quarta-feira, 30 de março de 2016

A propósito das inovações do Presidente Marcelo

É do conhecimento público o ímpeto inovador do Presidente da República. Algumas das inovações são fruto da espontaneidade; outras são produto de deliberação atempada e com objetivos políticos. Sobre as inovações marcelistas já começam alguns a tirar consequências, que não sei se não passarão de meras hipóteses. Já fiz o meu juízo de valor sobre a antecipação da divulgação das suas escolhas para a Casa Civil e para a Casa Militar da Presidência da República, bem como para o Conselho de Estado, e não me vou repetir.
Sem consequências políticas me parecem inovações como a chegada a pé ao Parlamento para a cerimónia da tomada de posse, bem como a escolha do Vaticano como primeiro Estado a visitar oficialmente e de Espanha, logo em seguida, aliás no quadro da mesma viagem. No entanto, considero o premente interesse da pronúncia sobre o investimento de Espanha na banca portuguesa, não sei se com resultados palpáveis.
Em relação ao Vaticano, não vejo mal algum na reiteração do convite ao Sumo Pontífice para visitar Portugal em 2017. Já Cavaco Silva o fizera em 2013 e não vejo que o Presidente esteja a ultrapassar o Governo nas suas competências, já que o convite não ultrapassou a modalidade verbal. O convite formal e protocolar há de ser emanado pelas vias diplomáticas, no âmbito da condução da política externa que incumbe ao Governo, cabendo à Conferência Episcopal formular o convite a Sua Santidade enquanto líder da Igreja Católica. E, quanto ao beijo do anel, já opinei no atinente à postura de igualdade entre os Estados.  
O prolongamento das celebrações da posse presidencial à cidade do Porto é sinal iniludível da proximidade e do reconhecimento do norte como peça relevante no desenvolvimento do país e como fator integrante da identidade nacional em termos históricos, políticos, sociais e culturais.
De ambivalente validade foi a presença de cidadãos portugueses de ascendência estrangeira na receção ao corpo diplomático. Por maiores que sejamos os seus méritos, a diplomacia não se joga com estes cidadãos. Também esta inovação não constituiu um sinal claro para o Governo no sentido do estímulo ao reforço dos recursos humanos e logísticos a nível de embaixadas e de postos consulares nem ao incremento ao Instituto Camões para a divulgação da língua e culturas portuguesas.
Do meu ponto de vista, é contraindicada a celebração do Dia de Portugal de Camões e das Comunidades fora de Portugal, com a redução ao mínimo das cerimónias em Portugal, quase restritas a uma parada militar, rumando o Presidente e o Primeiro-Ministro, de imediato, a Paris (até há pouco tempo estava também prevista a ida do Presidente da Assembleia da República). Se o Dia de Portugal é encarado com a importância que se lhe deve, a solenidade das celebrações deverá ter a centralidade e a abrangência que merece. Não sei mesmo se a presença do Presidente François Gérard Georges Nicolas  Hollande, em vez da lusa postura provinciana de alinhamento com as autoridades máximas de Portugal em território francês, não será antes uma forma de afirmação da soberania de França e da sua hegemonia sobre os povos que alegadamente a França integra. Quero dizer: as cerimónias de 10 de julho desenroladas no figurino encontrado até agora não se afiguram insuficientes. Atingem mesmo um nível de integração e abrangência sem se cair desnecessariamente em ambiguidades. Com efeito, a parada militar, em que se escuta a voz da hierarquia das Forças Armadas e a do Presidente da República enquanto seu comandante supremo, seguida do imponente desfile, e a sessão solene, em que se disserta sobre o tema da celebração da Pátria escolhido para o respetivo ano e se distinguem cidadãos e/ou grupos que se notabilizaram no serviço cívico ao país ou às grandes causas, são marcas emblemáticas do Dia de Portugal a manter e a reforçar. Deveriam era estender-se para além da cidade escolhida como local das cerimónias e mobilizar as autarquias e as associações cívicas em todo o país. Quanto às comunidades que vivem e trabalham em diversos lugares do mundo, seria de reforçar a solenidade celebrativa do dia 10 de junho, com a presença de representantes do Parlamento, do Governo e mesmo da Casa Civil da Presidência. Porém, a meu ver, Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-Ministro deveriam estar presentes na cidade escolhida para as comemorações.
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Pairou na Comunicação Social como grande inovação a presença de Mario Draghi, Presidente do Banco Central Europeu (BCE), e concomitantemente de Carlos Costa, Governador do Banco de Portugal (BdP), na sessão do Conselho de Estado marcada para o próximo dia 7 de abril. Quanto a este fenómeno, é preciso esclarecer que estas duas figuras públicas, que não estritamente de Estado, não vão participar no Conselho de Estado. O Presidente convidou-as para as ouvir e não para mais. Não têm direito a voto e não vão interferir na formulação do parecer ou pareceres do Conselho de Estado. Ninguém diz, por exemplo, que as entidades que ouvidas no Parlamento, em comissão, participam nas sessões da Assembleia da República.
