domingo, 5 de maio de 2024

Temas da 209.ª Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa

 

De 8 a 11 de abril de 2024 decorreu, em Fátima, a 209.ª Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que, para lá dos assuntos habituais (nomeações, Relatório de Contas, informações, comunicações e projetos das diversas estruturas) e de alguns aspetos circunstanciais (como a nomeação do novo Bispo de Beja), abordou temas cuja relevância merece destaque.

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No discurso de abertura, o presidente, aludindo ao tempo de Páscoa, que inspira renovação e vida, apontou “os dramas da guerra, com as suas sequelas de horror, barbárie e destruição que ensombram o panorama mundial, causando sofrimentos inauditos a milhões de pessoas e pondo despudoradamente a nu a crueldade visada de matar, abusar e fazer reféns pessoas inocentes ou, em resposta, devastar sistematicamente as possibilidades elementares de vida de populações inteiras, reduzindo-as à mais indescritível miséria”. E, citando o Papa Francisco, frisou que “a guerra nunca é solução e leva apenas à destruição, ao sofrimento e à morte, semeando ódios que permanecerão por muitas gerações”, pelo que é preciso “aderir à manhã nova da ressurreição, com pressupostos novos para construir um Mundo mais humano”, para o que temos de nos empenhar na “tarefa primordial de construção da paz”.

Do cinquentenário do 25 de Abril, sustenta que “os seus ideais de desarmar a guerra, a opressão e a ditadura e de revigorar valores civilizacionais que marcam a História de Portugal desde 1974, constituindo a celebração “uma gratificante ocasião de renovação e de afirmação dos valores que devem marcar o presente e o futuro”. Assim, “a imagem emblemática dos cravos no cano das armas”, que ilustra a festa da liberdade, da vida e da esperança que marcou e continua viva no património identitário do nosso povo”, fez “instaurar, progressivamente, a justiça social, fomentar o desenvolvimento em tantos lugares e devolver dignidade à vida de tantas mulheres e tantos homens”. Todavia, é de “reconhecer que muito há ainda por fazer, a fim de que os fundamentos da democracia não sejam postos em causa, seja pela desilusão e apatia de quem vê a deficiente solução de problemas ligados a dimensões básicas como a educação, a saúde e a habitação, seja pela manipulação irresponsável do justo descontentamento e do protesto”.

As eleições ocorridas no cinquentenário mostram o “funcionamento da democracia”, mas os cidadãos têm o direito de esperar que os eleitos, sem porem em causa as legítimas diferenças de análises e de propostas, encontrem “soluções concretas justas e viáveis”, que acudam à gravidade dos problemas, pondo “o bem dos cidadãos e do país acima de interesses partidários ou corporativos”, rumo a “consensos ao serviço do bem comum e de um futuro melhor para todos”.

Portugal saiu do isolamento do “orgulhosamente sós”, para se abrir à comunidade internacional, a começar pela ativa participação no contexto europeu em que nos integramos. É uma abertura “sem pretensões de império ou de domínio”, mas de “relacionamento com os outros povos e culturas, marcado por valores universais”, na garantia da concretização da fraternidade, que não resulta só de “situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade”, mas da certeza de que “todo o ser humano tem direito a viver com dignidade e a desenvolver-se integralmente”, sem que algum país lhe possa negar “este direito fundamental”.

Ora, com o ideal de Abril, somos “parceiro ativo e apreciado na busca de soluções humanizadoras para o presente e o futuro do nosso planeta e da Humanidade que o habita”. Por isso, deixámos de ser apenas capazes de “emigrar, em fuga”, buscando melhores condições de vida e dando “precioso contributo à vida económica e social de países de destino”. Hoje, somos também “país de acolhimento, com uma crescente percentagem de pessoas oriundas de todo o Mundo, que vêm com os mesmos objetivos com que os nossos compatriotas partiram”. Importa, pois, que “sejamos capazes de criar condições justas, dignas e capazes de assegurar a fraternidade, a paz e o sucesso”. O país precisa destas pessoas e pode proporcionar-lhes bom futuro, na capacidade de integração que temos. Este, que é “um desafio bem em linha com os ideais universais de Abril”, deve ser “um nobre objetivo do Estado e de todas as instituições e cidadãos”.

