domingo, 31 de março de 2019

Não somos empregados de Deus, mas filhos, pois Ele é Pai, não patrão


O título tem a ver com o propósito do filho mais novo presente no parabólico episódio do Pai misericordioso (Lc 15,11-32), a 3.ª e a maior pérola da parábola da misericórdia relatada no cap. 15 do Evangelho de Lucas proclamando e meditado no 4.º domingo da Quaresma no Ano C.
Diz o rapaz, caído em si:
Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho, mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.”.
Reconhecendo que já não tinha a dignidade de filho, sujeitava-se a ser um trabalhador do patrão. Aliás, o filho mais velho (repare-se que o pai, face à reclamação da parte que lhe cabia da herança, distribuiu os seus bens pelos dois filhos), como pretexto para não entrar na festa com o irmão regressado, acusou o pai de nunca lhe ter dado um cabrito para se banquetear com os amigos, quando “sempre te servi, sem nunca transgredir uma ordem tua” (disse roído de inveja), mas para o filho que estoirou todos os bens do pai com mulheres de má vida (o narrador só tinha falado em vida dissoluta), mandara matar o vitelo gordo. O filho mais velho tratava o pai como um patrão, que dá ordens, paga mal e faz aceção de pessoas; e omite a equanimidade do pai que distribuiu os bens pelos filhos, embora mantendo o mais velho em casa. Porém, o pai misericordioso, paciente e compassivo tem atitude magnânima, a paterna. Ao filho mais novo corre a abraçá-lo, ouve a confissão de pecado contra si e contra o céu e o reconhecimento explícito de que não merecia ser filho, mas não deixa continuar pedindo que o trate como um trabalhador. Manda, antes, revesti-lo da túnica (veste de família nobre), calçar as sandálias (calçado de homens livres) e pôr o anel no dedo (insígnia da dignidade filial e da confiança) e fazer festa com o vitelo gordo, música e danças. E, como o filho mais velho não queria entrar na festa, veio cá fora instar com ele, ouviu-o e esclareceu-o:
Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado.”.
Na verdade, o pai sabe que tem dois filhos diferentes e quer deixar marcada a funda noção de que são irmãos. E, como este pai é a personificação do Pai celeste, Jesus ensinou-nos a dizer, não “Senhor”, mas “Pai”.
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Assim, a nota comum às leituras desta dominga é o amor do Pai, que salva os que o procuram. A 1.ª leitura (Jos 5,9a.10-12), a propósito da circuncisão dos israelitas, convida-nos à conversão, princípio de vida nova na terra da felicidade, liberdade e paz. Essa vida nova do homem renovado é dom do Deus que nos ama e convoca para a felicidade. Ele salva o povo israelita do cativeiro, porque o ama e porque, apesar das suas fraquezas e desânimos, ao longo da travessia do deserto, o mesmo povo se vai mantendo fiel. Salva cada um de nós, apesar das quedas e fracassos, se O procurarmos com o desejo sincero de reconciliação. A 2.ª leitura (2Cor 5,17-21) convida-nos a acolher a oferta de amor que Deus por Jesus. Só reconciliados com Deus e com os irmãos podemos ser criaturas novas em quem se manifesta o homem Novo. E o Evangelho (Lc 15,1-3.11-32) – depois de referir que, enquanto os publicanos e os pecadores (em quem se vê o filho pródigo), se aproximavam todos de Jesus, para O ouvirem, os fariseus e os escribas (em quem vemos o filho mais velho) murmuravam entre si – apresenta-nos o Deus, o Papá que ama de forma gratuita, com amor fiel e eterno, apesar das escolhas erradas e da irresponsabilidade do filho rebelde – amor sempre à espera, sem condições, para acolher e abraçar o filho que decide voltar. É um amor entendido na linha da misericórdia divina e não na linha da justiça dos homens.
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O livro de Josué narra a instalação do Povo de Deus na Terra Prometida. Com recurso ao género épico (relatos enfáticos, exagerados, maravilhosos) apresenta a tomada de posse de Canaã como passeio triunfal do Povo com Deus à frente e vinca a ação de Javé que, pelo seu poder, cumpre as promessas feitas aos antepassados e entrega aquela Terra ao seu Povo.
No texto desta liturgia, os israelitas, vindos do deserto e acabados de atravessar o Jordão, estão em Guilgal, lugar que devia situar-se a nordeste de Jericó. Aproxima-se a 1.ª Páscoa na Terra Prometida, que só os circuncidados podem celebrar. Por isso, Josué faz o Povo passar pela circuncisão, sinal da aliança de Deus com Abraão e de pertença ao Povo eleito. É neste contexto que surgem as palavras de Deus a Josué referidas na 1.ª leitura. Temos, pois, o Povo renovado que reafirmou a sua ligação ao Deus da aliança. É uma espécie de “conversão” coletiva, que põe um ponto final no “opróbrio do Egito” e assinala um “tempo novo” para o Povo de Deus.
A questão central gravita em torno da vida nova que começa para o Povo de Deus. A Páscoa, celebrada nessa terra livre, marca o início da nova etapa. Israel é, agora, o Povo eleito, comprometido com o Senhor, livre da escravidão, que inicia uma vida nova nessa Terra de Deus onde “corre o leite e o mel”.
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Cerca de 56/57, chegaram a Corinto missionários que se diziam apóstolos e criticavam Paulo, lançando a confusão querendo impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei moisaica ou, como dizem outros, condenando a severidade de Paulo e apoiando o laxismo da vida. Paulo, informado do desafio à validade do seu ministério, dirigiu-se à pressa para Corinto, disposto a enfrentar o problema, tendo aí sido gravemente injuriado por um membro da comunidade (cf 2Cor 2,5-11;7,11). A seguir, parte para Éfeso, donde envia Tito a Corinto, passado algum tempo, a tentar a reconciliação. Tito regressa com notícias animadoras: o diferendo foi ultrapassado e os coríntios estão novamente em comunhão com Paulo, aliviado e de coração em paz, escreve esta Carta aos Coríntios fazendo a tranquila apologia do seu apostolado.
