Os membros do Parlamento Europeu (PE) regressarão aos 27 países
de origem e alguns deverão entrar em campanha para eventual reeleição, no
escrutínio que decorrerá de 6 a 9 de junho, para a escolha de 720 eurodeputados
para o mandato de 2024 a 2029.
Para muitos, este período eleitoral representará uma pausa –
para alguns o termo de uma carreira ou de uma experiência europeia –, após
cinco anos a navegar por notória sucessão de crises na União Europeia (UE) e em
todo o Mundo, que exigiram atos legislativos complexos e reformistas e
obrigaram à digestão de alguns escândalos. Assim, o PE realizou a última sessão plenária do seu 9.º mandato, que decorreu de
2019 a 2014. E, em jeito de
balanço, a sua presidente, Roberta Metsola, declarou à Euronews: “Nunca teria sido capaz de
prever o quanto conseguimos alcançar, mas também quantas crises e desafios
tivemos de superar e lidar.”
A IX Legislatura, que
está prestes a terminar, foi marcada por alguns episódios que merecem registo,
nem todos pelos melhores motivos.
O primeiro foi a
confirmação de Ursula de Von der Leyen como presidente da Comissão
Europeia. Ela veio do nada, por assim dizer, para a cena europeia. Nascida em
Bruxelas, a cidadã alemã era figura quase desconhecida na sede das instituições
da UE, até ao verão de 2019. Servira no governo federal da chanceler Angela
Markel, como detentora de várias pastas ministeriais, tendo sido a última a da
Defesa. A sua ascendência ocorreu, de súbito, depois de o Conselho Europeu, sob
a influência do presidente francês, Emmanuel Macron, ter rejeitado o líder do
Partido Popular Europeu (PPE), Manfred Weber, para presidir à Comissão. Porém,
como o centro-direita ganhara as eleições, Macron sugeriu o nome de Ursula von
der Leyen, elogiando-a como conservadora pragmática que satisfaria as fações
liberais, socialistas e verdes, no que até Viktor Orbán, líder da Hungria,
concordou. O PE reagiu criticamente
ao desmantelamento do sistema Spitzenkandidaten (método
de vincular a escolha do presidente da Comissão às eleições para o PE),
a que Macron se opôs veementemente. Não obstante, Von der Leyen foi confirmada,
mas só com 382 votos a favor, apenas nove acima dos 374 exigidos.
Outro episódio está conexo com o Brexit, difícil de digerir por Bruxelas. A saída do Reino
Unido da UE foi um exercício prolongado que testou os limites da boa vontade eurodiplomática.
A sua pertença cessou a 29 de janeiro de 2020,
quando os eurodeputados aprovaram o acordo de saída oficial da UE, após 47
anos, tornando-se este o primeiro Estado a deixar a união. E, após o anúncio dos
resultados da votação (621 a favor e 49 contra), os eurolegisladores
levantaram-se e cantaram, de mãos dadas, um resgate de “Auld Lang Syne”,
popular canção escocesa que evoca o fim de longa amizade. Poucos dias depois, o
PE redistribuiu os lugares dos 73 eurodeputados britânicos.
Depois, surgiu a saga
de József Szájer, eurodeputado eleito, por cinco vezes, pelo Fidesz (partido da
Hungria no poder) e censurado, em 2021, por liderar propostas de legislação
anticomunidade LGBT, para proteger as crianças. Porém, foi surpreendido pela
polícia belga numa orgia com 25 homens, num apartamento no centro de
Bruxelas, estando em vigor o confinamento no quadro da pandemia de dovid-19. A
polícia foi ao local, depois de vizinhos se queixarem do barulho.
Segundo o Ministério
Público (MP), tentou escapar à detenção, saindo da casa por uma tubagem no exterior
do edifício e foi encontrado com as mãos ensanguentadas e estupefacientes na
mochila, que não usou. “Lamento ter violado as regras de assembleia. Foi
irresponsável da minha parte. Vou aceitar as penalidades por isso”, confessou,
em comunicado, dias após a demissão.
Outro revés esteve
ligado à pandemia de covid-19. Confrontada com uma pandemia que acontece uma
vez num século, a UE procedeu à compra conjunta de vacinas, entregando muito
dinheiro às multinacionais farmacêuticas. Embora as entregas iniciais tenham
sido compreensivelmente lentas, devido à enorme procura, uma empresa específica
irritou os eurodeputados com os atrasos constantes: a AstraZeneca. A empresa
tinha-se comprometido a fornecer 90 milhões de doses no primeiro trimestre de
2021, mas reviu a entrega para apenas 30 milhões.