Também a audição de figuras que não integram o Conselho de Estado não é inovação de Marcelo. Cavaco Silva chamou ao Conselho de Estado Vítor Gaspar, em setembro de 2012, a fim de, enquanto Ministro do Estado e das Finanças, prestar esclarecimentos sobre a crise da Zona Euro e a situação portuguesa; e Jorge Sampaio convidou Vasco Rocha Vieira, em julho de 1996, na qualidade de último Governador de Macau, para fazer ao Conselho de Estado o ponto de situação do processo de transição do território para a administração chinesa, e quis, ainda no âmbito do seu mandato, a presença de Jaime Gama, na sua qualidade de Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros, a fim de prestar informações sobre a situação em Timor-Leste.
O que é efetivamente inovador é a presença do Presidente do BCE (um não português) para falar da situação económica e financeira europeia e do Governador do BdP para falar da situação económica e financeira portuguesa. Este esclarecimento não deslustra o papel galvanizador de Marcelo: o responsável máximo do BCE podia declinar o convite ou fazer-se representar. Por outro lado, significa o interesse de Marcelo pelas questões europeias e a articulação de Portugal com as mesmas, bem como a consideração do estado macroeconómico, numa linha de entendimento e cumplicidade com o Governo e com o Parlamento (os líderes máximos destes dois órgãos de soberania são membros por inerência do Conselho de Estado). É óbvio que nada vai ficar na mesma. A prevalência da política sobre a economia e finanças é um objetivo claro de Marcelo.
Outro aspeto inovador a que o Presidente nos quer habituar parece ser o de pretender explicar-se perante o país sobre a promulgação dos principais diplomas.
Ora, do meu ponto de vista, esta será a inovação mais perigosa, apesar de não ser um pioneirismo inovador. Já Cavaco Silva se explicava demasiado sobre as razões por que promulgava determinados diplomas, sobretudo no caso de diplomas legais ditos fraturantes, tendo chegado a distinguir entre ética da convicção e ética da responsabilidade. Ora, segundo a Constituição, o que o Presidente deve justificar é o veto de diplomas da Assembleia da República e de diplomas do Governo, devendo fazê-lo em mensagem fundamentada à Assembleia a acompanhar a devolução do diploma (vd CRP, art.º 136.º, n.º 1) e em informação por escrito ao Governo, comunicando o sentido do veto, no caso de veto de diploma do Governo (vd CRP, art.º 136.º, n.º 4). Só excecionalmente se justificará a promulgação, por exemplo, no caso de a Assembleia confirmar integralmente o diploma vetado.
Porém, Marcelo em pouco tempo de mandato já se pronunciou, pelo menos sobre três diplomas: o da reposição dos feriados, o da avaliação externa no ensino básico e o do Orçamento do Estado. A este respeito, teria sido melhor o trabalho de bastidores do que transpirar para a opinião pública, por exemplo, a interferência explícita do Presidente através da sua assessora para a educação.
Cavaco Silva, ao contrário de Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio, que o fizeram muito esporadicamente, fê-lo inúmeras vezes, sem mais-valias significativas. Pelo contrário, adicionando essas intervenções a intervenções informais de efeitos ridículos e catastróficos ou às de efeitos políticos nulos e, alguns deles, perversos, cansou os portugueses e desacreditou-se.
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Dir-me-ão que o estilo de Marcelo é incontornável. Não o creio. Ao falar do Orçamento do estado, lembrou que tinha prometido falar dele aos portugueses aquando da promulgação. Depois, o que disse não constituiu novidade. E, se em alguns aspetos foi positivo por assinalar a marca de estabilidade que ele comporta, a dimensão social, a índole de compromisso entre as exigências da maioria parlamentar e as das instituições europeias e o facto de o modelo escolhido ser inspirador (o que lhe confere uma certa autoridade presidencial), também é verdade que evidenciou as suas fragilidades, como: a dúvida de resiliência face às incertezas da crise europeia e mundial, a dúvida sobre a validade das previsões sobre o crescimento da economia e do emprego, a dúvida sobre a viabilidade da sua execução e, mesmo, da sua capacidade de manutenção da coligação de esquerda. É certo que não se referiu expressamente à sorte da coligação, mas deixou-o subentendido para muitos ao dizer que só em 2017 se veria se o modelo foi mesmo inspirador, ou seja, se orçamento se tornou exequível (prognósticos só depois do jogo – disse alguém em tempos). Ademais, a comunicação ao país revestiu-se de um tom informal, quase improvisado, que oscilou entre a recordação do professor e a do comentador.
Ora, o estilo não é tudo, e nas funções de garantia da soberania una e inalienável do Estado até é muito pouco. Lembro-me de um fã de Marcelo, que lhe solicitava publicamente se contivesse no (ab)uso da palavra. Também eu penso que precisamos do Presidente sobretudo quando ele for mais necessário, isto é, em momento de crise política. E se ele já tiver esgotado o repertório…
É que o país não precisa de um professor em Belém, já tivemos um. Precisa do Presidente discreto e a aparecer nos momentos nevrálgicos, quando tudo corre bem, e mui fortemente interventivo quando as instituições democráticas estão em funcionamento deficitário.
Todavia, não concordo com as más-línguas que o apontam como rival do Primeiro-Ministro em protagonismo político pretendendo torná-lo dependente da presidência. Marcelo é Marcelo. E ninguém o vai retirar do seu estilo e ambições. É a política a querer sobrepor-se à economia. Ou será que estaremos condenados a mais uma primavera marcelista de vã memória?
2016.03.30 – Louro de Carvalho