O texto desta dominga integra a 1.ª parte da carta (2Cor 1,3-7,16), onde o apóstolo analisa as suas relações com os Coríntios, transparecendo aqui a necessidade premente de reconciliação. Com efeito, a palavra-chave é “reconciliação”. Mas, para lá da reconciliação entre coríntios e Paulo, é necessária a reconciliação entre coríntios e Deus. Daí o veemente apelo do apóstolo a que os coríntios se deixem reconciliar com Deus. Na verdade, foi “em Cristo”, que Deus ofereceu aos homens a reconciliação, pelo que aderir à proposta de Cristo é acolher a oferta de reconciliação que Deus fez. É desta reconciliação que Paulo se fez “embaixador” e arauto, passando o seu ministério por apelar a que se reconciliem com Deus para nascerem para a vida nova. É evidente que este apelo é para os cristãos de todos os tempos, pois os homens, que necessitam de viver em paz uns com os outros, dificilmente o conseguirão, se não viverem em paz com Deus.
A perícopa finaliza com a referência à eficácia reconciliadora da morte de Cristo, sendo que, pela cruz, Deus nos arrancou do domínio do pecado e nos transformou em homens novos. Ou seja, ao ser morto na cruz pela Lei, Cristo mostrou como a Lei produz morte e, ao mesmo tempo, ensinou-nos o amor total, o amor que se dá a todos e a cada um.
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A parábola do Evangelho é rica em imagens que ajudam a descobrir quem somos e quem é o Deus que nos salva. Pelos três intervenientes nela (o Pai, figura central e dois irmãos muito parecidos entre si e nada parecidos com o Pai), Jesus revela-nos o mistério de Deus misericordioso e o que nós somos levados a ser consoante sigamos os caprichos humanos ou as moções do Espírito.
Os filhos – um e outro – não conhecem o Pai. O mais novo vê-o como entrave à sua autonomia, pede-lhe a herança, como se já estivesse morto. Foge para longe da casa do Pai. E, quando decide regressar – abençoadas bolotas – quer apenas ser tratado como um trabalhador, a quem o patrão paga o salário devido; não espera receber de graça o amor do Pai. O mais velho perde-se na própria casa, vendo o Pai como o patrão de quem espera a recompensa pelo serviço, desempenho e obediência. Custa aos dois aceitar a condição de filhos e deixar-se converter pelo amor do Pai. Por sua vez, o pai sofre com a decisão do filho mais novo de se afastar, mas não o impede; espera, com paciência, que ele volte de livre vontade; tudo perdoa e alegra-se no quando o filho vem ao reencontro. Este pai é imagem do Pai que temos nos céus.
Todos nós desempenhámos já o papel do filho mais novo que – ressentido, por a ‘sua’ virtude não ser devidamente apreciada – toma a decisão de se afastar do pai e viver uma falsa e aparente liberdade – liberdade falsa que traz, mais tarde ou mais cedo, a desilusão, que o filho pródigo sentiu e, depois, teve a coragem de reconhecer o erro e, acreditando na benevolência do pai, regressou a casa com a esperança de ser acolhido. A parábola repete-se com cada um de nós no lugar deste filho. Pecamos, quando rejeitamos a vontade de Deus e nos afastamos d’Ele. O pecado é sempre um corte de relação – da relação com Deus, fonte de vida. Ora, para tal afastamento há o remédio da reconciliação. Procurá-la é ato de liberdade, que postula o reconhecimento do pecado e a vontade de reencontrar a corrente de amor que nos une ao Pai.
Se nos custa perdoar, é porque são sabemos amar. E então será fácil identificarmo-nos com o filho mais velho da parábola, que não tinha aprendido a amar. Cumpria por obrigação, servia o pai por dever, mas não comungava com ele na vida. Não partilhou da sua angústia, quando o irmão mais novo se afastou, como não partilhava a alegria do pai, quando o irmão regressou a casa. Antes, acusava o irmão (que não reconhecia como tal) de coisas que nem terá feito e acusava mentirosamente o pai de forreta. Tudo por inveja! Ora, o amor verdadeiro revela-se na comunhão de vida. Deus ama-nos assim: chamando-nos a partilhar da Sua vida, a vida da graça, e partilhando a nossa, ao assumir, em Jesus, a nossa humanidade.
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A Reconciliação é muito mais que o perdão do pecado: é um desafio para a mudança de vida. Os três textos da liturgia de hoje referem a vida nova que o homem convertido quer viver. Paulo chega a dizer: “se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas antigas passaram; tudo foi renovado” (2Cor 5,17). Já no AT, o Povo de Deus era chamado a uma mudança total. Nas planícies de Jericó não tiveram mais o maná como alimento. Antes, colheram os frutos da terra e trabalharam a própria terra para poderem continuar a alimentar-se do trabalho das suas mãos (cf Js 5). O paradigma desta mudança está na mudança do filho mais novo a quem o pai pôde confiar a gestão dos bens. Mais que parábola do perdão, esta história é a parábola da confiança. Quem é pródigo no acolher, no apoiar, no promover é o pai de família que, apesar das falhas do filho, o recebe de braços abertos e lhe confia o anel do brasão. Mas este pai vai também ao encontro do filho mais velho para que, vencida a arrogância, seja capaz de abraçar o irmão.
Para Monsenhor Vítor Feytor Pinto, a história do filho mais novo tem duas partes. A primeira é vivida no egoísmo do jovem que exige a herança, esbanja os haveres, tem vida dissoluta e acaba a guardar porcos. O egoísmo de querer salvar-se leva-o recorrer ao pai, mas a pensar no próprio interesse, pois referia que os trabalhadores da casa tinham pão em abundância. A segunda parte é pautada pelo amor do pai que se preocupa, espera o regresso, o acolhe de braços abertos, lhe faz uma festa e lhe confia a gestão dos bens ao entregar-lhe o anel com que se selavam as escrituras. O que move o pai é o amor sem fronteiras, é a ternura de Deus. Mesmo quando se Lhe recorre por interesses pessoais, a generosidade de Deus exagera na confiança, por acreditar na mudança de vida de todo aquele que O procura.