O PE procedeu a uma
audição por videoconferência, para interrogar os presidentes executivos das empresas
farmacêuticas, com muitas perguntas sobre produção, sobre autorizações e sobre
horários. E todos apontaram Pascal Soriot, da AstraZeneca, como o principal
culpado. “Como é possível que não tenha ideia?”, questionou a eurodeputada
finlandesa Silvia Modig, que chamou a Soriot “pedaço de sabão”, mercê das suas
declarações confusas sobre entregas.
Posteriormente, a
Comissão processou a AstraZeneca, mas o litígio foi resolvido por acordo.
Chocante, para o PE, foi
o anúncio, na madrugada de 11 de janeiro de 2022, do falecimento de David
Sassoli, o presidente do PE, socialista italiano, de 65 anos, devido a
complicações de saúde.
A notícia abalou Bruxelas,
por ser figura apreciada por todo o espectro político e admirada pelo seu
sorriso fácil e pelo seu caráter caloroso. Por isso, o PE acolheu um evento
comemorativo ainda com os seus membros a usarem máscaras, que abriu com o
elogio fúnebre, feito em Italiano pela sua sucessora, Roberta Metsola, maltesa
de centro-direita. “A Europa perdeu um líder, a democracia perdeu um campeão e
todos nós perdemos um amigo”, disse Roberta Metsola, que acrescentou: “Homem de
grande visão e convicções profundas, soube sempre traduzir os valores em que
acreditava em ações concretas.”
Sassoli foi sepultado
em Roma, após funeral de Estado na Basílica de Santa Maria degli Angeli.
À semelhança de vários parlamentos
nacionais, também o PE foi sensível ao clamor do presidente ucraniano, Volodymyr
Zelenskyy, quando os mísseis russos começaram a cair, reiterada e intensamente sobre
Kiev e o destino da Ucrânia foi suspenso pelo mais fino dos fios. Com efeito, Zelenskyy
concebeu um audacioso realinhamento geopolítico e solicitou a adesão à UE.
Procurando dissipar dúvidas
sobre as suas ambições, Zelenskyy foi a figura central numa sessão extraordinária
do PE, a 1 de março de 2022, e prometeu que “ninguém nos vai quebrar”. “Estamos
a lutar pelos nossos direitos, pelas nossas liberdades e, agora, lutamos pela
sobrevivência. Também estamos a lutar para sermos membros iguais da Europa”,
assegurou Zelenskyy, para clamar: “Provem que estão connosco. Provem que não
nos deixarão sozinhos. Provem que são realmente europeus. E, depois, a vida
vencerá a morte e a luz vencerá a escuridão. Glória à Ucrânia!” Um dos mais
memoráveis discursos proferidos no hemiciclo europeu, tendo até um dos
intérpretes quase começado a chorar.
Um dos escândalos mais escaldantes
do PE foi o ‘Qatargate’, um escândalo como nenhum outro.
O PE já tinha sido
palco de alguns escândalos políticos, mas não esperava a borrasca inédita
que caiu em cima, em dezembro de 2022.
A polícia belga revelou
a existência de corrupção envolvendo grandes quantias de dinheiro e presentes
substanciais, alegadamente pagos pelos governos do Qatar e de Marrocos, para
influenciar a tomada de decisões da instituição. Ambos os países negam qualquer
irregularidade.
O caso levou à prisão a vice-presidente
Eva Kaili, socialista grega em ascensão no PE, juntamente com o parceiro,
Francesco Giorgi, assistente parlamentar. Kaili teria sido “apanhada em
flagrante” a tentar livrar-se de uma mala de dinheiro, com ajuda do pai, o que
levou ao levantamento automático da imunidade e à permanência na prisão, por mais
de quatro meses.
Também foram acusados
Marc Tarabella e Andrea Cozzolino, dois eurodeputados em exercício, e Pier
Antonio Panzeri, ex-eurodeputado, que fecharia, mais tarde um acordo para ter
uma pena mais leve, como contrapartida à disponibilidade de explicar o esquema.
Kaili, Tarabella e
Cozzolino negaram as alegações de Panzeri e contestaram as acusações criminais,
clamando inocência. No entanto, o turbilhão de acusações, de incursões
policiais, de informações confidenciais divulgadas na imprensa e de acusações a
juízes, revelou-se prejudicial para o PE, que estabeleceu um novo código de
conduta para conter uma das suas piores crises de relações públicas. Recentemente,
viu-se confrontado com dois escândalos: o “Russiagate” (um assessor do PE é suspeito de receber dinheiro para intervir na Voz da
Europa a favor da Rússia) e “Chinagate” (um outro assessor
do PE é suspeito de espiar a favor da China).