Neste âmbito, o Comunicado da 209.ª Assembleia da CEP vinca a reflexão feita em torno da “complexidade social” da sociedade portuguesa, de “desigualdades gritantes”, de “crises sucessivas” e de “níveis da pobreza em crescimento”, agravando as já “difíceis condições de vida das famílias”.

Sobre os migrantes que chegam ao país em busca de vida melhor e sobre a dificuldade de as instituições darem resposta adequada ao seu acolhimento e inclusão, a Assembleia reconhece que “é necessário ir além das respostas de emergência”. Nestes termos, “a Igreja, que tem instituições com larga experiência no acolhimento, proteção, promoção e inclusão de migrantes e refugiados, manifesta a sua disponibilidade para cooperar com os organismos estatais, a quem compete a construção de um plano que contribua para criar condições justas e dignas da vida dos milhares de imigrantes que chegam a Portugal”.

Sobre os 50 anos da Revolução do 25 de Abril, a Assembleia aprovou uma nota pastoral de congratulação, que reflete o caminho percorrido pela sociedade, de que a Igreja faz parte, e “reconhece tudo o que de positivo se conseguiu no Portugal democrático”. E sustenta que, “na senda da liberdade, sem esquecer a justiça social e a responsabilidade em função da dignidade humana e do bem comum, somos chamados, hoje, a retomar os valores de Abril, no sentido da democratização do país, do fim da guerra e do desenvolvimento geral”.

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Um tema candente que se manterá como tal enquanto houver pendências sociais foi o da “Proteção de Menores e de Adultos Vulneráveis”.

O presidente da CEP considerou que, em muitos países, a questão dos abusos de menores e de adultos em situação de vulnerabilidade e, em concreto, as vítimas de padres ou de leigos ao serviço da Igreja, é motivo de preocupação e de atenção às vítimas de tão condenáveis atitudes, bem como de criação de meios que permitam conhecer a realidade e prevenir a sua repetição. Em Portugal, foram criadas estruturas específicas para este fim, nas dioceses, com as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e de Adultos Vulneráveis; e, a nível do país, com a Equipa de Coordenação Nacional e o Grupo VITA. Esta rede tem dado passos significativos para “encontrar a forma mais correta [de] continuar a escutar qualquer pessoa que precise de falar sobre um abuso que sofreu, bem como na organização do necessário apoio psicológico e psiquiátrico adequado”. Além disso, centenas de pessoas estão a ser capacitadas para “saber[em] prevenir, sinalizar, alertar e denunciar eventuais novos casos de abuso em todo o país”. O trabalho prosseguirá, de forma regular e generalizada, para “acompanhar o pedido reiterado de perdão que comporta o reconhecimento do mal perpetrado e sofrido, a possível reparação das feridas e a prevenção, para que estes dramáticos sofrimentos não se repitam”.

Desde o início, se levantou a questão de “reparação” ou “compensação monetária”, a requerer pelas vítimas de abusos, como forma de “justo contributo na superação do mal que lhes foi injustamente causado”. Tem-se evitado ligar diretamente esta forma de agir com o conceito de “indemnização” ditada por um tribunal. O que se encontra em estudo, na CEP, é “uma reparação financeira que reconheça a dor de quem sobreviveu a estes abusos e às consequências que teve de suportar”, e que coopere para que “as pessoas possam ter uma vida mais livre, digna e devidamente reconhecida”. Foram pedidos vários pareceres a entidades competentes, do ponto de vista clínico, jurídico e canónico, e ouvidas muitas pessoas, entre as quais vítimas – parecer a ter em conta na busca de “um caminho de superação destas situações, demasiado dolorosas”.