terça-feira, 29 de março de 2016

Espanholização da banca portuguesa ou outro fenómeno?

O Presidente da República manifestou a sua concordância com as diligências do Primeiro-Ministro em relação ao pretenso equilíbrio entre o peso dos espanhóis na banca em Portugal e o de outros países, nomeadamente Angola. Por outro lado, em Espanha, por ocasião da sua visita de Estado àquele país, declarou que o investimento espanhol em Portugal é bem-vindo, desde que não exclusivo.
Ora, se o peso espanhol na economia portuguesa, sobretudo no sistema financeiro, se torna incómodo, há que nos interrogarmos sobre se o peso de investidores de outras economias não será tão incómodo ou mais. Parece que os interventores na construção da opinião pública, a não ser aqueles que estão, ideológica ou pragmaticamente, contra as privatizações, não deitaram as mãos à cabeça quando capitais de outros países se apoderaram, pela via da compra, de muitas das importantes empresas estratégicas portuguesas. Veja-se o caso da EDP e da REN, entregues a grupos empresariais chineses, ligados direta ou indiretamente a um Estado de economia planificada e com a propriedade dos principais meios de produção e distribuição. Veja-se o caso da ANA-aeroportos de Portugal, que foi alienada a um grupo francês, ou a PT, que acabou por ir parar às mãos de um investidor francês, embora com um forte peso empreendedor de português. Veja-se o caso dos investidores angolanos, que se infiltraram em muitos setores da atividade, designadamente na banca, na comunicação social, nas telecomunicações, etc. Será que a origem duvidosa dos capitais angolanos, o desrespeito pelos direitos humanos ou a falta de democracia constituirão motivo suficiente para que se lhes torça o nariz, sobretudo se não forem exceção na submissão à supervisão, regulação e, quando for o caso, à justiça dos portugueses? E que dizer da dispersão de capital de empresas em bolsa, como aconteceu com os CTT, não se sabendo onde fica a morar o centro de decisão? O mesmo se pergunte da venda a empresas fundos de investimento mobiliários ou imobiliários.
Depois, até parece que a invasão espanhola à economia portuguesa começou só agora, esquecendo todos os antecedentes relativos a empresas, à banca e mesmo a encomendas de materiais para uso de elementos de estruturas e forças encarregadas do exercício de funções decorrentes da obrigação de assegurar a soberania (por exemplo, fardamento policial)!   
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Parece que o grande peso dos espanhóis na banca em Portugal ganhou agora visibilidade polémica, podendo vir mesmo a dar origem a manifesto a divulgar entre 4 e 10 de abril. Porém, esta postura está longe de ser consensual, o que poderá a alterar a natureza e a fisionomia do documento, omitindo as referências explícitas a Espanha ou aos espanhóis. É que não está em causa unicamente a espanholização, mas também a dispersão não controlada de capitais, a sua disseminação anónima e, nalguns casos, a sua concentração e até monopolização.
A este respeito, é de recordar que, no início do século, mais precisamente há 14 anos (2002), cerca de 40 empresários portugueses subscreveram o denominado “Manifesto dos 40” para defender a manutenção dos centros de decisão empresarial em Portugal. Entretanto, muitos deles cedo mandaram às malvas o manifesto e os seus objetivos, colocando as sedes dos seus grupos empresariais fora do país, onde a carga fiscal é menor, a estabilidade fiscal é constante e a justiça célere. Outros pura e simplesmente venderam a quem deu mais e/ou em melhores condições. Como se vê, o patriotismo nos tempos atuais, para alguns, é de mera oportunidade.
Sobre o predito manifesto, a ser divulgado na primeira semana inteira de abril, o economista João Salgueiro, um dos nomes associados a este movimento, disse à SIC Notícias, para quem quis ouvir, que se trata de mera especulação, referindo expressamente, “Eu não conheço isso, não aceito essa lengalenga da espanholização”. E, Alexandre Patrício Gouveia, outro dos nomes associados ao movimento e administrador do grupo espanhol El Corte Inglés, declarou ao Expresso que não é sua intenção promover nem subscrever o dito documento.
Pelos vistos, o Expresso quis saber da posição de alguns dos subscritores do “Manifesto dos 40”. A isto, Alexandre Soares dos Santos, até há pouco o líder da “Jerónimo Martins”, ainda controlada pela família, respondeu que hoje tem “muita dificuldade em assinar manifestos desta natureza”, uma vez que “as coisas mudam com muita velocidade”, pois “o mundo hoje é cada vez mais aberto”. E Jardim Gonçalves, que presidia, em 2002, ao BCP, entende que “não deveríamos referir determinada origem do capital, mas, sim, assegurar a soberania para poder acolher esse mesmo capital”, acreditando que “isso ainda é possível”.
Por seu turno, o empresário Neiva de Oliveira, já na reforma, parece não estar muito preocupado com a ‘espanholização’ da banca, mas lamenta que o investimento, sobretudo no setor financeiro, “não tenha outras origens, designadamente a partir de uma base portuguesa”, reconhecendo que não se pode lutar contra a realidade.
Também o presidente da “Amorim Turismo”, Jorge Armindo, crê ser “fundamental continuar a defender os centros de decisão em Portugal”. No entanto, no concernente à discussão da ‘espanholização’, recusa-se a “assumir uma postura contra a entrada de outros bancos europeus em Portugal”. E o presidente da “Riopele”, o empresário José Alexandre Oliveira, vê um problema, neste momento, “potencialmente muito maior do que no passado”, mas mais que a espanholização da banca preocupa-o “a tendência crescente para a sua concentração”, o que “é extremamente perigoso e vai ter consequências no tecido empresarial”. Porém, não se vê, de momento, a assinar um manifesto.
Por sua vez, António Nogueira Leite diz que não conhece o manifesto que está em preparação. De qualquer modo, em princípio não subscreve “mais manifestos desse tipo”. E considera que, se “é certo que nem todo o dinheiro é igual”, também é certo que “o capital tem de ter várias origens”. E Ludgero Marques, da “CIFIAL” e antigo presidente da Associação Empresarial de Portugal, assume “a espanholização da banca” como “uma preocupação”. Depois, considera que “é muito desagradável para todos nós, que trabalhamos para ter banca, ver desaparecer tudo”. No respeitante à assinatura de um novo manifesto, mostra algumas reticências porque já se retirou “dessas guerras”.
Ao invés, o ex-presidente da CIP, Francisco van Zeller, opina que, naquele tempo, ainda valia a pena debater a causa dos centros de decisão nacionais, “mas eles foram embora e já não há nada a fazer”. Porém, declarou-se receoso de “um excesso de ‘espanholização’ da banca”, pelo que aceita subscrever o manifesto. Sustenta que há um limite “a partir do qual se perde a liberdade de decisão” com efeitos lesivos do tecido empresarial. E ainda diz da sua revolta “pela interferência do BCE”, que nos empurra “para os braços dos bancos espanhóis”.
Também o economista Miguel Beleza tem como “perigoso” o facto de “a banca portuguesa ficar toda nas mãos da banca espanhola”, dado que “os interesses não serão os das empresas portuguesas, mas sim os das empresas espanholas”. Por isso, “assinaria este manifesto com certeza”.
Por sua vez, o empresário Ilídio Pinho reafirma que “é fundamental manter os centros de decisão em mãos portuguesas” para que o país não dependa dos ditames alheios. Verifica o peso enorme do poder espanhol na banca, que, em seu entender, “está no limite do aceitável e corre o risco de se tornar excessivo”. É “uma situação preocupante” que choca com a autonomia de decisão e a confiança dos investidores que tem por essenciais. De facto, como “os grandes bancos ibéricos estão em Espanha, há uma ameaça séria de que o centro de decisão do sistema financeiro português fique em Madrid”. Refere que assinará o manifesto se ele traduzir estas suas preocupações.
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Ora, o “Manifesto contra a espanholização da banca”, que recentemente começou a ser falado, reflete as críticas à forma como o BdP (Banco de Portugal) tem supervisionado e regulado a atividade bancária e ao papel que o BCE (Banco Central Europeu) desempenha no processo de consolidação do setor na Europa, bem como a crítica às imposições da Comissão Europeia, através da Direção-Geral da Concorrência, que, no âmbito dos processos de resolução bancária, impõe e parece continuar a querer impor a venda de bancos portugueses a bancos espanhóis de referência. Se calhar, não havia necessidade nem seria este o único caminho.
No entanto, uma iniciativa destas peca por defeito em termos da visão total das coisas. O mal não é só a espanholização. O fenómeno é múltiplo, como acima se adiantou. Por outro lado, o documento pouco interessará, se não trouxer consigo um arrepio de caminho em relação à postura assumida até agora pelos decisores políticos e pelos administradores das empresas.
Assim, a promiscuidade entre negócios e política ou a entrega da autoria material das leis a sociedades de advogados e outros lóbis empresariais, de modo que os membros do Governo e/ou os deputados se limitem a pôr o visto e a fazer a cerimónia da discussão e aprovação, são factos que têm de cessar. O Estado tem de se munir dos peritos e técnicos suficientes para o exercício da soberania. Seria admissível que Presidente e tribunais remetessem as leis a escritórios de advogados, de economistas ou de engenheiros antes da promulgação ou julgamento?
E, embora seja de saudar a postura de Marcelo e de Costa nesta matéria, ela é insuficiente e de não improvável ineficácia; há que lançar mãos à obra, como diz Jardim Gonçalves, “assegurar a soberania” para poder acolher os capitais de diversas origens. Para tanto, é preciso crer que isso é possível e verificar com verdade que não tem havido em Portugal capital disponível para assegurar o controlo das empresas e, em especial, da banca. Por outro lado, há que lamentar que os bancos entregues total ou maioritariamente a portugueses (CGD, BPN, BPP, BPA, CPP, BES, Banif…) levaram financeiramente o país aonde o levaram sem necessidade de espanholização.
Faltou, para assegurar a soberania, a legislação clara sobre regulação e supervisão bancária e do mercado e valores mobiliários, justiça célere e eficaz, sempre que necessário, e maior alinhamento fiscal com a Europa e, em especial com a Espanha.
E nada disto teria sucedido se a UE, sobretudo a Zona Euro, fosse a Europa dos Estados e a Europa dos cidadãos, com união política, financeira, bancária, económica, diplomática e militar.

2016.03.29 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 28 de março de 2016