***
Nem só de casos tristes
ou escandalosos viveu o PE, sendo de assinalar que o mandato 2019-2024 produziu
diplomas legislativos ambiciosos e de longo alcance, alguns das quais foram
intensamente negociados e debatidos até chegarem à linha de chegada. Porém,
nenhum bate a Lei de Restauração da Natureza, para reabilitar, gradualmente, as
áreas terrestres e marítimas da UE degradadas pelas alterações climáticas e
pela atividade humana.
O texto era bastante
discreto em comparação com outras peças do Pacto Ecológico que tinham atraído
maior atenção. Porém, na primavera de 2023, o Partido Popular Europeu (PPE) iniciou
audaciosa campanha para derrubar a lei, aduzindo que poria em risco a produção
de alimentos, aumentaria os preços de retalho e devastaria os meios de subsistência
dos agricultores.
Os pontos de discussão
foram contestados por eurodeputados progressistas, por organizações
ambientalistas, por juristas e até por multinacionais, que disseram que era
indispensável restaurar a Natureza, para manter uma economia próspera e cadeias
de abastecimento sustentáveis. O PPE avançou com polémico impulso nas redes
sociais, alegando que a legislação transformaria a cidade de Rovaniemi,
onde o Pai Natal vive, numa floresta. E, embora o PE tenha aprovado uma
versão diluída da lei, com 329 votos a favor e 275 contra, a batalha abriu
caminho para contestação mais ampla do Green Deal, no período que antecede as
eleições de 2024.
Com as eleições a aproximar-se,
o PE acelerou para fechar o maior número possível de dossiês. O pico ocorreu
em dezembro de 2023, quando os legisladores chegaram a um acordo provisório com
os Estados-membros sobre duas das leis mais significativas do mandato: a Lei
de Inteligência Artificial (IA), uma primeira tentativa mundial de frear a
tecnologia revolucionária, e o Novo Pacto sobre Migração e Asilo, uma reforma
abrangente da política de migração.
A Lei da IA foi concluída,
após negociações ao longo de 35 horas, em três dias consecutivos, para expandir
a lista de práticas proibidas, para não infringir os direitos fundamentais. As
negociações sobre o Pacto de Migração e Asilo foram divididas em várias sessões,
para permitir que o PE e o Conselho da UE (Estados-membros) acordassem sobre cinco
leis interligadas.
Entretanto, Yulia Navalnaya
compareceu no PE, no final de fevereiro de 2024, dias depois de o marido,
Alexei Navalny, ter morrido em circunstâncias suspeitas, numa prisão russa. E prestou
homenagem à coragem do falecido líder da oposição russa, dizendo aos
eurodeputados que passem das palavras aos atos. “Se, realmente, querem derrotar
Putin, têm de ser inovadores, têm de deixar de ser aborrecidos. Não se
pode ferir Putin com outra resolução ou outro conjunto de sanções que não é
diferente da última”, clamou, garantindo: “Não se pode derrotá-lo, pensando que
é um homem de princípios que tem moral e regras. Ele não é assim. E Alexei
percebeu isso há muito tempo. Não estão a lidar com um político, mas com um
monstro sangrento.”
***
Por fim, é de referir
que, durante a última década, o PE liderou a acusação contra o
primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, e contra o retrocesso democrático que
conduziu no país. O tema foi um leitmotiv deste
último mandato e de uma resolução a dizer que a Hungria “já não era uma
democracia”, o que levou o PE a reagir negativamente à decisão da Comissão de
transferir 10,2 mil milhões de euros em fundos de coesão para o governo de
Budapeste, congelados devido a preocupações com o Estado de direito. Os eurodeputados
alegaram que a reforma judicial do governo de Orbán ficou aquém das condições
necessárias e que os tribunais ainda estavam em risco de interferência
política. E o facto de a Comissão ter desbloqueado o dinheiro um dia antes
de cimeira sobre a Ucrânia, em que Orbán ameaçou com o veto, engrossou a
acusação de “acordos de bastidores e de maquinações quid-pro-quo”, o que o
executivo comunitário negou. E o PE aprovou a apresentação de queixa em
tribunal contra a Comissão, em março de 2024.
***
O PE não será exemplar
no processo legislativo, mas é de realçar a denúncia que facilita de casos
dúbios, sobretudo se passíveis de atuação da Justiça, talvez por estar sob escrutínio
de todos.
2024.04.29 – Louro de Carvalho
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