O egoísmo existe no filho mais velho que se preocupa com as festas que não teve, com o cabrito que não comeu, com o reconhecimento que sente não lhe ter sido dado. Mas o pai vai ao encontro dele para o reintegrar na casa comum. O seu argumento é amoroso, este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e encontrou-se” (Lc 15,32).
É esta a tradução do amor que Deus tem pelo homem pecador. A sua ternura paterna não violenta a nossa liberdade, antes a respeita. Mas não descansa enquanto não reconquistar o nosso afeto e nos recriar na dignidade de filhos muito amados, na alegria da Sua Mesa. O Pai é, na parábola, o verdadeiro cais do encontro. Oferece o perdão, isto é, o dom perfeito, e faz a festa porque vê o regresso do filho mais novo como um reencontro, uma nova páscoa, o parto duma nova criatura (cf 2Cor 5,17): “estava perdido e foi encontrado, estava morto e voltou à vida” (cf Lc 15,27.32). Depois, o Pai sai ao encontro do filho mais velho, para que este supere a lógica do dever, do “deve e haver”, se assuma como filho e aceite o irmão. Para o Pai, um e outro são filhos; não são assalariados; um e outros são amados, não em função dos méritos, mas pela grandeza infinita do amor paterno. Este Pai – afinal o Pai que está nos Céus – anseia a plena revelação dos Seus filhos como filhos de Deus (cf Rm 8,19).
Estamos como na história de Jonas, que inspira esta caminhada de cais em cais até cair de vez nos braços do Pai, como nosso verdadeiro cais de encontro e porto de abrigo. Revê-se na figura do filho mais novo Jonas que, à primeira chamada, foge para Társis, para longe de Deus, até cair em si, no meio da tempestade, e perceber que a sua fuga é causa de dor de todos os que tem à sua volta. A figura de Jonas é a cara esculpida em carrara do filho mais velho. Mas também Jonas, ressentido e mal-humorado, fica irritado por Deus ser misericordioso, paciente e cheio de bondade, sente pena dum rícino que nasce numa noite e numa noite morre, mas não compreende que Deus que Se compadeça de Nínive, onde há mais de 120 mil pessoas que não distinguem a mão direita da esquerda (cf Jn 4,10-11). A este Jonas (como ao filho mais velho, teimoso e rígido, que não compreende a misericórdia do Pai) Deus poderia ter dito: “Desenvencilha-te com a tua rigidez e fica para aí com a tua teimosia”. Mas não. Vai ter com Jonas para o instar, para o converter ao Seu amor. Porque é o Deus que não teme perder estatuto para ganhar os Seus filhos.
Por isso, não podemos ter medo de atracar decididamente nos braços do Pai como nosso cais de encontro, para alcançar em Cristo, morto e ressuscitado, “o porto da misericórdia e da paz” .
Com a parábola, Jesus mostra o que queria dizer quando rezava a Deus e Lhe chamava “Abbá”, “paizinho”, “papá”, e dizia-o com a mesma ou melhor ternura com que cada um de nós dirá “papá” ou “mamã”. Na verdade, o Pai da parábola tem modos de agir que recordam o coração da mãe, porque são sobretudo as mães que perdoam aos filhos, os defendem e continuam a amar mesmo quando eles já não o mereceriam. Isto quer dizer que Deus nos procura, mesmo que não O procuremos, nos ama ainda que O tenhamos esquecido. Deus é não só Pai, mas é como a mãe, que nunca deixa de amar o filho. Por isso, podemos sempre voltar para Ele como filhos, como quem regressa ao cais do encontro a dizer-Lhe: “Abbá”, “Papá”, “Paizinho”. Tu dizes-lhe: “Pai” e Ele responder-te-á: “Filho, tudo o que é meu é teu” (Lc 15,31). Esta será sempre a Sua resposta. Por isso, nunca nos podemos esquecer, todos os dias, em todas as horas, de dizer e de rezar como Jesus: “Abbá, ó Pai”, para nos tornarmos verdadeiramente filhos de Deus.
2019.03.31 – Louro de Carvalho

É confrangedora a falta de memória dos deponentes nas CPI


Num destes dias, houve jornais que fizeram capa com a “falta de memória” do governador do BdP (Banco de Portugal). Não é a primeira vez que tal hiperdose de amnésia comparece em CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), tendo sido o caso de Zeinal Bava o mais mediático, a ponto de alguns observadores passarem a falar do do bavismo.
A audição do governador do BdP na presente CPI à CGD (Caixa Geral de Depósitos) preenche parte significativa das primeiras páginas dos jornais do passado dia 28. Para lá das genéricas falhas ou lacunas de memória, são de destacar dois tipos de amnésia: a referente aos “créditos da Caixa”, como deixa estampado o Correio da Manhã; e a atinente à exposição do banco público ao BCP, como atesta o Jornal de Negócios.
Na audição de 5 horas, Mariana Mortágua confrontou Carlos Costa com os financiamentos da CGD a duas autoestradas em Espanha, no âmbito da sua responsabilidade pelo banco estatal no país vizinho, tendo obtido como resposta o invariável “não tenho memória”. Porém, a resposta invariável não se mostrou imbatível à ironia da deputada bloquista, que inferiu ter o Governador boa memória para as operações que derem lucros, mas uma memória fraca para aquelas que resultaram em prejuízos.
Foi, com efeito, Mariana Mortágua quem confrontou Carlos Costa com o tema: o BdP já sabia em 2011 quais eram os grandes créditos problemáticos para a CGD, o que não fez travar nomeações de antigos administradores como fez a auditoria da EY. Disse a deputada:
Eu também achava que o relatório da EY tinha sido decisivo para estas avaliações [de nomes para cargos], até que vou procurar nos documentos enviados ao Parlamento e encontro uma auditoria do Banco de Portugal de 2011.