O assunto será estudado na certeza de que “quem foi vítima de qualquer tipo de abuso tem sempre a nossa proximidade e solidariedade, assumindo mais esta forma de pedir desculpa e ajudar a recuperar a dignidade de vida”.

De acordo com o referido Comunicado, a Assembleia aprovou, de forma unânime, a atribuição de compensações financeiras, com caráter supletivo, a vítimas de abusos sexuais contra crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal. Para dar seguimento a este processo, definiu que os pedidos de compensação financeira deverão ser apresentados ao Grupo VITA ou às Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e de Adultos Vulneráveis, entre junho e dezembro de 2024. Posteriormente, uma comissão de avaliação determinará os montantes das compensações a atribuir. Foi, ainda, decidida a criação de um fundo da CEP para este fim e que contará com o contributo solidário de todas as Dioceses.

Estas decisões inserem-se no caminho percorrido na Igreja em Portugal. Em comunhão com o sofrimento das vítimas, os Bispos reafirmam o total compromisso de tudo fazerem para a sua reparação e manifestam o desejo de que o processo de acolhimento, de acompanhamento e de prevenção seja um contributo para a atuação da sociedade em geral neste tema.

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O tema “Sínodo e Sinodalidade” mereceu do presidente da CEP um comentário que, a seguir, se sintetiza. Frente a “sinais claros de uma radicalização social, política e até religiosa”, o processo sinodal, apesar de parecer não estar na ordem do dia, “está num processo de análise e [de] fermentação importante”. Esta reflexão ativa envolve as dioceses, as conferências episcopais, grupos de teólogos, canonistas, párocos (estes tiveram um encontro de representantes em Roma, no mês de abril), associações de fiéis e pessoas singulares, que darão o seu contributo para marcar a agenda da segunda parte da Assembleia Sinodal que terá lugar em Roma, de 2 a 27 de outubro deste ano. E, até 15 de maio, deverá a CEP pronunciar-se sobre a auscultação nacional quanto ao modo como nos podemos tornar uma Igreja sinodal em missão. Além disso, nas dioceses, o processo sinodal dos dois anos passados não foi em vão. Antes, o sonho de Igreja mais participada, onde todos possam ser corresponsáveis, de acordo com os seus ministérios e carismas e possam ser acolhidos, escutados e considerados, no respeito pela dignidade fundamental do batismo, é desejo ardente que contribuirá para maior comunhão e para um vigor renovado na missão.

Por sua vez, o Comunicado da CEP refere que o relatório da segunda fase do processo sinodal foi apreciado, tendo em conta os contributos enviados pelas dioceses e por outros grupos eclesiais, e que será remetido para a Secretaria Geral do Sínodo até 15 de maio e oportunamente divulgado.

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Sobre o Jubileu 2025, D. José Ornelas, considera que “os dias correm velozes em direção a 2025”, o ano do Jubileu celebrado sob o lema “Peregrinos de Esperança” e que, “neste Ano da Oração de preparação do Jubileu”, é de lembrar que “Deus não é inacessível” e que “cada um pode contactar com ele simplesmente, através da escuta da sua Palavra e da oração”, pois a oração representa “a respiração da fé, a sua expressão mais própria, uma espécie de grito silencioso que sai do coração de quem acredita e se entrega a Deus”. É essa “ligação pessoal e comunitária” com o Espírito de Jesus ressuscitado que guia e dá força transformadora à Igreja, para estar presente na transformação do Mundo, com os seus dramas e esperanças.

