A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS)
conclui pela identificação de várias irregularidades no caso das gémeas
luso-brasileiras que tiveram acesso a um medicamento de cerca de quatro milhões
de euros, pelo que envia o relatório segue para o Ministério Público (MP), que apurará
se foi cometido algum crime no processo de tratamento.
Recorde-se que as crianças em causa receberam o
referido tratamento em 2020 – caso que envolveu o filho e, à partida, o próprio
Presidente da República (PR), que cedo se descartou da questão. O caso
foi levantado pela TVI, em
reportagem, nos princípios de novembro de 2023, focado numa alegada intervenção
do PR. Contudo, as suspeitas de uma alegada cunha por parte de
Marcelo Rebelo de Sousa foram sucessivamente negadas à TVI e à CNN Portugal.
Uma das falhas foi, desde logo, a marcação da
primeira consulta, alegadamente, pela Secretaria de Estado da Saúde.
Nas
conclusões do relatório, divulgadas a 4 de abril, a IGAS refere que “não foram
cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de
neuropediatria”, uma vez que a marcação da consulta não cumpriu a portaria que
regula o acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), a Portaria
n.º 147/2017, de 27 de abril. Porém, conclui que a prestação de cuidados de
saúde às crianças decorreu “sem que tenham existido factos merecedores de
qualquer tipo de censura”.
O
caso das duas gémeas residentes no Brasil que adquiriram nacionalidade
portuguesa e receberam em Portugal, em 2020, o medicamento Zolgensma, com um
custo total de cerca de quatro milhões de euros, foi divulgado pela TVI, em
novembro, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República
(PGR).
O
processo de inspeção encontra-se “na fase de acompanhamento destas
recomendações”, acrescenta a IGAS, na nota adrede emitida. Com efeito, o
relatório do processo inspetivo emite três recomendações dirigidas à Unidade
Local de Saúde (ULS) de Santa Maria, ao Infarmed – Autoridade Nacional do
Medicamento e Produtos de Saúde e à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde,
dando o prazo de 60 dias para a sua aplicação.
À
ULS de Santa Maria, a IGAS recomenda que garanta o cumprimento, no acesso de
utentes à primeira consulta de especialidade, dos requisitos previstos na lei (Lei
n.º 15/2014, de 21 de março, com a redação que lhe foi dade pelo
Decreto-Lei n.º 44/2017, de 20 de abril; e a portaria já referida), que define que o
encaminhamento (referenciação) para primeira consulta de especialidade
hospitalar pode ser feito a partir das unidades funcionais dos Agrupamentos de
Centros de Saúde (ACES) ou por outros serviços hospitalares da mesma
instituição ou de outra do SNS. Prevê ainda que a referenciação possa ser feita
a partir do Centro de Contacto do SNS, das unidades e equipas da Rede Nacional
de Cuidados Continuados Integrada (RNCCI) ou de entidades externas ao
SNS.
À
Secretaria-Geral do Ministério da Saúde recomenda que “assegure que a
documentação que lhe é encaminhada por parte dos gabinetes dos membros do governo,
para tratamento, foi objeto de despacho pelo membro do governo, ou pela pessoa
do gabinete na qual tenha sido delegada essa responsabilidade”.
Ao
Infarmed, enquanto regulador do medicamento, recomenda que cumpra o circuito de
submissão, avaliação e aprovação dos pedidos de autorização de utilização
excecional (AUE), nos termos do previsto no regulamento sobre a AUE prevista no
Estatuto do Medicamento.
***
António Lacerda Sales, ex-secretário de Estado, especialmente visado, critica
a IGAS, por ter dado menos valor à sua palavra do que à da sua secretária
pessoal, que contactou o Hospital de Santa Maria para agendar a consulta das
gémeas. “Qual o motivo para a inspeção-geral dar mais credibilidade ao
depoimento da secretária pessoal do que ao do secretário de Estado da Saúde”,
questiona Lacerda Sales, no contraditório que integra o relatório sobre o caso.