E, citando passagens daquela auditoria de 2011, revelou ter encontrado informação “sobre os contratos mais precisa e minuciosa” do que na EY quanto aos grandes devedores da CGD, como Joe Berardo, a Investifino, o Grupo Espírito Santo ou o grupo Goes Ferreira, e fez várias críticas à inação do supervisor face ao que já sabia há 8 anos. E Costa respondeu com ironia:
Felizmente, a deputada está a dar ao Banco de Portugal o mérito de ter feito a auditoria e de ter detetado as situações.
Obviamente os deputados riram. Mas não foi este o único momento em que tal sucedeu. Assim, quando o governador foi confrontado com o seu envolvimento nos grandes e problemáticos créditos para a CGD, disse não ter nos seus registos nem na memória  averbado a participação nas reuniões que decidiram estas operações. Sabe-se lá porquê!
Outros temas levantados na audição foram: o monte comprado a Armando Vara, que Carlos Costa disse ter sido adquirido por “procuração”, pois não estava então em Lisboa; e o momento do pedido de escusa, que não foi em novembro de 2018, mas no início de 2017, “sempre que a questão se colocou”. Sobre a escusa, rejeitou que signifique a sua implicação pela auditoria, afirmando ter-se afastado das decisões para a “reforçar a qualidade da decisão” em termos da perceção pública e disse que os deputados “não sabem o que é a supervisão”.
A última divergência entre a CPI e o governador incidiu no que os deputados chamaram de “ficheiros secretos”, ou seja, o relatório Costa Pinto (documento do então presidente da comissão de auditoria João Costa Pinto com a ajuda da BCG) sobre a atuação do BdP no caso do BES e que Carlos Costa se recusa a enviar à AR. Aí, reiterou a asserção de que não iria enviar o documento (que terá apontado falhas à atuação do supervisor em relação ao BES), alegando que “é um documento interno” para “reflexão do governador” e protegido “pelas regras do sistema dos bancos centrais” que visam “salvaguardar a independência da supervisão”.
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Como foi dito, não é a primeira vez que alguém, numa CPI à banca, se escuda na falta de memória, alegadamente por muitos serem chamados a depor sobre factos ocorridos há s anos.
Assim, à CPI ao Banif, Vítor Constâncio, o anterior governador do BdP, que tinha a excecional prerrogativa de poder responder aos deputados por escrito por então ser vice-presidente do BCE, enviou uma carta em que aduzia ter uma memória “muito lacunar” sobre o que aconteceu no banco. Referia o ilustre administrador:
Deixei de representar a instituição em junho de 2010, não trouxe comigo qualquer documentação propriedade do BdP e não tenho naturalmente direito a solicitar qualquer informação neste momento. Toda a memória institucional está na posse do BdP e a minha memória dos poucos assuntos relativos ao Banif que foram apreciados no Conselho de Administração, passados tantos anos, é naturalmente muito lacunar.”.
Agora, que já abandonou o cargo internacional, esteve no dia 28 a falar presencialmente à Assembleia da República (AR) sobre o papel que teve na supervisão da CGD, que deu créditos considerados ruinosos numa altura em que Constâncio era governador do BdP.
Logo no início, já avisava os deputados:
Não tenho muito mais a acrescentar depois do que disse nas respostas por escrito que dei na primeira comissão”.
Mesmo assim, a audição acabou por ser a mais longa das três que se realizaram na última semana. É um velho conhecido das lides parlamentares, não só porque foi político (liderou o PS entre 1986-1989), como já tinha sido chamado anteriormente para prestar declarações sobre a atuação do BdP em casos como o BPN e o BES. Aliás, já lá tinha sido chamado em 2012 por causa da nacionalização do BPN.
Ao invés de Costa, que tentou proteger-se das críticas e acusações, Constâncio chegou ali como “alguém que já passou à história”. Assim, tornando-se-lhe fácil reconhecer falhas, disse:
Não sinto que tudo correu mal, mas decididamente que houve falhas em relação a alguns aspetos da supervisão, mas não foi só em Portugal, mas em todos os países europeus.
Os deputados quiseram colocá-lo na pele de corresponsável das perdas da CGD, o que Vítor Constâncio sempre recusou a assumir pessoalmente. Disse que era genericamente o responsável máximo do BdP, mas vincou:
Há que fazer uma distinção entre o que é a participação pessoal ou não, o que é uma responsabilidade genérica de uma instituição. Numa grande organização, o presidente nunca é informado de tudo. Não é da responsabilidade de gestores de topo, sobretudo de quem não tem a responsabilidade direta da supervisão.”.
Admitindo a possibilidade de atos ilícitos, mas duvidando de que tenham existido, lembrou que “a CGD sempre foi uma instituição que nunca deu muitas preocupações” ao BdP. Para o assegurar, socorreu-se de vários indicadores – lucros de biliões de euros, taxa de rentabilidade mais alta do mercado, rating de grande qualidade… – aduzindo que veio a crise e foi a “explosão geral” no crédito malparado que afetou todo o setor financeiro.
Os deputados tentaram puxar pela memória de Vítor Constâncio sobre os alertas de Almerindo Marques, antigo administrador da CGD, que lhe enviou duas cartas a denunciar operações irregulares e lesivas para o banco estatal. Mas o antigo governador do BdP afirmou:
Se a carta existiu, haverá registo no Banco de Portugal. Não tenho ideia dessa carta. Não tenho obrigação de ter memória de todas as cartas, era impossível.”.
Mais tarde, ao ser novamente confrontado com o tema, disse lembrar-se do que lhe transmitiu o seu vice-governador (que tinha o pelouro da supervisão) e afirmou que a resposta que obteve é de que “as operações eram legais”. Ora, sendo operações legais, o supervisor não podia impedi-las. E chegou a responder por cima de uma intervenção de Mariana Mortágua:
É a lei, é a lei, é a lei!”.
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Porém, o caso mais mediático foi o de Zeinal Bava em fevereiro de 2015.
Com efeito, foi largamente badalado o que se passou com o antigo presidente da PT na sua prestação na CPI ao BES. Em 6 horas de audição, por várias vezes, repetiu expressões como:
Não tenho memória”, “não sabia, não tinha que saber”, “tenho dificuldade em dar-lhe esses números” e “não tenho responsabilidade”.
