022, e ultrapassando a Polónia e a Estónia. No entanto, continua à distância de 17%, face à média comunitária. E o historiador económico Nuno Palma sustenta que “Portugal continua na cauda da Europa Ocidental”, sendo o seu país mais pobre. Assim, Portugal “não melhorou a situação relativa que tinha, em termos de ranking dos países, […] é o último, o mais atrasado em termos do capital humano, em termos dos níveis de educação da sua população, continua a ser o último da lista da Europa Ocidental, em termos do funcionamento das instituições políticas”. Porém, está muito diferente do que era antes. Só que a mentalidade tacanha não foi superada e o serviço à comunidade é objeto de menor empenho do que o interesse privado.

Com cinco décadas de vida democrática e há 38 anos na UE, o país terá de repensar a participação no projeto comunitário e diminuir a dependência, face aos dinheiros europeus, já que o previsível alargamento do bloco à Ucrânia e aos Balcãs Ocidentais se traduzirá numa diminuição dos fundos disponíveis para a política de coesão.

Na ótica do professor da Universidade de Manchester e autor do livro As Causas do Atraso Português, estes fundos levam a população a “nem sempre sentir a urgência de mudar” e as empresas a competir, sem “preocupação em criar dinâmicas transformativas para a economia”. Na sua ótica, “em vez de serem a salvação do país”, como são vistos pelos atores políticos, estes fundos podem ter “efeitos muito negativos”, tanto na economia, em particular na parte sujeita à concorrência internacional (os bens transacionáveis), o setor transacionável da economia, como no nosso processo político que existe em Portugal. No fundo, são “pensos rápidos” que escondem as consequências de algumas más decisões.

Além disso, o historiador acusa os dois grandes partidos que governaram em democracia de não terem sido capazes de gerar reformas que levassem o país a convergir com o resto da Europa.

Há quatro anos, Portugal desceu à categoria de “democracia com falhas”; e, desde então, não mais conseguiu regressar ao estatuto de “democracia plena”, em que estava em 2019.

O Democray Index 2023, divulgado pelo Economist Intelligence Unit, da revista The Economist (o Index foi criado, em 2006, para examinar o estado da democracia em 167 países), coloca o país em 31.º no ranking mundial, três posições abaixo do ano passado e o pior resultado desde 2013, devendo-se a queda, sobretudo, à avaliação atribuída ao critério “funcionamento do governo”, que regista a pontuação de 6,79, uma queda substancial, face ao ano passado (7,50). Assim, Portugal é um dos três países da Europa Ocidental classificados como “democracia com falhas”, a par da Bélgica e da Itália.

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Todavia, a revolução é celebrada institucionalmente e popularmente. A Assembleia da República, o Centro Cultural de Belém e o desfile militar, por um lado, e as ruas das principais cidades e vilas, por outro, bem o testemunham.

As pessoas que a viveram, em 1974, recordam os dias de caos e êxtase que Portugal viveu durante a Revolução dos Cravos e fizeram da data cinquentenária um dia memorável, um dia de festa. Até houve quem tenha guardado uma garrafa de vinho do Porto de 1974 e abriu.

A exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro mostra, entre as imagens, uma parada militar, um soldado a retirar um retrato de Oliveira Salazar da sede da polícia e jovens em torno de um tanque com ar jubiloso. Na vasta galeria da Cordoaria Nacional, uma antiga fábrica de cordoaria à beira do Tejo, mergulha-se no passado, enquanto se aquece com a luz e o calor de um dia primaveril.

António de Oliveira Salazar tornara-se presidente do Conselho de Ministros, em 1932, na sequência de quatro anos de ministro das Finanças. Institucionalizou a ditadura, limitando as liberdades civis, impondo censura rigorosa e reprimindo toda a oposição política. Em 1968, sucedeu-lhe Marcelo Caetano, mantendo, sob a capa de modernização do regime do Estado Novo, a sua estrutura autoritária e prosseguiu as guerras coloniais em África, o que levou ao golpe de Estado e ao fim da ditadura, em 1974.

A 25 de abril de 1974, as forças armadas, apoiadas por civis, cansadas e indignadas com o horror das guerras coloniais em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, decidiram mudar de rumo. O povo saiu à rua e, no dia 1 de maio, eclodiu a Festa da Liberdade. A Constituição de 1976 lançou as bases da democracia pluralista. E o panorama político tem alternado entre governos do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, por vezes, com a muleta do Partido do Centro Democrático Social (CDS).

A 10 de março de 2024, o povo virou mais uma página. Após oito anos de governo do PS, as eleições legislativas viram a oposição de centro-direita sair vitoriosa, por margem muito apertada e o Chega, partido da direita radical, obter 18% dos votos, um enorme avanço, face às eleições legislativas de janeiro de 2022. Esse partido tem um manifesto baseado em posições transfóbicas e xenófobas, entre outras, com forte oposição à imigração.