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Por fim, é de referir que a Assembleia aprovou a nota pastoral “Sem a Eucaristia não podemos viver”, por ocasião do 5.º Congresso Eucarístico Nacional (Braga, de 31 de maio a 2 de junho), com a presença do Cardeal José Tolentino de Mendonça como Enviado Especial do Papa. Toda a Igreja em Portugal está convocada para este acontecimento eclesial que pretende reconhecer, mais profundamente, o mistério da Eucaristia e prestar-lhe culto público nos laços da caridade evangelizadora. No Ano da Oração rumo ao Jubileu de 2025, “podemos consolidar a arte de bem celebrar, o silêncio, a escuta, o canto, a música, a adoração e o maravilhamento da Eucaristia na sua nobre simplicidade e beleza”.

Além disso, a CEP ultimou os detalhes da visita “ad Limina Apostolorum” dos Bispos portugueses a Roma (20 a 24 de maio), momento de especial importância, pela comunhão com o Santo Padre e com os organismos da Igreja universal. 

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Enfim, a CEP em grande atividade!

2024.05.05 – Louro de Carvalho

O amor ao próximo, como a salvação, é universal

 

Deus Pai é a fonte primeira do amor. Ama o Filho, comunica-Lhe o amor e envia-O ao nosso encontro; Jesus mostrou aos homens, em palavra e em gesto o amor do Pai; os discípulos de Jesus acompanharam-No, desde a Galileia até Jerusalém, foram testemunhas do seu amor até ao extremo e, transformados em Homens Novos pelo amor de Jesus, são os arautos do amor de Deus no Mundo. Está, ante os nossos olhos, a rede de amor que perpassa a História da Salvação.

primeira leitura (At 10,25-26.34-35.44-48) da Liturgia da Palavra do VI domingo da Páscoa, no Ano B, sustenta que a oferta da salvação de Deus por Jesus Cristo e levada ao Mundo pelos discípulos, tornados apóstolos ou missionários, se destina a todos os homens e mulheres, sem exceção. Para Deus, o decisivo não é a pertença a uma etnia ou a um grupo social, mas a disponibilidade para acolher o amor de Deus e para dar testemunho dele.

O trecho em referência integra uma secção do livro dos Atos dos Apóstolos (cf 9,32-11,18) cujo protagonista é Pedro e que refere a sua atividade missionária no litoral da costa palestiniana, entre Jope e Cesareia Marítima, onde Pedro, qual pregador itinerante, visita diversas comunidades cristãs. O episódio em causa situa-nos em Cesareia Marítima, cidade construída por Herodes, o Grande, no século I a. C., num lugar antigamente designado por “Torre de Estraton”. Era a sede do poder romano na Palestina, pois aí residiam os procuradores romanos da Judeia.

Figura central do episódio é Cornélio, centurião romano, “piedoso e temente a Deus”. Pedro estava em Jope, um pouco mais a sul, hospedado em casa de Simão, o curtidor. Convidado por Cornélio, vai Cesareia, à casa do centurião e, encontrando-o reunido com diversos familiares e amigos, anuncia-lhes Jesus. Esta atitude petrina gerou polémica na comunidade cristã primitiva, particularmente entre os cristãos de Jerusalém. Para os primeiros cristãos, oriundos do judaísmo, não era claro que os pagãos entrassem na comunidade cristã. O pagão era ser impuro, em casa de quem o bom judeu estava proibido de entrar, para não se contaminar.

Todavia, para Lucas, é evidente que Deus quer oferecer a salvação aos pagãos. Para deixar isso claro, põe Deus a dirigir a trama: é Deus que, numa visão, pede a Cornélio que mande chamar Pedro; e é Deus que arrebata Pedro em êxtase e lhe sugere que vá ao encontro de Cornélio, sem ficar contaminado pelo contacto com o pagão. A decisão de Pedro de apresentar Jesus a uma família pagã será, pouco depois, aprovada pela Igreja de Jerusalém.

O episódio tem especial importância para a expansão da Igreja. Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade de Jesus. A sua conversão marca uma viragem decisiva na proclamação do Evangelho que, a partir de agora, se abre aos pagãos.