Isto sucedeu quando os deputados o confrontavam as suas responsabilidades na aplicação de tesouraria ruinosa que a operadora de telecomunicações fez na Rio Forte.
Incrédula face às evasivas por parte do deponente, a deputada Marina Mortágua atirou:
É um bocadinho de amadorismo para quem ganhou tantos prémios de melhor CEO do ano, melhor CEO da Europa e arredores”.
Também em 2014, na mesma CPI, Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo Silva, ex-chairman da Rio Forte, teve problemas para se recordar do sucedido, que o Expresso resumiu:
Eu não sabia”, “não me lembro”, “eu nunca imaginei”, “não sei”, “não acompanhei”, “nunca supus”, “nunca participei”, “nunca tive qualquer informação”, “não lhe sei dizer”, “não estava no meu âmbito”, “nunca tratei”, “não era da minha competência ou responsabilidade”, “não sou um financeiro”, “nunca participei”, “nunca intervim”, “nunca fui membro”, “nunca tive funções executivas”, “agora não me recordo”, “desconheço”, “estava a par, mas não com detalhe”, “não era do meu pelouro”, “eu não estava lá no dia a dia”, “não faço comentários”… 
Ante uma CPI sobre os media – inquérito ao plano da PT para comprar a TVI – Henrique Granadeiro, que durante muitos anos dividiu o poder na PT com Zeinal Bava, também teve um lapso de memória. Respondendo à deputada Cecília Meireles, que lhe perguntou quem foram os acionistas que sugeriram o nome de Rui Pedro Soares para a lista do conselho de administração da PT formada em 2006, disse:
Não me recordo quem sugeriu o nome de Rui Pedro Soares, como não me lembro dos outros 24 [o conselho de administração da PT era formado por 25 administradores]”.
Ainda no âmbito do inquérito ao BES, Helder Bataglia, presidente da Escom, também não se lembrou com quem assinou contrato na ES Enterprise. A este respeito, escrevia o Observador:
Mas quem o contratou por fora? Em nova resposta remetida ao Parlamento, o presidente da Escom alega: ‘não me recordo de quem subscreveu o contrato por parte da ES Enterprise, nem da pessoa ou pessoas com quem estabeleci os detalhes da contratação’.”. 
Quando o Expresso apontou a Dias Loureiro que teria mentido na CPI ao BPN ao dizer que desconhecia o Excellence Assets Fund (veículo que permitiu uma compra ruinosa de duas empresas tecnológicas em Porto Rico), a resposta do ex-Ministro foi: 
Não me lembro dos contratos, posso ter assinado, se vocês o dizem, mas não tenho memória. Foram dois atos isolados. Não tenho arquivo nenhum. Sei que assinei o memorando de entendimento no início do contrato e mais nada.”.
No mesmo inquérito, Francisco Comprido, ex-administrador do fundo do BPN, alegadamente envolvido no negócio do Porto Rico, invocou falta de memória durante toda a sua audição no Parlamento: Não me recordo. A resposta causou estupefação e indignação nos deputados, o que levou o socialista Ricardo Rodrigues a lembrar, segundo escrevia o Público em 2009, que “a recusa da não participação na comissão de inquérito, sem alegação de cumprimento de sigilo, é crime de desobediência qualificada”.
A CGD já teve direito a três CPI. Na primeira, em 2017, Armando Vara, administrador do banco público, aquando da concessão de vários créditos problemáticos por parte do banco, agora em investigação, provocou confusão nos deputados, pois o ex-gestor, primeiro, começou por dizer que nunca tinha falado com Sócrates sobre a CGD, enquanto este era Primeiro-Ministro, mas depois disse que não se lembrava. E a resposta final ficou nos termos seguintes:
Tenho a certeza de que nunca falei e de que o engenheiro José Sócrates nunca falou comigo sobre as questões da Caixa. Mas na verdade, provavelmente se a minha memória não inventou qualquer coisa na minha cabeça. Não está nada em relação à Caixa com o engenheiro José Sócrates.”.
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Foram muitas as explicações, as dúvidas e peripécias durante as quase 15 horas de audições que marcaram o arranque dos trabalhos da comissão de inquérito à recapitalização da CGD.
Florbela Lima (EY), Costa e Constâncio foram os primeiros inquiridos na comissão da CGD.
Conhecida a posição de Costa e Constâncio, resta saber o que disse a EY à CPI.
EY, responsável pela auditoria independente aos atos de gestão da CGD entre 2000 e 2015, entre outros aspetos, concluiu que se cifram em 1,2 mil milhões de euros as perdas que o banco público registou naquele período relativamente aos 25 maiores créditos. Aliás, foi esta auditoria que deu origem à II CPI à recapitalização da CGD e aos atos de gestão.  
Assim, quando Florbela Lima, partener da EY e principal autora do relatório da auditoria, começou a falar, no começo da tarde do dia 26 de março, deixou o aviso que seria premonitório: “O nosso trabalho não emitiu juízos de valor sobre a qualidade das decisões tomadas”. E explicou, em seguida, que abordou antes o processo de decisão tendo em conta as regras e as normas internas em vigor na CGD em cada período. E socorreu-se deste argumento ao longo da audição para evitar qualificar muitas das operações ruinosas para o banco público.
A uma provocação de um deputado, a especialista responsável pelo relatório final disse:
Há decisões que não foram justificadas, sim. Se houve créditos de favor? É o senhor deputado que tira essa conclusão, não somos nós. Não analisámos a qualidade das decisões.”.
E disse, por várias vezes, que não se pode estabelecer relação direta entre o facto de a CGD não ter cumprido as regras do crédito e os grandes defaults. Os deputados tentaram muitas vezes extrair um dado que a própria auditoria permitiu concluir: em que período se concentraram as maiores perdas para o banco e houve mais atropelos às regras internas de concessão de crédito. E Florbela Lima esclareceu que, durante todos os anos, se verificou este tipo de situações” em que o normativo não foi cumprido.
