A recondução de Ursula von der Leyen
na chefia do executivo da União Europeia (UE) parecia óbvia. Na verdade, o seu
trabalho, nestes cinco anos de mandato, vale-lhe elogios, mas os últimos desenvolvimentos
ameaçam o que parecia certo, pois a sua liderança perdeu brilho, na sequência
da anulação da nomeação de Markus Pieper como enviado da Comissão Europeia para
as pequenas empresas, um nome que fora escolhido por Von der Leyen. Além
disso, é vista como um pouco errática a sua gestão da crise no Médio Oriente.
Assim,
com o horizonte das eleições
europeias por perto, vários pontos de interrogação se levantam sobre a que
parecia a maior certeza para o próximo quinquénio: a recondução de Ursula von
der Leyen para o cargo de presidente da Comissão Europeia. Ou seja, a possibilidade de não obter a
aprovação dos líderes da UE e dos novos deputados europeus, no próximo verão,
tornou-se uma perspetiva realista.
O principal argumento de Von der
Leyen para a sua candidatura é a continuidade e a falta de concorrentes. No
entanto, em Bruxelas, já circulam nomes alternativos e, mais tarde, podem
surgir outros. “É óbvio que há sempre uma grande tentação de encontrar
possíveis situações de fratura e encontrar divisões no Partido Popular Europeu
(PPE), para pôr em causa a reeleição de Von der Leyen”, afirmou a
vice-presidente do grupo parlamentar do PPE, Lídia Pereira, vincando que, nos
últimos cinco anos, a presidente da Comissão levou a cabo “um mandato muito
rico, em situações muito difíceis, com a pandemia e a guerra na Europa”.
Assumiu uma série de
responsabilidades, nomeadamente na coordenação na área da Saúde, que se
traduziu em iniciativas legislativas para robustecer a resposta da UE no plano
da Saúde”, sendo o exemplo mais claro a gestão do processo de vacinação, só
possível fazê-lo de forma célere, porque a presidente da Comissão Europeia
assumiu a responsabilidade da sua coordenação”.
É
consensual, em Bruxelas, que Von der Leyen soube impor-se como líder,
alcançando um capital político na gestão de crises sem precedentes, na História
da construção europeia, que tornariam natural a sua recondução no cargo. Contudo,
embora seja cedo para abordar o tema da futura liderança da Comissão Europeia,
pois é necessário aguardar o resultado das eleições europeias, de junho (em
Portugal, no dia 9 e, no resto da UE, entre os dias 6 e 9), para se ver a
configuração do Parlamento Europeu (PE), já se nota, nos corredores europeus,
um ruído de fundo sobre a possibilidade de Von der Leyen não continuar na
liderança do Executivo comunitário.
O caso mais
recente é o Piepergate, assim denominado em alusão ao nome do eurodeputado Markus
Pieper, do partido conservador alemão (CDU), nomeado como enviado da UE para as
Pequenas e Médias Empresas. Ora, o facto de pertencer à família política
europeia e ao partido alemão de Ursula von der Leyen, levou a nomeação a ser
vista como “favorecimento político”. Para o PPE, que inclui a CDU alemã, “é um
assunto encerrado”, já que o próprio Pieper retirou a sua candidatura, pelo que
o processo de escolha pode continuar.
Não obstante,
a bancada dos socialistas entende que o caso evidenciou fissuras na liderança
de Von der Leyen. Alguns comissários europeus, incluindo alguns dos mais
destacados do Executivo comunitário, manifestaram o seu descontentamento. Foi o
caso do comissário com a pasta da Indústria e Mercado Interno, o liberal
francês Thierry Breton, ou do comissário com a pasta da Economia, o socialista
italiano Paolo Gentiloni, que solicitaram a revisão transparente e colegial do
processo de nomeação. A crítica foi acompanhada, no Executivo comunitário, por
outros dois socialistas: Josep Borrell e Nicolas Schmit – respetivamente, o
chefe da diplomacia europeia e o candidato dos Socialistas e Democratas
(S&D) à presidência da Comissão.