Vasco Lourenço, agora com 80 anos, tinha 31, em 1974. Enquanto capitão do exército, organizou, em Alcáçovas, a 9 de setembro de 1973, a primeira reunião clandestina para o derrube do regime. Compareceram 95 capitães, 39 tenentes e dois outros oficiais, marcando o primeiro passo para a revolução. Diz que os valores que os empurraram e os motivaram permaneceram na sociedade, o que nos permitiu ter 50 anos de democracia, mas não há democracias perfeitas. Acha que o Chega usa as regras democráticas para chegar ao poder, mas a História diz que, se partidos como este chegarem ao poder, tentarão acabar com a democracia. Por isso temos de os combater, dentro das regras democráticas.

Lourenço, ao regressar da campanha da Guiné-Bissau, decidiu jamais pegar em armas. Sentindo-se “instrumento de um poder ilegítimo em Portugal, um regime de ditadura, de repressão”, decidiu usar o seu estatuto militar “para derrubar esse regime”. E, enquanto a tropa se organizava para derrubar a ditadura, figuras menos visíveis difundiam a propaganda antirregime na diáspora.

Muitos dos ativistas foram parar à prisão, onde passaram pela tortura, pela insónia forçada, pela administração de calmantes. Proibido de exercer qualquer atividade política em Portugal, após a detenção, Arnaldo Silva exilou-se em França. Agora, pensa que a ascensão da extrema-direita se deve, sobretudo, a fracassos de governos, que “não conseguiram dar resposta às preocupações das pessoas”. “Os que votam à direita são, muitas vezes, aqueles que já foram de esquerda e mudaram de lado, porque a esquerda não conseguiu resolver os problemas sociais”, observa.

As questões sociais foram prioridades da Amnistia Internacional (AI), em Portugal, na campanha eleitoral de 2024. Consciente dos avanços significativos em matéria de direitos humanos após a revolução e preocupada com o futuro, a AI emitiu recomendações a todos os partidos políticos, que incluíam a educação, o sistema de saúde e a habitação. “Os temas que realmente nos preocupam: a utilização de migrantes e refugiados como bodes expiatórios para assustar a população e ganhar votos”, especifica Pedro A. Neto, diretor-executivo da AI em Portugal, considerando: O racismo existe. Muitas vezes, manifesta-se de forma muito informal, em conversas de café ou nas redes sociais, onde as pessoas falam mal, só por falar. A diferença do Chega é que ele capitalizou esse racismo para torná-lo um discurso oficial. Normalizou este tipo de discurso, que é completamente desrespeitoso.”

Porém, o historiador e professor Ricardo Noronha, da Universidade Nova de Lisboa, sustenta que “a noção ampla de democracia, enquanto conjunto de direitos individuais e coletivos, não está ameaçada pelo facto de a extrema-direita ter conseguido 18% dos votos, nas últimas eleições”.

Entretanto, a Comissão do 25 de abril está a desenvolver esforços significativos para envolver todos os grupos etários neste ato de memória, especialmente os jovens. “Lançámos campanhas nas redes sociais, muito seguidas pelos jovens, como a #NãoPodias, que enumera 13 proibições e restrições anteriores à revolução, como a impossibilidade de votar livremente ou de se organizar politicamente”, explica comissária executiva Maria Inácia Rezola, e professora de História.

Tais iniciativas visam sensibilizar para as liberdades que hoje são um dado adquirido e que outrora eram inatingíveis. “A liberdade é como a saúde: só nos apercebemos da sua importância quando começamos a perdê-la”, diz Vasco Lourenço, admitindo como natural que quem nasceu em liberdade não questione o seu estado. Porém, os cidadãos jamais aceitariam viver sem liberdade. No entanto, temos de nos manter vigilantes, pois a História é cíclica e não podemos permitir que a liberdade volte a ser ameaçada. Segundo Arnaldo Silva, “a juventude portuguesa continua alerta e não deixará que as ambições políticas, económicas ou militares se sobreponham às suas liberdades e ideais”. E Ricardo Noronha confirma o interesse evidente dos jovens por este período histórico: “Quando visitamos escolas […], o entusiasmo dos alunos é palpável. Ao contrário do que se espera, eles ficam atentos, fazem perguntas e compartilham seus pensamentos, às vezes influenciados por narrativas familiares da época”, observa.

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Não há de democracias perfeitas. E, registando-se ainda tantas falhas, a atitude correta não é hostilizar ou desvalorizar o 25 de Abril e deslocar o acento para outras datas, por importantes que sejam. É preciso continuar a pedagogia e antropagogia das liberdades, mobilizar as escolas, os trabalhadores, as empresas e os agentes da ação social e cultural para a batalha permanente da democracia política, económica, social e cultural – nas linhas da produtividade e da solidariedade. A democracia tem falhas em todos os países democráticos, mas os seus cravos, vermelhos e brancos, não podem murchar. Está em causa a dignidade humana!   

2024.04.27 – Louro de Carvalho