Depois de descrever a receção de Pedro em casa de Cornélio, Lucas põe na boca de Pedro um discurso – de que o trecho em referência é um pequeno extrato – onde ecoa o kérigma primitivo (primeiro anúncio, que proclama as verdades fundamentais sobre Jesus). No discurso, Pedro anuncia Jesus, a sua atividade (“andou de lugar em lugar fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele”), a sua morte e ressurreição e a dimensão salvífica da sua ação. É o anúncio de que Jesus encarregou os primeiros discípulos de testemunharem a todo o Mundo.

O texto acentua o facto de a mensagem da salvação se destinar a todas as nações, sem distinção de pessoas, de raças ou de povos. Pedro reconhece que “Deus não faz aceção de pessoas; em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável”. Por isso, este anúncio tem chegar a todos os cantos da Terra, pois a salvação de Deus é para todos os homens e mulheres.

Depois do anúncio, acontece a efusão do Espírito “sobre quantos ouviam a Palavra”, sem distinção de judeus ou pagãos. O resultado do dom do Espírito é descrito com os elementos do relato do Pentecostes: todos “falavam línguas” e “glorificavam a Deus”. É a confirmação de que Deus oferece a salvação a todos os homens, sem distinguir raças, culturas ou nações. Pedro concluindo o que se impõe, batiza Cornélio e toda a sua família.

Os cristãos oriundos do Judaísmo e marcados pela sua mentalidade consideravam que a salvação era, sobretudo, um dom de Deus para os Judeus; os pagãos poderiam ter acesso à salvação, desde que se convertessem ao Judaísmo, aceitassem a Lei de Moisés e a circuncisão. Porém, o Espírito Santo, derramado sobre Cornélio e a sua família, mostra que a salvação não é património ou monopólio dos Judeus ou dos cristãos oriundos do Judaísmo, mas dom oferecido a todos os que têm o coração aberto a Deus.

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segunda leitura (1Jo 4,7-10) confirma que Deus é a origem do amor (“Deus é amor”) e que foi d’Ele que partiu a corrente de amor que nos atingiu, em Jesus e por Jesus. Transformados por esse amor, aproximamo-nos de Deus, conhecemos Deus e tornarmo-nos filhos de Deus.

A Primeira Carta de João é uma instrução destinada a Igrejas da Ásia Menor nascidas em contexto joânico. Combate as doutrinas heréticas de seitas pré-gnósticas que, pelo final do século I, lançavam a confusão nas comunidades cristãs; e define os princípios fundamentais da vida cristã autêntica. Neste contexto, uma das questões controversas e a que o hagiógrafo dá importância fundamental é a questão do amor ao próximo. Os pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé reside na vida de comunhão com Deus e negligenciavam as realidades do Mundo. Pensavam que se podia descobrir a luz e estar perto de Deus, odiando o próximo. Ora, amor ao próximo é exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele, se não se deixa contagiar e embeber pelo amor.

O trecho em apreço pertence à terceira parte da carta. Aí, o autor estabelece como critério da vida cristã autêntica a relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. É nessa dupla dimensão que os cristãos encontram a sua identidade.

Há um “dogma” fundamental que se impõe com irresistível força e que marca a existência cristã: a certeza de que “Deus é amor”. Assim, a caraterística mais marcante do ser de Deus é o amor e a atividade mais específica de Deus é amar. A prova de que Deus é amor é o facto de Ele ter enviado o seu único Filho ao encontro dos homens para lhes dar a Vida. Jesus Cristo, o Filho de Deus que incarnou na História humana, cumprindo o plano do Pai, mostrou, em gestos de cura e de cuidado, o amor de Deus pelos homens, sobretudo pelos mais pobres, pelos excluídos, pelos marginalizados. Lutou até à morte para libertar os homens da opressão, do egoísmo, do sofrimento; caminhou para a cruz e entregou a vida até à última gota de sangue; enfrentou o sepulcro e venceu a morte. Toda a sua vida garante o imenso amor de Deus para connosco.