O Comissário
Europeu do Orçamento e Administração, Johannes Hahn, defendeu a nomeação de
Markus Pieper, afirmando que o processo foi transparente e seguiu as regras e
procedimentos estabelecidos. Todavia, a controvérsia alcançou um patamar tal
que o PE votou uma emenda a exigir que a nomeação fosse reconsiderada e o
processo de nomeação “transparente”. A emenda, proposta por membros dos Verdes,
do S&D e do Renovar Europa, marcou a insatisfação pela escolha de Pieper,
que teria sido favorecido, em relação a outros candidatos, incluindo mulheres,
de Estados-membros com menor representação e com melhor qualificação.
A este caso
junta-se o que corre na Justiça, sobre a transparência na aquisição de vacinas,
levando a que Von der Leyen tenha ficado fragilizada, num contexto em que
“precisará sempre” do voto favorável de outras famílias políticas, como os
socialistas, os verdes e os liberais. Porém, mesmo fora da família política de
Von der Leyen, alguns, como o socialista Pedro Marques, reconhecem que a
presidente “fez um trabalho muito sólido”, no primeiro mandato. Exemplo disso é
o papel importante da Comissão na pandemia, quando era preciso unir os
europeus, ou a unidade que Von der Leyen conseguiu no Conselho, após a agressão
russa à Ucrânia.
Por outro
lado, a reação hesitante de Von der Leyen, que tardou em condenar a resposta de
Israel aos ataques do Hamas, gera mais divergência na segunda maior força
política no PE. Contudo, mantém-se a ideia de que Ursula von der Leyen “será
sempre uma candidata forte”, apesar de, quando foi eleita como Spitzenkandidat (cabeça
de lista) pela maior família política no PE, no congresso do PPE, a 7 de março,
em Bucareste, na Roménia, a aparente certeza num segundo mandato ter sido questionada,
de imediato, pelo comissário Thierry Breton, que destilou todo o seu azedume
numa mensagem na rede social X, com o
detalhe curioso de ser a conta oficial como comissário da Indústria e Mercado
Interno.
De acordo
com os dados apresentados pelo PPE, 737 delegados tinham direito de voto, mas
só 591 se registaram para votar. Von der Leyen recolheu 400 votos a favor e 89
contra.
“Apesar das
suas qualidades, Ursula von der Leyen foi superada pelo seu próprio partido”,
publicou Breton no X. “O próprio PPE
parece não acreditar na sua candidata”, continuou Breton, levantando a
possibilidade de Von der Leyen não continuar como presidente da Comissão.
Para a eurodeputada Lídia Pereira, foi um gesto de grande deselegância e de grande
infelicidade, desde logo por se tratar de um colega de Von der Leyen e que faz
parte da sua equipa, quando se exigia maior recato no papel de comissário. “Cada
um tem as suas agendas”, salienta Lídia Pereira, admitindo que, sendo Thierry
Breton alguém que é “conhecido por fazer o seu finca-pé”, pode “ter sido
enviado por [Emmanuel] Macron [presidente de França] para fazer aquele número”.
“Acho que Macron tem sido dos piores líderes europeus da História. Associado ao
chanceler alemão, mas em particular a Macron, que se assume como europeísta
convicto, mas não fez, nos últimos anos, mais do que garantir única e
exclusivamente os interesses franceses”, afirmou, considerando que Macron “pode
estar melindrado com alguma coisa que não tenha conseguido”.
A recondução
para segundo mandato não é tradição na UE, embora haja exceções, como Jaques
Delors que, entre 1985 e 1995, cumpriu três mandatos, um dos quais de dois
anos. Também Walter Hallstein, o primeiro presidente da Comissão da então
Comunidade Europeia, esteve no cargo entre 1958 e 1967, num longo mandato. Recentemente,
vários líderes estiveram à frente das instituições por mais de um mandato, por
exemplo, Durão Barroso, que liderou a Comissão Europeia entre 2004 e 2014. E, no
Conselho Europeu, o cargo de presidente, criado com o Tratado de Lisboa, teve
já três líderes e todos repetiram o mandato.
***
Perfilam-se vários
candidatos à presidência da Comissão, surgindo, em primeiro lugar, o italiano Mario Draghi, de 76 anos. O
ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE) e primeiro-ministro de Itália,
entre fevereiro de 2021 e outubro de 2022, foi apontado a presidente do
Conselho Europeu, mas o facto de já estar de volta a Bruxelas, onde está a
trabalhar num plano para tornar a UE mais competitiva, dão-no como hipótese
para a Comissão. Próximo do presidente francês, Emmanuel Macron, a sua ausência
de filiação política pode ser uma desvantagem, com o PPE a hesitar em deixar o
cargo nas mãos de alguém sem lealdades claras.