Cúpula Mundial Humanitária 2016

Em conformidade com a informação de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), à Assembleia Geral em fevereiro passado, vai realizar-se, em Istambul, na Turquia, nos dias 23 e 24 de maio próximos, a Cúpula Mundial Humanitária.
Trata-se da convocação da comunidade internacional, por parte do Secretário-Geral da ONU, para que “nenhuma pessoa que esteja em um conflito armado, nenhuma com pobreza crónica, nenhuma que viva com o risco de perigos naturais e do aumento do nível do mar fique esquecida”. Ou seja, a cúpula tem por objetivo reunir a comunidade internacional (sociedade civil, governantes, setor privado, representantes das missões de paz) para conceber novas políticas e estratégias de assistência humanitária nos países afetados.
Ao apresentar o informe ou relatório “Uma Humanidade: A Responsabilidade Compartilhada perante os delegados, Ban afirmou que a primeira Cúpula Mundial Humanitária “será o momento para nos unirmos na renovação de nosso compromisso com a humanidade”. No seu prefácio, o Secretário-Geral das Nações Unidas escreve:
“Peço aos líderes do mundo que venham à Cúpula Mundial Humanitária preparados para assumir as suas responsabilidades por uma nova era nas relações internacionais. Uma era na qual a salvaguarda da humanidade e a promoção do progresso humano impulsione a nossa tomada de decisões e medidas coletivas.”
Segundo o predito documento, a ONU precisará de mais de US$ 20 biliões para alimentar e cuidar de mais de 60 milhões de pessoas deslocadas dentro dos seus países ou que fugiram para outras terras convertendo-se em refugiados. Cerca de 40 dos 193 Estados membros das Nações Unidas (quase 21%) experimentam “crises e violência de nível, alto, médio ou baixo”.
De acordo com o texto do documento, em 2014, os conflitos armados e a violência obrigaram cerca de 42.500 pessoas a fugirem de suas casas a cada dia, o que resultou em mais de 60 milhões de pessoas deslocadas, refugiadas e solicitantes de asilo no primeiro semestre de 2015. Cerca de metade das meninas e dos meninos refugiados do mundo não estão a receber a educação primária e 75% não têm acesso à educação secundária. Atualmente, quase 1,4 biliões de pessoas vivem em situações de fragilidade, e estima-se que serão 1,9 biliões até 2030. Portanto, é fundamental que sejam adotadas medidas coordenadas para antecipar as crises, reforçar as instituições e os governos locais, aumentar a resiliência da comunidade e investir na análise de dados e riscos.
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Em certa medida, pode dizer-se, do meu ponto de vista, que as finalidades da ONU se vêm frustrando, uma vez que o seu principal objetivo é a construção da paz mediante a estratégia do desenvolvimento sustentável e no respeito dos direitos de cada pessoa. Isto não quer dizer que, se não fossem os esforços das Nações Unidas, a situação não seria pior ou que o esforço feito pela comunidade internacional, a diversos níveis e em diversos setores, não tenha sido positivo. Porém, a guerra de interesses económicos e o império do dinheiro e do negócio das armas, bem como diversas modalidades de fundamentalismos sobrepõem-se aos direitos, aos deveres e às demais vertentes da “humanitariedade” e todos se reclamam de humanistas e de cooperantes em ações de paz ou em ações humanitárias. É a hipocrisia reinante que leva os decisores ao excessivo calculismo para determinarem quando e aonde lhes dá jeito ir, sem se denunciarem quanto a iniciativas escusas de imposição larvada dos seus ditames políticos, militares e económicos à custa dos mais pobres.
Enquanto, se multiplicam os conflitos, as situações de pobreza e as ações de exploração organizada e/ou informal, os muros levantam-se e crescem; pululam as organizações políticas extremistas, xenófobas e racistas; muitos decisores políticos eternizam-se no poder, aduzindo as mais diversas formas de legitimação de tal postura; uns centros de poder trabalham na ambivalência; e outros, como a União Europeia, são inermes, inertes e sem voz.
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Ban Ki-moon, no entanto, não deixa de denunciar, com a autoridade moral e política que ainda se lhe reconhece, que “as atuais crises na nossa economia política mundial, junto com a mudança climática”, a violência extremista, o terrorismo, a criminalidade transnacional e a persistência de brutais conflitos armados vêm devastando as vidas de milhões de pessoas e provocando a desestabilização de regiões inteiras. Por isso, os desafios que hoje se colocam aos Estados são transversais, galgam as fronteiras dos povos, das etnias e dos continentes; e superam a capacidade de um país ou de uma instituição. Como receita, o homem forte da ONU urge a restauração da confiança na ordem mundial internacional e na capacidade das diversas instituições nacionais e regionais em enfrentar com eficácia esses graves desafios.
Um alto funcionário da ONU, que preferiu não se identificar, advertiu para o facto de o mencionado relatório conter “uma petição pessoal do secretário-geral” para “restaurar a humanidade” e assim se “garantir a dignidade e a segurança de todas as pessoas”, segundo a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos) e os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da Agenda 2030. Segundo o mesmo funcionário, a Cúpula Mundial Humanitária, de Istambul, visa mobilizar a comunidade internacional para a redescoberta da unidade e solidariedade mundiais e para conseguir o fim do sofrimento humano e da desigualdade.
A Cúpula Mundial Humanitária segue-se a muitos esforços que já vêm sendo feitos no sentido de preocupações que são objeto de muitas organizações não-governamentais.
Entre estas, destaca-se a oxfam (Oxford Commitee for Famine Relief, em português, Comité de Oxford de Combate contra a Fome). Esta ONG foi criada em Oxford, na Inglaterra, em 1942, por um grupo de intelectuais (religiosos, sociais e académicos), liderado pelo cónego Theodore Richard Milford (1942). O seu objetivo inicial era convencer o governo britânico a permitir a remessa de alimentos às populações famintas da Grécia, ocupada então pelas forças nazistas e submetida ao bloqueio naval dos aliados. Atualmente, porém, a organização opera em vários países e, além do combate à fome, atua nas seguintes frentes nevrálgicas: comércio justo; educação; saúde; SIDA/VIH; inclusão social; democracia e direitos humanos; guerras e desastres naturais.
No passado mês de janeiro, publicou um relatório de cujas conclusões se destacam as seguintes:
- A riqueza acumulada pelo grupo dos mais ricos, que representa 1% da população mundial, equivale à riqueza (aos bens) dos restantes 11% da população mundial;
- As 62 pessoas mais ricas do mundo têm o mesmo em riqueza que toda a metade mais pobre da população global.
Por conseguinte, o documento contém: um pedido aos líderes do mundo dos negócios e da política, então reunidos no Fórum Económico Mundial de Davos, para que tomem as medidas necessárias para enfrentar a desigualdade no mundo; e uma crítica da ação de lobistas – que influenciam decisões políticas que interessam a grandes empresas – e da quantidade de dinheiro em paraísos fiscais.
Por outro lado, de acordo com a informação de fonte não identificada da ONU, os fundos com fins “humanitários multiplicaram-se por completo até mais de 600% do que era preciso há dez anos e quase 80% mais de pessoal humanitário, bem como de forças de manutenção da paz e pessoas em missões políticas especiais estão envolvidos nessas situações prolongadas”. Assim se compreende que países e organizações da sociedade civil de todo o mundo tenham recebido bem a iniciativa de Ban Ki-moon.
Por seu turno, Charlotte Stemmer, representante da Oxfam, declarou:
“O sistema humanitário está esmagado pela magnitude de necessidades crescentes num mundo sacudido pelas crises e (os governantes) não se devem limitar às palavras; são necessárias medidas concretas com urgência. O maior legado da Cúpula Mundial Humanitária seria o compromisso real para mudar essa situação.”
O documento apresentado pelo Secretário-Geral da ONU preconiza que a humanidade compartilhe a responsabilidade da liderança política para evitar e terminar os conflitos armados. E, em vez de investir na assistência humanitária, a comunidade internacional deverá dar prioridade às soluções políticas, à unidade e à construção de sociedades pacíficas. Também deve aplicar e cumprir as leis internacionais de proteção da população civil, de respeito dos direitos humanos, de restrição do uso e da transferência de certas armas e munições, de cessação dos bombardeios e de fortalecimento do sistema de justiça internacional. E, ainda, recomenda que não se esqueça ninguém (este também é o tema central da Agenda 2030 de Desenvolvimento da ONU), que seja ajudada a população mais pobre e vulnerável nas zonas afetadas pela guerra ou por desastres naturais e que seja assegurada a proteção das mulheres e meninas e o exercício do direito de todos à educação.
O relatório da ONU também recomenda o investimento na humanidade. Ban Ki-moon exortou os doadores e as autoridades nacionais a mudarem a mentalidade para a “doação de fundos para financiamento” dos atores e instituições locais, uma vez que melhoram a rentabilidade e a transparência; e explicou que a cúpula de Istambul, que será organizada pelo Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, oferecerá pela primeira vez a oportunidade de refletir sobre um novo contexto de ajuda humanitária.
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E há tanto que fazer, tanto caminho por desbravar. Não seria de ter mais em boa linha de conta a seguinte verificação papal Urbi et Orbi da Páscoa deste ano?
“O Cristo ressuscitado, anúncio de vida para toda a humanidade, reverbera através dos séculos e convida-nos a não esquecer dos homens e mulheres na sua jornada em busca de um futuro melhor; grupos cada vez mais números de migrantes e refugiados – entre os quais muitas crianças – que fogem da guerra, da fome, da pobreza e da injustiça social. Esses são nossos irmãos e irmãs, que nos seus caminhos encontram, com demasiada frequência, a morte ou, ao menos, a recusa dos que poderiam oferecer-lhes hospitalidade e ajuda.”
E bem oportuno é o seu voto pelo futuro próximo:
“Que a próxima rodada da Cúpula Mundial Humanitária não deixe de colocar no centro a pessoa humana com a sua dignidade e possa desenvolver políticas capazes de ajudar e proteger as vítimas de conflitos e de outras situações de emergência, especialmente os mais vulneráveis e os que sofrem perseguição por motivos étnicos e religiosos”.