Todavia, a audição acabou por ficar marcada pelo tema dos contratos em falta relativamente a alguns dos maiores créditos da CGD. Florbela Lima começou por advertir que “há informação que não foi localizada” e que a auditoria se cingiu à informação a que a EY teve acesso. Face a esta asserção, a assunto foi explorado até a auditora admitir que não lhe foi disponibilizada documentação sobre quatro dos 25 financiamentos mais problemáticos.
Assim, em resposta à deputada centrista Cecília Meireles Florbela Lima precisou:
Eu não estou a dizer que não existe contrato, estou a dizer que o contrato não nos foi disponibilizado.
Porém, quando a deputada a questionou:
 O facto de não ter sido disponibilizado é um indício muito forte de que não há sequer contrato. Como é que sem suporte documental a CGD pode recuperar este crédito?
A deponente rendeu-se, dizendo: “É um facto”. Com efeito, não havendo documentos que comprovem a dívida, torna-se difícil para o banco bater à porta do devedor para a reclamar.
E, no dia seguinte, logo pela manhã, o banco público vinha esclarecer:
A CGD confirma a formalização contratual respeitante aos quatro créditos mencionados como parte do top 25 do relatório de auditoria da EY. A CGD esclarece ainda que, das 60 operações referidas na audição, apenas 24 tinham exposição à data de dezembro de 2015, confirmando a CGD que tem os documentos contratuais que identificam e legitimam integralmente a sua posição e direitos..
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Como é possível esta gente ficar tão desmiolada perante os deputados, sem memória e cheia de arrogância ou a dizer que eles não sabem, não percebem...? E são estes que (tendo feito política ou não) ganham balúrdios para arruinar o dinheiro do depositante, investidor e contribuinte. Basta!
2018.03.30 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de março de 2019

Uma “Nova Gramática de Latim”, que se lê com proveito e prazer


Veio para as livrarias, no passado dia 15 de março a Nova Gramática do Latim, do professor Frederico Lourenço, um livro de 512 páginas editado pela Quetzal Editores, que a publicitação diz com legítimo orgulho ser uma gramática “desempoeirada”, que será para todos. É uma gramática atualizada do latim a responder às contemporâneas exigências da investigação pautada pelo rigor e da receção que pretende legível e aprazível a obra que é dada à estampa.
O autor, hoje quiçá o mais importante dos mestres de estudos clássicos no ativo em Portugal, tornou-se conhecido pela tradução portuguesa (atual e moderna) dos tradicionalmente designados por poemas homéricos (Ilíada e Odisseia), bem como as respetivas versões para jovens, e a tradução para português de hoje da versão bíblica da Septuaginta (a Bíblia grega), indo já no Volume IV (preveem-se seis volumes), Tomo I. E, segundo diz, agora tem o sonho de “fazer uma gramática do grego.
É referido que a Nova Gramática do Latim é “um livro para todos”, porque o estudo do Latim não pode ser unicamente “um luxo de eruditos”, pois “é a matriz da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa cultura, das nossas origens”. E o editor reconhece que, “durante décadas, assistimos à diminuição gradual do interesse pelas línguas e culturas clássicas”, mas, “com a publicação de obras traduzidas do grego e do latim por classicistas como Frederico Lourenço (entre outros), parece estar a processar-se “uma alteração nessa curva descendente e o renascimento do gosto por esse mundo onde estão parte das nossas raízes”. Assim, este livro será “uma obra de consulta e trabalho” e uma obra “fascinante sobre a língua latina, a sua literatura e os mistérios da língua que hoje falamos”. Sobre isto, diz o autor:
Uns quererão aprender latim para ler Agostinho ou Tomás de Aquino ou Pico della Mirandola ou Descartes ou o padre António Vieira. Outras pessoas olharão para a Antiguidade romana, para os grandes autores pagãos, como principal chamariz para pisar a ponte mental que é a aprendizagem da gramática latina. É uma ponte que as levará do português, que é uma forma de latim, para a explosão de nitidez que é o latim propriamente dito. Abre-se-lhes, então, um universo intelectual de cujo interesse não podemos separar o facto de continuar tão válido hoje como era ontem ou há 2000 anos. Na verdade, podemos dizer que estudar latim é um pouco como diz Vergílio na Eneida: ‘Entra-se numa floresta antiga’.”.
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Obviamente, sem desmerecer do valor desta gramática, que é valioso e “inexcedido” até ao presente, não posso concordar com o item da sua publicidade, que aponta que a gramática mais usada em Portugal “teve a sua primeira edição há mais de 50 anos e refletia ainda os programas e as metodologias do ensino do latim nos liceus antes do 25 de Abril”.
Na verdade, a 3.ª edição da Gramática latina, de António Freire, surgiu em 1983 (subsidiada pela Secretaria de Estado do Ensino Superior), constituindo uma versão “completamente remodelada e cientificamente elaborada” face a edições anteriores, com a adição de questões de Fonética, Morfologia e Sintaxe históricas, para o que recorreu a excursus ou digressões, e complementada com exercícios correspondentes para os Liceus e Universidades na 3.ª edição da Retroversão Latina. E o autor confessou-se aberto a sugestões que foram acolhidas na 4.ª edição em 1987.
Também a Lisboa Editora publicou, em 2000, a 2.ª edição da Gramática latina, de António Afonso Borregana, que a  Raiz Editora / Lisboa Editora reeditou em 2006. O muito usado Compêndio de Gramática Latina, de José Nunes de Figueiredo e Maria Ana Almendra foi reeditado pela Porto Editora em 2016. Em 1997, a mesma editora publicara o Guia de Gramática de Latim, de José Marcelino Gomes, uma caixa cartonada com 36 cartões ou fichas que “contêm, de modo altamente condensado, todo o principal conteúdo de apoio à elaboração de uma qualquer tradução que faça parte dos conteúdos programáticos”. E a Editorial Presença editou, em 2000, a Gramática de Latim, de Leo Stock, com tradução para português de António Moniz e Maria Celeste Moniz, complementada com a brochura Conjugação dos Verbos Latinos, do mesmo autor e com tradução dos mesmos. Isto, para não falar do esforço feito pela REL (Renovação do Ensino do Latim) nas décadas de 70/80, que produziu a respetiva sebenta. 