Na sua ação inspetiva, a IGAS concluiu pela ilegalidade do acesso à
consulta de neuropediatria das gémeas que receberam, em Santa Maria, um
medicamento de milhões de euros. “Não foram cumpridos os requisitos de
legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria” uma vez
que a marcação – feita através da Secretaria de Estado da Saúde – não cumpriu a
portaria que regula o acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde (SNS),
refere a IGAS.
Lacerda Sales contesta diversos pontos do documento e diz que, ao invés do
afirmado pela sua secretária pessoal, nunca solicitou a marcação de qualquer
consulta.
Lembra que a sua secretária pessoal tinha
exercido funções no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) – que
pertencia ao Hospital de Santa Maria – e, por isso, poderia já ter conhecimento
do caso das gémeas, cujos pedidos de ajuda começaram em setembro de 2019.
A IGAS refere que o ex-secretário de Estado teve conhecimento do caso das
duas crianças gémeas, após reunião realizada, a 7 de novembro de 2019, com Nuno
Rebelo de Sousa (filho do Presidente da República), na qual lhe foi solicitada
a colaboração para a obtenção de tratamento com o medicamento Zolgensma. E
escreve que, em data por apurar, “mas situada entre 7 e 20 de novembro de 2019”,
o ex-secretário de Estado solicitou à sua então secretária pessoal que
contactasse telefonicamente a Nuno Rebelo de Sousa, que pretendia que fosse
marcada uma consulta para duas crianças no Hospital de Santa Maria, tendo-lhe
fornecido o número telefónico para o efeito, informação que Lacerda Sales nega.
Na sequência deste contacto – diz a IGAS – a secretária pessoal, “obteve
informação, que remeteu para o CHULN, EPE, de acordo com as orientações do SES
[secretário de Estado da Saúde], quanto à identidade das crianças, data de
nascimento, diagnóstico e datas em que os pais poderiam estar presentes no
referido hospital”. E, “apesar de o então SES negar o seu envolvimento na
obtenção de informação sobre as gémeas junto do Dr. Nuno Rebelo de Sousa e
posterior encaminhamento para o CHULN, EPE, para marcação de consulta, não se
descortina como a sua secretária pessoal, atento o seu grau de autonomia,
poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas e da sua
informação pessoal e comunicado com o CHULN, EPE, que não fosse através do modo
e contactos referidos”, acrescenta a IGAS.
Sobre este contacto da sua secretária pessoal com o Santa Maria, Sales sublinha
o facto de não constar ‘em CC’ (com conhecimento) no email e questiona: “Porque
é que não existe qualquer indicação no mail de que o mesmo foi enviado a pedido
do SES? Não seria prudente, considerando que a então secretária estava ali, no
exercício das duas funções, há pouco mais de 15 dias?”
Lacerda Sales chega a abordar a forma como a
secretária pessoal se dirige à diretora do departamento de pediatria (“Cara
Prof. Isabel Lopes” e “Mais uma vez muito agradeço a sua preciosa ajuda”)
questionando: “Qual o grau de intimidade entre as intervenientes? Já se
conheciam anteriormente?”.
E, no final do contraditório, Lacerda Sales pergunta: “ Porque é que o
projeto de relatório, considerando o vários contactos prévios ao email do dia
20 de novembro de 2019, não equaciona outra hipótese que fosse determinativa
para o agendamento das consultas? Pela Casa Civil ou outros colegas ou outras
instituições de saúde?”.
***
Divulgado o teor do relatório da IGAS, o líder do Chega, André Ventura,
veio, de imediato, a terreiro comunicar que o seu partido vai avançar com o
pedido para a realização de uma comissão de inquérito parlamentar (CPI). “Tomei
a decisão de pedir aos serviços técnicos do partido que avançassem com pedido
de comissão de inquérito parlamentar ao caso das gémeas. Faço-o, porque entendo
que é importante que haja escrutínio, independentemente dos decisores políticos
envolvidos. Faço-o porque este caso implicou, para os contribuintes, um custo
de vários milhões”, justificou André Ventura, em declaração aos jornalistas na
Assembleia da República (AR), vincando que “esta comissão de inquérito não é contra
ninguém”, mas “para apurar a verdade”
De acordo com André Ventura, uma das conclusões do relatório “é [a] de que
todos os intervenientes deste processo ou favoreceram ou cometeram
irregularidades no acesso, no acompanhamento e no acesso ao tratamento das
gémeas luso-brasileiras no sistema de saúde português”.