2016.03.28 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de março de 2016

É a Páscoa!

A Páscoa marca o tempo e os lugares. Como esperançosa marca do tempo, fica assinalada nas culturas dos povos antigos e, em especial no povo de Deus, tanto no do Antigo Testamento como no do Novo Testamento, bem como em cada um dos anos da nossa era; e como inapagável marca dos lugares que assinala, reveste de festa, lazer, encontros, floração e vida.
Os antigos festejavam-na como festa do novo rebentar da Natureza materializado na verdura, floração, sementeiras e usual mudança do tempo atmosférico. Ainda não era verão, mas já não era o inverno do rigor gelado, ventoso e encharcadiço, que tinha passado. A Natureza renova-se rejuvenescendo!
Os hebreus, depois do tempo da escravidão no Egito, passaram a celebrar a Páscoa como “passagem”, libertação determinada e operada pelo Senhor da amargura de vida sob o império faraónico para a terra prometida, não sem o difícil trânsito pelos meandros do deserto – agora sob a guia da Lei outorgada por Deus a Moisés no Sinai. Esta outorga da Lei constitui a aliança entre Deus e o seu povo, selada no sangue sacrificial dos touros e dos cabritos ou dos cordeiros, e que, pela observância das normas da Lei da parte do povo, garantia da parte de Deus a proteção sempre e em toda a parte. Era considerada a nova criação, para aquele povo, talvez mais maravilhosa que a primeira criação, a do livro do Génesis (cf Gn 1,1 - 24). Por isso, apesar de inúmeras vezes o povo ter infringido a Lei e, sobretudo, adorando os ídolos como se fossem outro Deus e fazendo demasiada na fé em alianças com outros os povos, todos os anos – na sua terra, no exílio ou na diáspora – as famílias judaicas celebravam nesta época do ano a Páscoa. Celebravam-na em casa ou na tenda, de pé, rins cingidos, cajado na mão, fazendo a leitura da Lei (no atinente ao memorial da saída do Egito), pronunciando a bênção, entoando o cântico de libertação e tomando a refeição de peregrino. Esta refeição tinha por base o pão ázimo (aquando da libertação do Egito, não houve tempo para que o fermento levedasse a massa), o cordeiro ou cabrito macho e sem mácula, com ervas amargas, e, como bebida, o vinho com água. (cf Ex 13,3-10).
A Páscoa de Cristo foi celebrada com os discípulos em Jerusalém à boa maneira judaica, mantendo basicamente a tradição bíblica (cf Lc 22,7-13). Porém, como Ele veio inaugurar um tempo novo ou a plenitude do tempo (vd Gl 4,4), insuflou na Páscoa, transmitida pela tradição bíblica, um novo sentido. Está aqui o Reino de Deus. Esta presença do Reino postula a reformulação da Aliança. Esta aliança deixa de ser assinalada pelo sangue de touros ou de cordeiros e cabritos, mas passa a ser celebrada no sangue de Cristo, o que significa a desistência dos sacrifícios que se faziam todos os anos com outros cordeiros ou com outros cabritos pascais e se assume o sacrifício de Cristo, feito por uma só vez e a valer para sempre pela remissão dos pecados. Este sacrifício realiza-se em dois momentos: no contexto do banquete, em que Ele abençoa o pão e o vinho e os consagra em Seu Corpo e Sangue e reparte por todos como entrega pela humanidade, dizendo-lhes que aquele pão e aquele vinho são o seu corpo e sangue e ordenam que comam e bebam (cf Lc 22,14-20); e no calvário, no dia seguinte, depois de Se deixar manietar quando estava em oração no Monte das oliveiras, condenar e conduzir à cruz onde Se imolou no Calvário (cf Lc 22, 39 – 23,49).
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Porém, a Ceia e o Calvário, não acontecem sem que seja lavrado em testamento o mandamento novo do amor fraterno como marca dos cristãos, ficando-se a saber que ninguém tem maior amor que Aquele que dá a vida pelos outros (cf Jo 13,34-35; 15,9-17). E a Ceia e o Calvário presentificam-se todos os anos como celebração da Páscoa histórica, semanalmente para celebração do Dia do Senhor, que veio, que está e que há de vir, e diariamente sempre que se celebra a liturgia do Altar precedida pela celebração da Palavra. Mas a morte de Cristo não se repete; presentifica-se renovando a distribuição da graça, do alimento, da edificação da unidade e do reforço da fraternidade.
E isto não aconteceria se Cristo permanecesse morto. Morto não dá vida, não alimenta, não reúne em definitivo. Morto junta para luto, mas divide com as partilhas. Os cristãos dividiram-se porque quiseram fazer prevalecer a morte sobre a Ressurreição. Entretidos na disputa pela herança, não deram conta de que a cruz do Calvário se transformou em cruz florida na Páscoa, disponível para todos…
Quero então dizer que a morte de Cristo não passou do terceiro dia. Como as Escrituras, que ele explicou aos discípulos de Emaús na tarde daquele primeiro dia da semana, garantiam, Ele ressuscitou. Aqueles dois discípulos reconheceram-No na bênção e na partilha do pão. Depois, “levantaram-se e voltaram imediatamente a Jerusalém onde encontraram reunidos os onze apóstolos e os seus companheiros, que lhes confirmaram: Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” (Lc 24,33-34).  
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Por isso, hoje e a partir de hoje, estamos em Páscoa: Páscoa da Natureza, Páscoa da vida renascente, ressemeada, reflorida, reverdejante e “refrugífera”; Páscoa da libertação e da liberdade; Páscoa da graça e da misericórdia; Páscoa da paz e do perdão; Páscoa de Cristo ressuscitado e dos homens redimidos; Páscoa de Deus e da Igreja; Páscoa da Fé e da Esperança; Páscoa da Caridade e da Justiça; Páscoa do Espírito Santo e da missão; Páscoa da bênção e da alegria; Páscoa da vitória do amor sobre o pecado, o demónio e a morte; Páscoa dos apóstolos e dos discípulos; Páscoa de crentes e não crentes; Páscoa dos doentes, dos cativos, dos pobres e dos descartados pela sociedade; Páscoa da glória no Céu e da paz na Terra.
É a Páscoa que leva o Papa Francisco proclamar Urbi et Orbi, em 27 de março de 2017: “Jesus Cristo, encarnação da misericórdia de Deus, por amor morreu na cruz e por amor ressuscitou. Por isso, proclamamos hoje: Jesus é o Senhor!
É a Páscoa em que a Ressurreição de Jesus cumpre em pleno a profecia dos Salmos 117 (116) e 118 (117), “a misericórdia de Deus é eterna, o seu amor é para sempre, não morre jamais” e faz dizer ao Papa que “podemos confiar completamente N’Ele, e damos-Lhe graças porque por nós Ele desceu até ao fundo do abismo” (vd mensagem Urbi et Orbi, 27 de março de 2016).
É a Páscoa que nos faz reconhecer que só Deus pode preencher com o seu amor os “vazios espirituais e morais da humanidade” e “os vazios que se abrem nos corações e que provocam ódio e morte”. Diante deles “somente uma infinita misericórdia nos pode dar a salvação e não permitir que submerjamos, mas continuemos a caminhar juntos em direção à Terra da liberdade e da vida”. (id et ib).
É a Páscoa que nos motiva ao anúncio jubiloso por toda a parte “Jesus, o crucificado, não está aqui, ressuscitou (cf Mt 28,5-6) e nos oferece “a certeza consoladora de que o abismo da morte foi transposto e, com isso, foram derrotados o luto, o pranto e a dor” (cf id et ib; Ap 21,4).
É a Páscoa que nos mostra o Senhor, que “sofreu o abandono dos discípulos, o peso duma condenação injusta e a vergonha duma morte infame” e nos faz agora, com a sua Ressurreição, “compartilhar a sua vida imortal e nos oferece o seu olhar de ternura e compaixão para com os famintos e sedentos, com os estrangeiros e prisioneiros, com os marginalizados e descartados, com as vítimas de abuso e violência” (vd mensagem Urbi et Orbi, 27 de março de 2016).
É a Páscoa que devemos celebrar, “não com o fermento velho e da malícia e corrupção, mas com os ázimos da pureza e da verdade” (1Cor 5,8).
É a Páscoa que nos faz procurar “as coisas do Alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus Pai, e aspirar, não às coisas da terra, mas às coisas celestes” (Cl 3,1-2).
É a Páscoa – “caminho de misericórdia e fraternidade” – que devemos celebrar “com um coração renovado, aberto à imensidão do Amor de Deus”, com preconiza o Bispo do Funchal (cf mensagem de 27 de março).
É a Páscoa que, evocando os sofrimentos, lutas, “solidão e tristeza” de tantas pessoas”, salienta que “a ressurreição de Jesus, celebrada pelos cristãos, é um sinal de “esperança” (id et ib).
É a Páscoa que “é Cristo ressuscitado a penetrar nas nossas vidas e no coração da humanidade” e “o triunfo da vida e do amor sobre o pecado, o sofrimento e a morte” ” (id et ib).
É a Páscoa da “eterna misericórdia de Deus” que ilumina a fragilidade humana e que “é luz nas nossas noites, é festa da vida, é esperança renascida a gritar um novo cântico de ternura e de amor” (id et ib).
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Num mundo “cheio de pessoas que sofrem no corpo e no espírito, enquanto as crónicas diárias estão repletas de relatos de crimes brutais, que, muitas vezes, têm lugar dentro do lar, e de conflitos armados numa grande escala, que submetem populações inteiras a provas inimagináveis” (Francisco, Urbi et Orbi) …
… A continuação de Santa Páscoa para todos, a dar a primazia às pessoas, que são rosto de Deus!