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Agora, a partir de 15 de março (adquiri-a no dia 25), está disponível nas livrarias a Nova Gramática do Latim, de Frederico Lourenço, Prémio Pessoa em 2016, docente de línguas clássicas desde que se licenciou, em 1988, tendo começado o percurso profissional como professor de Latim no ensino secundário. A novidade foi apresentada, na manhã de 18 de fevereiro, por Francisco José Viegas, diretor editorial da Quetzal, e pelo autor, no encontro com os jornalistas na Cinemateca, em Lisboa. Disse o autor:
Não sou o primeiro tradutor português da Bíblia a publicar em simultâneo uma gramática de latim porque no século XVIII António Pereira de Figueiredo, o primeiro tradutor da Bíblia completa para português, também foi autor de uma gramática de latim muito utilizada ainda no século XIX”.
E referiu que a gramática “foi feita com aqueles parâmetros que eram habituais no século XVIII e XIX, em que o latim fazia parte da escolaridade”, mas, lembrando que “hoje uma gramática como a de António Pereira de Figueiredo não seria útil para ninguém”, pelo que “era necessário pensar numa gramática do latim feita noutros termos” e foi o que ele quis fazer.
Sustentando que será uma gramática moderna e atualizada destinada aos professores e alunos do ensino secundário, aos universitários e a quem não sabe nada desta língua, mas que gostaria de olhar para um excerto em latim e perceber o que lá está escrito, discorre no Preambulum:
Muitas pessoas gostariam de saber latim – até pessoas que não estão ligadas às Letras. Outras – historiadores, arqueólogos, linguistas, teólogos, filósofos e lusitanistas – têm consciência de que deveriam saber (bastante mais) latim. E outras, ainda, estão de facto a aprendê-lo em Portugal, na escola ou na universidade, mas sem se darem conta de que, muito provavelmente, usam recursos para o estudo do latim que ainda refletem, em pleno século XXI, os programas e as metodologias dos liceus no tempo da ditadura de Salazar. Este livro pretende oferecer a todas estas pessoas uma gramática nova, cujo objetivo é sistematizar de forma desempoeirada os tópicos essenciais para a leitura de textos latinos em prosa e em verso. (…) Aquelas palavras vernáculas que aparecem nas inscrições latinas, porque os romanos também diziam palavrões, estão aqui. Os romanos escreviam-nas, faziam parte do dia a dia. Mas os exemplos também são tirados dos grandes autores clássicos, dos grandes autores cristãos.”.
Dizendo que procurou, na obra, “exemplos de latim real, autêntico” e evitou “o latim forjado, as frases inventadas para se ensinar latim, que aparecem em muitas gramáticas, assegurou ter achado “mais motivante” dar aos leitores “frases de autores reais, desde os mais elevados até àqueles que escreviam com palavrões e com erros de ortografia”. Por outro lado, muitos dos grafitos que Lourenço utiliza servem para explicar que também os romanos escreviam de uma forma fonética (“escreviam como falavam). Se temos a controvérsia de reformas ortográficas (não foi a de 1990 em vigor a única problemática), “os romanos já tinham resolvido isso”, não pronunciando “certas letras que apareciam na escrita culta”, pelo que “se iam escrever um grafito na parede a mandar alguém àquela parte, escreviam como falavam”. Assim, o atual gramático adverte:
É muito importante termos essa noção de que o latim não é uma língua em mármore, foi uma língua viva durante muitos séculos. E é uma língua que nos transmite toda a experiência humana, desde o sexo mais sórdido até à espiritualidade mais elevada. Está tudo presente na literatura latina.”.
Assim, esta gramática tenta uma abordagem histórica, que abrange desde exemplos mais antigos que conhecemos do latim escrito a exemplos do latim cristão mais tardio. Confessa o autor:
Nisso estou a seguir uma metodologia completamente diferente das gramáticas tradicionais. Uma delas, do século XIX, dizia que era intolerável dar exemplos de latim posterior ao século II. Eu acho que é intolerável não dar. Logo à partida isso nos impediria de dar exemplos de Santo Agostinho, um dos maiores escritores que alguma vez escreveu em qualquer língua e um dos mais talentosos escritores da língua latina.”.
Verificando que em algumas gramáticas se encontram frases atribuídas a Cícero, a Salústio, a Tácito... que eles nunca escreveram, Lourenço, que utilizou uma coletânea de toda a obra que existe em latim da Universidade de Harvard para poder fazer tal busca, diz: 
Podemos hoje verificar se uma frase supostamente de Cícero é dele ou não. Verifiquei cada citação de modo a que ela seja mesmo aquilo que os autores escreveram. Penso que isso é um aspecto importante desta gramática. (…). Quis também que esta gramática fosse um livro interessante sobre a língua latina e sobre a língua portuguesa. Por isso, a obra tem vários capítulos de reflexão sobre a história da língua e sobre a literatura latina.”.
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Em informação enviada à comunicação social, a editora vincava que “o estudo do latim não é apenas um luxo de eruditos; é a matriz da nossa identidade, do conhecimento daquilo que somos, do que é a nossa cultura, das nossas origens”, pelo que a gramática “procura evitar informação secundária e redundante” e pretende ser um guia “essencial” para quem utilizar para “abordar a leitura de textos latinos em prosa e em verso”. E recordava que, em 2016, Lourenço fora distinguido com o Prémio Pessoa, em cujo anúncio o presidente do júri, Francisco Pinto Balsemão, enaltecera o trabalho de tradução de “grandes obras de literatura clássica, através de um trabalho metódico, revelador de uma ambição servida por uma rara erudição”; e que Lourenço “traduziu com rigor as obras fundamentais de Homero, bem como duas tragédias de Eurípedes” e evidenciou o “desejo de disseminar a Cultura Clássica pelo público”.
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A gramática abre com um Preambulum, onde fica expressa a intenção da obra e algumas das suas especificações; segue-se o apartado de Abreviaturas, sinais e convenções (sendo de ressaltar o uso do sigma lunar c, em vez dos bizantinos σ, ς – inventados no século IX d.C.), a ter em conta para o entendimento da gramática; e seguem-se dois capítulos: Introdução à língua latina e Noções básicas de pronúncia.