Além disso, Deus não esperou que O amássemos para nos amar; amou-nos, quando estávamos longe d’Ele, amou-nos apesar do nosso pecado, das nossas escolhas erradas, da nossa indiferença, das nossas revoltas. Deus amou-nos quando não o merecíamos. O amor de Deus é incondicional, gratuito, desinteressado, que não exige nada em troca; é amor que purifica, reabilita e salva.

Os discípulos de Jesus conhecem bem o amor de Deus. Veem-no em Jesus, na sua vida, nas suas palavras, nos seus gestos, na sua morte. Batizados em Cristo, tornamo-nos filhos amados do Deus que ama sem medida. Agora, é a Vida de Deus que circula em nós. E, se Deus é amor, o amor circula em nós, enche-nos o coração e transparece nos gestos concretos de amor aos irmãos. Para os que nasceram de Deus, há uma forma de viver: amar os irmãos com o amor incondicional e gratuito que carateriza Deus. Caso contrário, não somos cristãos.

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No Evangelho (Jo 15,9-17) Jesus, em tempo de despedida, deixa aos discípulos o mandamento fundamental: “Amai-vos como Eu vos amei.”

O trecho em causa dá sequência ao do V domingo da Páscoa. Na alegoria da videira e dos ramos, os discípulos são instados a “permanecer em Jesus”; esse “permanecer em Jesus” concretiza-se agora no “permanecer no amor”: os discípulos devem manter-se unidos a Jesus pelo vínculo do amor. A relação do Pai com Jesus é o modelo da relação que Jesus quer manter com os discípulos. O Pai amou Jesus e demonstrou-Lhe sempre o seu amor; e Jesus correspondeu ao amor do Pai, cumprindo os seus mandamentos. Assim, Jesus amou os discípulos e mostrou-lhes sempre o seu amor; e os discípulos devem corresponder ao amor de Jesus, cumprindo os seus mandamentos.

Os mandamentos do Pai que Jesus cumpriu com total e fiel obediência configuram a observância do desígnio de salvação de Deus para os homens, que confiou a Jesus. Jesus, em obediência ao Pai, veio ao encontro dos homens e caminhou com eles; libertou-os da opressão da Lei e de tudo o que os tinha prisioneiros das trevas; livrou-os do sofrimento e da doença; salvou-os do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do comodismo; ensinou-os a escolher a justiça, a verdade, a liberdade; abriu-lhes os olhos para caminharem na luz; ensinou-os a viver no amor, a servir, a dar a vida para que todos tenham Vida. O Pai, fonte de amor, mandou o Filho salvar os homens de tudo o que lhes roubava a Vida; e o Filho, amando os homens até ao extremo, deu a vida para que os homens tivessem a Vida em abundância.

Da ação de Jesus nasceu o Homem Novo, livre do egoísmo, capaz de estabelecer novas relações com os outros homens e com Deus. Os discípulos, fruto da obra de Jesus, formam a comunidade de homens livres, que acolhem e assimilam a salvação que o Pai lhes ofereceu em Jesus. Nasceram do amor do Pai, amor presente na ação, nos gestos, nas palavras de Jesus.

Agora, os discípulos, nascidos da ação salvadora e libertadora de Jesus, estão vinculados a Jesus. Devem, pois, cumprir os mandamentos de Jesus, como Ele cumpriu os mandamentos do Pai.

Como Jesus, os discípulos devem ser testemunhas da salvação de Deus e levar a libertação aos irmãos. Devem amar, até ao dom total de si mesmos. Se o fizerem, estarão em relação com Jesus, relação que será fonte permanente de Vida verdadeira.