2016.04.27 – Louro de Carvalho

sábado, 26 de março de 2016

A partir da Cruz…

A partir da Cruz…

A partir da Cruz, não mais a vida pode ficar como dantes. Importa meditar e recolher as lições que em torno da Cruz nos são disponibilizadas.
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Na sua homilia da missa crismal em quinta-feira santa deste ano de 2016, o Papa contrapôs à possibilidade de as palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré serem aclamadas com uma salva de palmas – por assinalarem o “hoje” (cf Lc 4,21) do cumprimento da profecia isaítica (cf Is 61,1-9) – o facto de os sentimentos dos seus conterrâneos se situarem realmente “no lado oposto”.
É certo que a primeira reação foi a do testemunho de todos em seu favor e admiração com as “palavras repletas de graça que saíam da sua boca” (Lc 4,22). Porém, não se fez esperar a pergunta insidiosa a instalar a dúvida: “Não é este o filho de José, o carpinteiro?” E a dúvida deu lugar ao furor (Lc 4,28), a ponto de O quererem precipitar do cimo do penhasco. Seguiu-se, não a postura do povo de grata aceitação das palavras de Neemias com o choro alegre pela reconstrução das muralhas de Jerusalém, mas o cumprimento da profecia do velho Simeão a Maria: será “sinal de contradição” (Lc 2,34). De facto, as palavras e gestos de Jesus suscitam a revelação daquilo que cada homem e mulher trazem no seu coração, aberto ou fechado.
Por isso, o Papa alerta para a necessidade de escolha quando e onde “o Senhor anuncia o evangelho da Misericórdia incondicional do Pai para com os mais pobres, os mais marginalizados e oprimidos”. E a escolha deve recair no “bom combate da fé” (cf 1Tm 6,12), não “contra os seres humanos, mas contra o demónio (cf Ef 6,12), inimigo da humanidade”.
E, ao sublinhar que, “passando pelo meio dos que O queriam liquidar, seguiu o seu caminho (cf Lc 4,30), esclarece:
“Jesus não combate para consolidar um espaço de poder. Se destrói recintos e põe as seguranças em questão, é para abrir uma brecha à torrente da Misericórdia que deseja, com o Pai e o Espírito, derramar sobre a terra. Uma Misericórdia que move de bem para melhor, anuncia e traz algo de novo: cura, liberta e proclama o ano de graça do Senhor.”.
Para caraterizar a misericórdia divina, Francisco recorda a dinâmica do gesto do bom Samaritano, que, ao contrário de outros que passaram antes, “usou de misericórdia” (cf Lc 10,37): “comoveu-se, aproximou-se do ferido, faixou-lhe as feridas, levou-o para a pousada, pernoitou e prometeu voltar para pagar o que tivessem gasto a mais”. O dinamismo da misericórdia firma-se no encadeamento dos pequenos gestos, alargando-se sucessivamente em amor-ajuda.
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Na celebração da Ceia do Senhor, em Castelnuovo di Porto (Roma), o Papa referiu, antes do lava-pés a refugiados, que “os gestos falam mais que as imagens e as palavras”. E contrapôs dois tipos de gestos no caminho da Cruz: o de Jesus, que serve e lava os pés aos mais pequenos; e, ao invés, o de Judas, que trai o Senhor, vendendo-O aos inimigos por 30 moedas e entregando-lho com o beijo hipócrita. E pretende enquadrar no gesto de Cristo todos em conjunto: “muçulmanos, hindus, católicos, coptas, evangélicos” – que “são irmãos e filhos do mesmo Deus” e por quem o Senhor entregou a sua vida na cruz.
Mas este gesto contrapõe-se aos gestos de guerra, de destruição – vividos há dias numa das cidades da Europa – como muitos outros que se espalham pelo mundo inteiro. São gestos similares ao de Judas. Porém, enquanto este era motivado pelo vil dinheiro, os agora mencionados são obra dos fabricantes e traficantes de armas, ávidos de sangue e não de paz, de guerra e não de fraternidade.
Epidermicamente, os gestos de Jesus e de Judas até são parecidos: lava-pés e beijo. Porém, enquanto Jesus lava os pés dos discípulos, judas vende-O e entrega-O por dinheiro. Também agora, de um lado, diz o Papa, estamos nós “todos em conjunto, de diversas religiões, diversas culturas, mas filhos do mesmo Pai, irmãos”; do outro, “aqueles pobres compram armas para destruir a fraternidade”.
A partir do gesto do lava-pés, como a partir da Cruz, é preciso que todos e cada um ultrapassem a sua história pessoal de “tantas cruzes, tantas dores” e ganhem “um coração aberto que deseje a fraternidade”. Importa que, na língua religiosa de cada um, irrompa a prece ao Senhor para que “esta fraternidade contagie o mundo” de modo que não estejam mais em causa “as 30 moedas para matar o irmão”, mas sempre esteja de pé “a fraternidade e a bondade”.
E, parafraseando o salmista (vd Sl 133/132), depois de saudar cada um, “de todo o coração”, no fim da missa, recordou e apelou a que se faça ver “como é belo viver, todos em união como irmãos”, embora “com culturas, religiões e tradições diferentes”. E esta irmandade tem um nome: “paz e amor”.
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Voltando à homilia da missa crismal, em contexto de semana santa e de ano jubilar da misericórdia, é preciso não esquecer que a Cruz de Cristo é o cume da misericórdia divina. Por isso, o Bispo de Roma assegura, contra a violência e a indiferença:
“A Misericórdia do nosso Deus é infinita e inefável; e expressamos o dinamismo deste mistério como uma Misericórdia ‘sempre maior’, uma Misericórdia em caminho, uma Misericórdia que todos os dias procura fazer avançar um passo, um pequeno passo mais além, avançando na terra de ninguém, onde reinavam a indiferença e a violência”.
À sombra da Cruz, cada um, contemplando a vida com o olhar de Deus, fará “um exercício de memória descobrindo como o Senhor usou de misericórdia para connosco”, muito mais do que pensávamos. Depois, devemos “encorajar-nos a pedir-Lhe que dê um pequeno passo mais, que Se mostre ainda mais misericordioso no futuro, lançando-lhe o clamor. “Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia e dai-nos a vossa salvação” (Sl 85/84,8).
Esta atitude de súplica leva-os “sair dos nossos recintos” e a crer que “é próprio do coração de Deus transbordar de misericórdia” espargindo “de tal modo que a sua ternura sempre abunde, porque Ele “prefere ver algo desperdiçado a que falte uma gota; prefere que muitas sementes acabem comidas pelas aves a que falte à sementeira uma única semente, visto que todas têm a capacidade de dar fruto abundante, ora a 30, ora a 60, e até mesmo 100 por uma”.