No primeiro, situa-se o latim no concerto de outras línguas, com destaque para o grego – que não foi apenas fruto da conquista romana da Grécia, mas era língua falada e escrita por muitos elementos da elite romana – e para as línguas da península itálica, de que ficaram poucos vestígios, bem como das línguas vigentes nos territórios sujeitos à romanização. Por outro lado, o autor, que faz história da língua latina desde os primórdios até tempos bem tardios da modernidade, recolhe exemplos da epigrafia, dos grafitos, dos epitáfios, das obras literárias, da antiguidade à modernidade, assegurando que a latinidade teve uma literatura autónoma e pujante (ao invés do que muitos quiseram fazer crer). E, além de fazer algumas comparações com outras línguas, algumas da atualidade, e de assegurar que o latim persiste reconhecível nas línguas românicas, apresenta um quadro com a proveniência territorial de autores e respetivas obras (nenhum deles de Roma) do início da República e do início do Império. No segundo capítulo, refere as diversas tentativas de pronúncia do latim, marcando a nota da evolução aparecimento de novos grafemas e da tentativa de pronúncia por parte dos povos que leem o latim escrito que chegou a até nós e sustentando a validade da pronúncia dita restaurada, com a sua situação no respetivo tempo histórico e procurando o real sustentáculo da sua legitimidade, por exemplo, pela via das onomatopeias.           
Entra-se, depois, na 1.ª parte, a da “I. Morfologia”, com o capítulo da Introdução aos casos (relevando o seu interesse sintático e de compreensão, a sua historia, a diferenciação do vocativo nos nomes da 2.ª declinação terminados em -us e os resquícios do antigo locativo indo-europeu, mas não mencionando o instrumental); seis capítulos dedicados aos Substantivos (Lourenço mantém esta designação em vez de “nomes”, que Stock adota), um por cada uma das 5 declinações e outro para os substantivos compostos; o capítulo da Introdução ao verbo latino (explicando por que motivo não há futuro do conjuntivo, esclarecendo o sentido dos modos verbais e distinguindo os tempos do imperfectum e do perfectum; mantem a designação do verbo pela 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo, mas dispensando a menção da 2.ª na enunciação do verbo); O verbo sum’; Verbos (presente, futuro e imperfeito) Verbos. ‘Perfectum’ (perfeito, mais-que-perfeito e futuro perfeito); Quadro completo das quatro conjugações; Verbos irregulares e defetivos; Principais verbos depoentes; Pronomes; Adjetivos; e Advérbios.
Além das pertinentes explicações de cada uma das classes gramaticais e da formação e evolução das palavras e comparação com as similares em diversas línguas antigas e modernas, são de relevar: a indicação de forma verbal para a 2.ª pessoa do plural do imperativo futuro da passiva; amamino, inexistente na 2.ª conjugação, regimino, capimino e audimino; a não menção da terminação -ere na 3.ª pessoa do plural do perfeito do indicativo; a menção da vogal breve entre o tema verbal em consoante e a desinência; a comparação recorrente entre as formas latinas e as gregas; os casos de anaptixe e de apofonia (notei que refere palavras compostas em situações prefixação, que se têm hoje por derivadas por sufixação); a não menção do demonstrativo iste ou de neuter e alteruter no âmbito do que chama – e bem – adjetivos pronominais de conjugação mista.     
Segue-se a 2.ª parte, a da “II. Sintaxe”, com: Introdução ao estudo da sintaxe latina; Conjunções; Preposições; Sintaxe dos casos (acusativo, dativo, genitivo ablativo); Consecutivo temporum; Guia prático de orações subordinadas (infinitivas, finais, consecutivas, condicionais, causais, temporais, concessivas, comparativas, relativas); Interrogativas diretas e indiretas; Ordens diretas e indiretas (Não se trata da ordem das palavras na frase, mas da formulação de pedidos, exortações ou ordens pela afirmativa ou pela negativa); Orações de quin e quominus’; verbos que exprimem receio; verbos impessoais; Particípios; gerúndio e gerundivo; supino.
É de sublinhar a inclusão das conjunções e preposições na Sintaxe; o relevo dado à sintaxe dos casos especificando, em cada um, os diversos tipos e as palavras que os regem; o tratamento específico, em Sintaxe, das formas adjetivas (gerundivo e particípios) e substantivas (infinitivo, gerúndio e supino) do verbo, depois de as ter identificado na Morfologia; e a dedicação dum capítulo às Ordens diretas e indiretas.
Por fim, em “III. Varia”, abordam-se os Numerais – cardinais e ordinais (omitindo os distributivos e os adverbiais); Noções de fonética histórica do latim (com relevo para muitos fenómenos fonéticos conhecidos da gramática histórica do português, mas bem aplicados na origem e na história do latim); Noções de métrica latina: poesia; Noções de métrica latina: prosa (Além da minuciosa explicação da diacronia e da sincronia da versificação com os diverso tipos de pés e versos, releva-se a métrica na prosa, em que sobressai o ritmo); Datas romanas (com a origem dos nomes dos meses, o processo de formação da designação do dia do mês e a sua aplicação por extenso e por abreviatura a cada um dos dias de cada mês – coisa nunca vista); Abreviaturas romanas; Vocabulário essencial da língua latina (que Lourenço entende ser objeto de memorização); Antologia de textos (para criar hábito de ler latim: desde o ‘Epitáfio de Cláudia’ ao Epitáfio de Gregório V); Bibliografia (abundante); Índice temático (útil, embora pouco extenso).
Lourenço usa a nova ortografia, embora não o Dicionário Terminológico em vigor.
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Enfim, apesar de alguns (poucos) reparos entrelidos e sem evidenciar todas as vantagens, é de saudar a gramática da pena de Lourenço, elaborada em permanente diálogo com a história das línguas, com os autores latinos e com a comunidade de investigadores e estudiosos. Prosit!  
2019.03.30 – Louro de Carvalho