Se Von der
Leyen não avançar, outras mulheres do PPE podem ter a sua hipótese, com maltesa Roberta Metsola, atual presidente do
PE, a liderar a lista. Eleita pela “Time” como uma de cem líderes emergentes
que ajudaram a definir o Mundo, em 2023, manteve-se acima das disputas
políticas e assumiu um papel de liderança na política externa, tendo sido a
primeira líder da UE a visitar Kiev, após a invasão russa. Tem carisma e juventude,
mas falta-lhe experiência em cargos executivos. A par disso, a ilha onde nasceu
tem pouco peso político em Bruxelas.
O presidente romeno, Klaus Iohannis, é elogiado tanto por Macron como por Olaf Scholz e é apreciado pelos líderes
conservadores da UE, por ter mantido o seu país próximo do campo pró-europeu e
pró-Ocidente. Tem a seu favor o facto de muitos acharem que chegou a hora de um
dirigente de um país de Leste liderar a Comissão Europeia. Se Von der Leyen não
avançar, ele contará com o apoio do PPE. Tudo dependerá do desfecho da corrida
a secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), em que protagonizou
o desafio ao neerlandês Mark Rutte, o favorito que tem o apoio dos Estados
Unidos da América (EUA).
Há quem veja
na relutância de Macron em declarar apoio a Von der Leyen uma estratégia do
presidente francês para tentar colocar um compatriota à frente da Comissão
Europeia. E Christine Lagarde, presidente
do BCE, surge bem colocada, devido à sua experiência em cargos executivos. Além
desse lado mais económico, é mulher. Contra ela joga o facto de não ser muito
popular junto da equipa no BCE, além de a própria nunca ter deixado
transparecer o desejo de deixar a liderança daquela instituição antes do fim do
mandato de oito anos, que termina em 2027.
Caso Von der
Leyen caia, o PPE pode fazer avançar o primeiro-ministro croata, Andrej Plenkovic, para a
presidência da Comissão. A sua candidatura às europeias pelo seu partido HDZ
leva alguns analistas a pensar que pode estar cansado da política nacional. E
os oito anos à frente do governo deram-lhe a experiência e as relações
necessárias em Bruxelas.
E há outros possíveis candidatos. Basta
recordar o que aconteceu em 2019, com a escolha de Von der Leyen, para perceber
que o processo de escolha dos líderes das instituições europeias pode estar cheio
de surpresas. E, sem falar num eventual nome saído da cartola de última hora,
há outros que surgem nas listas de potenciais candidatos, a começar pelo
francês Thierry Breton. O comissário da Indústria e do Mercado Interno não se
coibiu de criticar a chefe; e, se algumas fontes dizem que terá sido criticado
por Macron, outras garantem que o presidente francês não terá ficado muito
incomodado. Outro candidato pode ser o primeiro-ministro grego, Kyriakos
Mitsotakis, cuja experiência e popularidade no PPE e o facto de ser poliglota
jogam a seu favor.
O certo é
que o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR, na sigla inglesa),
de direita, decidiu não apresentar candidato à presidência da Comissão. Em comunicado, adiantou que a decisão
de não apresentar candidato principal (‘spitzenkandidat’) ao cargo ocupado por
Von der Leyen foi tomada por unanimidade pela liderança do grupo, presidida
pela primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. Tal decisão prende-se com o
facto de o sistema ter sido contornado, em 2019, com a escolha de Ursula von
der Leyen, que não estava na corrida. Por outro lado, o ECR não é favorável ao
sistema de “spitzenkandidat”, de tendência federalista, e sustenta que a
escolha do presidente da Comissão se mantenha como prerrogativa do Conselho
Europeu.
O ECR proclama a soberania dos Estados e defende prioridades como o reforço da indústria de defesa da UE, a cooperação com a NATO e o investimento em tecnologia e segurança.
***
Na UE, a
mediocridade leva a que se gaste muita energia nos jogos de poder, tal como nos
seus Estados-membros. Nem sempre a competência é o critério principal.
2024.04.26 – Louro de Carvalho
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