E o Papa recorda aos sacerdotes a sua índole de “testemunhas e ministros da Misericórdia cada vez maior do nosso Pai”; a sua “doce e reconfortante tarefa de a encarnar como fez Jesus”, que passou pelo mundo, “andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando” (At 10,38), de mil e uma maneiras, para que chegue a todos”. Mais instou ao contributo de cada um “para inculturá-la, a fim de que cada pessoa a receba na sua experiência pessoal de vida e possa, assim, compreendê-la e praticá-la – de forma criativa – no modo de ser próprio do seu povo e da sua família”.
Depois e, porque é Deus quem dá o exemplo, expôs dois âmbitos em que o Senhor Se excede em misericórdia: o do encontro; e o do perdão, “que nos faz envergonhar e nos dá dignidade”.
O primeiro âmbito é o do encontro, em que Ele Se dá “totalmente e de um modo tal que, em cada encontro, passa diretamente à celebração duma festa”. E ilustra este âmbito com a parábola do Pai Misericordioso (cf Lc 15,11-32), em que sublinha:
“Ficamos estupefactos ao ver aquele homem que corre, comovido, a lançar-se ao pescoço do filho; vendo como o abraça e beija e se preocupa em lhe pôr o anel que o faz sentir-se igual, e as sandálias próprias de quem é filho e não assalariado; e como, a seguir, põe tudo em movimento, mandando que se organize uma festa”.
A seguir, comenta a maravilha desta superabundância da graça e sugere a nossa justa atitude:
Ao contemplarmos, sempre maravilhados, esta superabundância de alegria do Pai, a quem o regresso do filho consente expressar livremente o seu amor, sem hesitações nem distâncias, não temeremos em exagerar no nosso agradecimento. A justa atitude podemos apreendê-la daquele pobre leproso que, vendo-se curado, deixa os seus nove companheiros que vão cumprir o que ordenou Jesus e regressa para se ajoelhar aos pés do Senhor, glorificando e dando graças a Deus em alta voz (cf Lc 17,11-19).”
E, concluindo, explicita a ação e efeitos da misericórdia, suscitando a justa resposta da gratidão:
“Restaura tudo e restitui as pessoas à sua dignidade originária. Por isso, a justa resposta é uma efusiva gratidão: é preciso iniciar imediatamente a festa, vestir o traje, eliminar os ressentimentos do filho mais velho, alegrar-se e festejar… Porque só assim, participando plenamente naquele clima festivo, será possível depois pensar bem, pedir perdão e ver mais claramente como se pode reparar o mal cometido.”
O segundo âmbito é o próprio perdão. E este perdão não se circunscreve às “dívidas incalculáveis”, como a do servo que lhe suplica e se mostra mesquinho com o companheiro (Mt 18,23-35), “mas faz-nos passar diretamente da vergonha mais envergonhada para a dignidade mais alta, sem qualquer etapa intermédia”. Assim:
O Senhor deixa que a pecadora perdoada Lhe lave, familiarmente, os pés com as suas lágrimas (cf Lc 7,36-50). Logo que Simão Pedro se confessa pecador pedindo-Lhe para Se afastar dele, Jesus eleva-o à dignidade de pescador de homens (cf Lc 5,10).”
Ao contrário – e o Pontífice põe-nos o dedo na ferida – nós tendemos para a separação das duas atitudes: “quando nos envergonhamos do pecado, escondemo-nos e caminhamos com os olhos em terra, como Adão e Eva” (cf Gn 3,7-8); e, ao sermos elevados a qualquer dignidade, “procuramos encobrir os pecados e gostamos de nos mostrar, de quase nos pavonearmos”.
Pelo que o Papa propõe a seguinte postura:
“A nossa resposta ao perdão superabundante do Senhor deveria consistir em manter-nos sempre naquela saudável tensão entre uma vergonha dignificante e uma dignidade que sabe envergonhar-se: atitude de quem procura, por si mesmo, humilhar-se e abaixar-se, mas é capaz de aceitar que o Senhor o eleve para benefício da missão, sem se comprazer”.
E dá como exemplo a atitude de Pedro, “que se deixa interrogar longamente sobre o seu amor e, ao mesmo tempo, renova a sua aceitação do ministério de apascentar as ovelhas que o Senhor lhe confia” (cf Jo 21,15-19).
Depois, vê na Igreja e, em especial nos sacerdotes a concretização daquele ponto da profecia de Isaías, realizada por Jesus de Nazaré: “E vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e nomeados ministros do nosso Deus” (Is 61,6). E assegura que “é o povo pobre, faminto, prisioneiro de guerra, sem futuro, um resto descartado (cf 2Rs 19,31), que o Senhor transforma em povo sacerdotal”. Assim, os sacerdotes e os demais cristãos (segundo a sua própria condição) devem identificar-se com “aquele povo descartado, que o Senhor salva”, e lembrar-se das “multidões inumeráveis de pessoas pobres, ignorantes, prisioneiras, que estão naquela situação porque outros as oprimem”. Por outro lado, apresenta-nos como necessário recordar:
“Cada um de nós sabe em que medida tantas vezes somos cegos, estamos privados da luz maravilhosa da fé, não porque nos falte o Evangelho ao alcance da mão, mas pelo excesso de teologias complicadas. Sentimos que a nossa alma morre sedenta de espiritualidade e não por falta de Água Viva – que nos limitamos a sorver aos goles – mas por um excesso de espiritualidades sem compromisso, espiritualidades superficiais.”
Se também nos sentimos prisioneiros, não estamos “cercados – como tantos povos – por muros intransponíveis de pedra ou barreiras de aço, mas por um mundanismo virtual que se abre e fecha com um simples clique”. E, se nos sentimos oprimidos, não é “por ameaças e empurrões, como muitas pessoas pobres, mas pelo fascínio de mil e uma propostas de consumo a que não conseguimos renunciar para caminhar, livres, pelas sendas que nos conduzem ao amor dos nossos irmãos, ao rebanho do Senhor, às ovelhas que aguardam pela voz dos seus pastores”.
Ora, Jesus vem resgatar-nos de todas estas opressões, sejam elas exógenas, sejam endógenas.
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Por fim, gostaria de reter da alocução do Santo Padre, do final da via-sacra no Coliseu de Roma em sexta-feira santa, os traços essenciais do hino anafórico Ó Cruz de Cristo (anáfora apenas interrompida por duas vezes) que a preenche. Como é difícil respigar uns pontos como essenciais em detrimento de outros, ele aqui vai transcrito na sua dupla vertente, em boa simbiose, de espiritualidade intensa e de zelosa preocupação social, bem como na antítese entre o significado antigo de instrumento e sinal de maldição e o novo sentido de vitória e bênção.