Assim, a indicação que Jesus deixa aos discípulos, o seu mandamento, é que vivam no amor (“é este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei”). Jesus amou totalmente, até ao dom da vida. Os discípulos devem viver como Jesus viveu: devem amar-se uns aos outros com o amor que é serviço, doação total, entrega radical. Do amor nasce a comunidade do Reino, a comunidade do Mundo novo, que testemunha, pelo amor, a salvação de Deus. Deus faz-Se presente no Mundo e age para libertar os homens pelo amor desinteressado, gratuito, total, que tem a marca de Jesus e que os discípulos devem testemunhar.

A comunidade de Jesus e dos discípulos é a comunidade dos amigos de Jesus. A relação que Jesus tem com os membros da comunidade não é relação de senhor e de servos, mas de amigos, pois o amor pôs Jesus e os discípulos no mesmo plano. Jesus continua a ser o centro do grupo, mas não se põe acima do grupo. Ele é e será sempre o companheiro dos discípulos. Une-os a lealdade e o afeto dos amigos, que cooperam todos numa tarefa comum. Têm a mesma missão (testemunhar, pelo amor, a salvação de Deus) e são responsáveis por que a missão se concretize. Não são servos a soldo de senhor, mas amigos que, voluntariamente e cheios de alegria e de entusiasmo, cooperam numa tarefa que lhes traz alegria infinita.

Entre esses amigos, há total comunicação e confiança (o servo não conhece os planos do senhor, mas o amigo partilha com o outro amigo os seus projetos. Aos amigos, Jesus comunicou-lhes o desígnio de salvação que o Pai tem para os seres humanos e a forma de realizar esse desígnio: o amor, entrega, o dom da vida. Jesus revela Deus aos amigos, não com teorias sobre Deus, mas mostrando, com a sua pessoa e atividade, que o Pai é amor e que trabalha em prol do homem.

Os discípulos são os eleitos de Jesus, os que Ele escolheu, chamou e enviou ao Mundo a dar fruto. Isso não quer dizer que Jesus chame uns e rejeite outros, mas que a iniciativa não é dos discípulos e que a sua aproximação à comunidade do Reino é uma resposta ao desafio que Jesus apresenta.

O objetivo desse chamamento é a missão (“escolhi-vos e destinei-vos para que vades e deis fruto”). Jesus não quer uma comunidade fechada, isolada, autorreferencial, mas uma comunidade que vá ao encontro do Mundo, que prossiga a sua obra, que testemunhe o amor, que leve a todos os homens a salvação de Deus. O resultado da ação dos discípulos será o nascimento do Homem Novo – isto é, de homens adultos, livres, responsáveis, animados pelo Espírito, que reproduzem os gestos de amor de Jesus no Mundo. Assim, concretizar-se-á o plano salvador de Deus. Esse fruto deve permanecer, isto é, deve tornar-se realidade efetivamente presente no Mundo, para transformar o Mundo e a vida dos homens. Quanto mais forte for a intensidade do vínculo que une os discípulos a Jesus, mais frutos nascerão da ação dos discípulos.

Os discípulos não estão sós. O amor do Pai e a união com Jesus sustentarão os discípulos que se empenham em realizar o projeto de salvar o Homem.

O texto termina com nova referência ao mandamento: “Amai-vos uns aos outros.” O amor partilhado é a condição para estar vinculado a Jesus e para dar fruto. Assim, Jesus está ao lado dos discípulos; e essa presença impulsiona a comunidade e sustenta-a na ação em prol do homem.

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Graças ao amor inefável e universal de Deus, há que responder ao apelo do salmista (Sl 98):

“Cantai ao Senhor um cântico novo pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação, revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira, exultai de alegria e cantai.”

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É a felicidade no seu melhor!