O relatório do IGAS, prossegue André Ventura, concluiu que “o acesso à
primeira consulta” aconteceu “não cumprindo as regras habituais do SNS nesta
matéria, mas sim através de um pedido da secretaria de Estado da Saúde, então
ocupada por Lacerda Sales”. “Com o respeito que todos os protagonistas
políticos merecem, é risível o argumento de que uma secretária por sua própria
iniciativa ou vontade fosse marcar uma consulta para umas gémeas que vivem do
outro lado do mundo”, comentou.
O presidente do Chega acrescentou que o “relatório vai mais longe e mostra
que o diretor clínico do hospital, à altura, teve uma influência, também ela
através de irregularidades, no processo que levou à consulta e depois à
aplicação do medicamento”.
O líder do Chega disse que o “Infarmed mentiu a esta casa [AR], pois disse
que todo o procedimento tinha sido normal e habitual”. Ora, “o relatório não
deixa margem para dúvidas, o processo de atribuição do medicamento no Infarmed
teve irregularidades, não seguiu a via normal, não foi solicitado através do
sistema informático normal, mas através de um email”, frisou.
“Chegados a este ponto, é importante que o poder político não fique imune”,
salientou Ventura.
Além deste caso, o Chega quer que esta CPI apure também “se há casos
parecidos em Portugal, noutras zonas do país, noutras áreas, que têm custado
milhões aos cofres dos contribuintes”.
André Ventura revelou que vai contactar as bancadas do Partido Socialista
(PS) e do Partido Social Democrata (PSD), para tentar que estes partidos apoiem
a sua proposta, dizendo esperar um consenso sobre esta matéria. Porém, não for
possível e a proposta for rejeitada em plenário, o Chega avançará com uma
comissão potestativa, de caráter obrigatório.
***
A IGAS identificou irregularidades no acesso à primeira consulta, não as
detetando na aplicação do tratamento. Aliás, esta segunda parte nunca esteve em
causa. Com efeito, as dúvidas que se levantaram diziam respeito à consecução
recorde da nacionalidade portuguesa (os seus agentes, pelos vistos, são
ignorados no relatório) e à marcação da primeira consulta, casos em que se criticava
a eventual não observância da igualdade de oportunidades, bem como a alegada intervenção
do PR, a pedido do filho, hipótese cujo descarte, da parte do Chefe de Estado,
parece ter sido acolhida. É certo que também se criticava a administração do Zolgensma, pelo facto de poder ser incompatível, ou de pequeno efeito,
com o tratamento a que as gémeas foram sujeitas no Brasil, bem como por ter
havido casos em que o medicamento não terá sido dispensado gratuitamente a crianças
com igual doença.
Por isso, entende-se que a IGAS faça recomendações ao hospital e
ao Ministério da Saúde, mas não ao Infarmed. André Ventura assinala o facto de
o medicamento não ter sido requisitado pela via informática normal do sistema,
mas por email. Não me parece de todo censurável. Quando o sistema não responde,
exploram-se outras vias. Conheci o caso de utente a quem devia ser ministrado,
no hospital, um medicamento. Só ao chegar lá, lhe foi dito que não o podiam
administrar, porque o médico não o requisitara à farmácia. Se calhar, era possível
resolver o assunto na hora. Porém, o utente teve de voltar noutra ocasião.
Seja como for, o caso das gémeas foi visto pela IGAS, segue para
o MP e deve ser discutido na AR. Porque implica detentores do poder político stricto sensu, não vale argumentar com o
“à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política”. Entende-se que
António Costa o tenha adotado para se demarcar de Sócrates e que, por coerência
pessoal, se tenha demitido do cargo de primeiro-ministro, mas o aforismo não é
doutrina, nem goza de validade universal. Tudo o que é política deve ser discutido
politicamente.
2024.04.04 – Louro de
Carvalho
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