Ó Cruz de Cristo
Ó Cruz de Cristo, símbolo do amor divino e da injustiça humana, ícone do sacrifício supremo por amor e do egoísmo extremo por insensatez, instrumento de morte e caminho de ressurreição, sinal da obediência e emblema da traição, patíbulo da perseguição e estandarte da vitória.
Ó Cruz de Cristo, ainda hoje te vemos erguida nas nossas irmãs e nos nossos irmãos assassinados, queimados vivos, degolados e decapitados com as espadas barbáricas e com o silêncio velhaco.
Ó Cruz de Cristo, ainda hoje te vemos nos rostos exaustos e assustados das crianças, das mulheres e das pessoas que fogem das guerras e das violências e, muitas vezes, não encontram senão a morte e muitos Pilatos com as mãos lavadas.
Ó Cruz de Cristo, ainda hoje te vemos nos doutores da letra e não do espírito, da morte e não da vida, que, em vez de ensinar a misericórdia e a vida, ameaçam com a punição e a morte e condenam o justo.
Ó Cruz de Cristo, ainda hoje te vemos nos ministros infiéis que, em vez de se despojarem das suas vãs ambições, despojam mesmo os inocentes da sua dignidade.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos corações empedernidos daqueles que julgam comodamente os outros, corações prontos a condená-los até mesmo à lapidação, sem nunca se darem conta dos seus pecados e culpas.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos fundamentalismos e no terrorismo dos seguidores de alguma religião que profanam o nome de Deus e o utilizam para justificar as suas inauditas violências.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje naqueles que querem tirar-te dos lugares públicos e excluir-te da vida pública, em nome de certo paganismo laicista ou mesmo em nome da igualdade que tu própria nos ensinaste.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos poderosos e nos vendedores de armas que alimentam a fornalha das guerras com o sangue inocente dos irmãos e que dão de comer aos seus filhos o pão ensanguentado.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos traidores que, por trinta dinheiros, entregam à morte qualquer um.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos ladrões e corruptos que, em vez de salvaguardarem o bem comum e a ética, se vendem no miserável mercado da imoralidade.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos insensatos que constroem depósitos para armazenar tesouros que perecem, deixando Lázaro morrer de fome às suas portas.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos destruidores da nossa ‘casa comum’ que, egoisticamente, arruínam o futuro das próximas gerações.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos idosos abandonados pelos seus familiares, nas pessoas com deficiência e nas crianças desnutridas e descartadas pela nossa sociedade egoísta e hipócrita.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje no nosso Mediterrâneo e no Mar Egeu feitos um cemitério insaciável, imagem da nossa consciência insensível e narcotizada.
Ó Cruz de Cristo, imagem do amor sem fim e caminho da Ressurreição, vemos-te ainda hoje nas pessoas boas e justas que fazem o bem sem procurar aplausos nem a admiração dos outros.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos ministros fiéis e humildes que iluminam a escuridão da nossa vida como velas que se consumam gratuitamente para iluminar a vida dos últimos.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos rostos das religiosas e dos consagrados – os bons samaritanos – que abandonam tudo para faixar, no silêncio evangélico, as feridas das pobrezas e da injustiça.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos misericordiosos que encontram na misericórdia a expressão mais alta da justiça e da fé.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nas pessoas simples que vivem jubilosamente a sua fé no dia-a-dia e na filial observância dos mandamentos.
O Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos arrependidos que, a partir das profundezas da miséria dos seus pecados, sabem gritar: Senhor, lembra-Te de mim no teu reino!
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos Beatos e nos Santos que sabem atravessar a noite escura da fé sem perder a confiança em ti e sem a pretensão de compreender o teu silêncio misterioso.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nas famílias que vivem com fidelidade e fecundidade a sua vocação matrimonial.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos voluntários que generosamente socorrem os necessitados e os feridos.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos perseguidos pela sua fé que, no sofrimento, continuam a dar testemunho autêntico de Jesus e do Evangelho.
Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje nos que sonham com um coração de criança e que trabalham cada dia para tornar o mundo um lugar melhor, mais humano e mais justo.
Em ti, Santa Cruz, vemos Deus que ama até ao fim, e vemos o ódio que domina e cega os corações e as mentes daqueles que preferem as trevas à luz.
Ó Cruz de Cristo, Arca de Noé que salvou a humanidade do dilúvio do pecado, salva-nos do mal e do maligno! Ó Trono de David e selo da Aliança divina e eterna, desperta-nos das seduções da vaidade!
Ó grito de amor, suscita em nós o desejo de Deus, do bem e da luz.
Ó Cruz de Cristo, ensina-nos que o amanhecer do sol é mais forte do que a escuridão da noite.
Ó Cruz de Cristo, ensina-nos que a aparente vitória do mal se dissipa diante do túmulo vazio e perante a certeza da Ressurreição e do amor de Deus que nada pode derrotar, obscurecer ou enfraquecer.
Amém!
***
Aqui ficam os parâmetros fundamentais da postura dos cristãos ante a Cruz e a partir dela. É possível segui-los se aceitarmos ter em nossa casa a mãe do discípulo que nos foi legada no alto da cruz (cf Jo19,26-27; At 1,14) e se, olhando para “aquele que trespassaram” (Jo 19,37; Zc 12,10; Ap 1,7), quisermos usufruir da água e sangue que jorraram do lado aberto de Cristo morto na cruz (cf Jo 19,34) para podemos dar alegre testemunho da ressurreição (cf At 4,33).
Santa Páscoa!

2016.03.26 – Louro de Carvalho