2024.05.05 – Louro de Carvalho

sábado, 4 de maio de 2024

Plano de Emergência para a Saúde e Plano de Verão

 

Foi já lavrado o despacho que nomeia os 13 especialistas de várias áreas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para construção de um Plano de Emergência para a Saúde. O prazo dado pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, durante a campanha eleitoral, foi de 60 dias, após a tomada de posse do governo. Como já passaram 30 dias (a posse foi a 2 de abril), a equipa, a cumprir-se o estabelecido na campanha eleitoral, teria o prazo 30 dias para o desempenho da missão de que está incumbida. Seria obra para um elenco governativo avesso a derrapagens.

No entanto, àquela tarefa da equipa, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins a da elaboração do Plano de Verão, que define a resposta que o SNS dará aos utentes nos meses mais complicados do ano, com menos recursos e com aumento significativo de população nalgumas zonas, como o Algarve. A decisão foi tomada depois de a governante, como alegou aos jornalistas, a 2 de maio, em visita ao Hospital Santo António, no Porto, ter ficado “surpreendida” com a inexistência de um plano de verão, quando já se devia estar a trabalhar no de inverno, bem como com o facto de a Direção-Executiva (DE-SNS) ter recusado fazê-lo.

Segundo noticiou o jornal Público, Ana Paula Martins solicitou à DE-SNS a apresentação de um plano para o verão, o que Fernando Araújo recusou, por “estar de saída” e por desconhecer “as políticas” a tutela quer levar para a frente. A atual DE-SNS  estará em funções até ao dia seguinte da apresentação do relatório sobre as mudanças no SNS, exigido pela ministra. A demissão foi apresentada em bloco, no final de abril.

Agora, a equipa de 13 elementos terá de pensar o futuro do SNS e da Saúde, em Portugal e, para este ano, o referido plano de verão. A tutela sustenta a escolha dos nomes, alegando que a implementação do plano de emergência só será possível, se se garantir a participação dos que, no quotidiano, intervêm no SNS, conhecendo “os seus problemas e desafios”. Quanto à missão, enfatiza que o grupo deverá “definir orientações que permitam melhorar o acesso, em tempo útil, aos cuidados de saúde, promovendo a devida articulação com as várias instituições do Ministério da Saúde e a respetiva implementação”.

Embora o grupo trabalhe na dependência da ministra, a coordenação dos trabalhos foi entregue a Eurico Castro Alves, cirurgião geral, presidente do Conselho Regional da Ordem dos Médicos do Norte, professor catedrático, diretor de Clínica e de Cirurgia da área Clínica Assistencial da Unidade Local de Saúde (ULS) de Santo António, no Porto.

O grupo inclui  Caldas Afonso, professor catedrático de Pediatria e diretor do Centro Materno-Infantil do Norte Albino Aroso (CMIN), bem como  António Marques, professor catedrático, assistente graduado sénior, com especialidade em Anestesiologia.

Na área médica, há outros nomes, como João Gouveia, médico intensivista, que coordenou a rede de Medicina Intensiva, durante a pandemia, e que é diretor do Serviço de Urgência Central da ULS de Santa Maria, em Lisboa, Lucindo do Couto Ormonde, diretor do Serviço de Anestesiologia e do Bloco Operatório da ULS de Santa Maria, Luís Campos Pinheiro, professor auxiliar na Nova Medical School, diretor do Centro de Responsabilidade Integrado de Urologia e responsável pela Área de Cirurgia da ULS de São José, Nuno Miguel Freitas, médico formado em  Coimbra com pós-graduação em Direito da Medicina e instrutor avançado de Simulação Médica pela Harvard Medical School e Paulo Jorge Carvalho, médico internista e professor convidado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.

Para a Gestão, foi escolhida Rosa Matos Zorrinho, administradora hospitalar, que ocupou, nos últimos anos, o cargo de presidente do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, agora ULS de São José; Catarina Baptista, administradora hospitalar, doutorada em Biologia Molecular pela Universidade de Lisboa, com especialização em Strategic Leadership on Innovation; e Cláudia Belo Ferreira, do Programa de Formação em Gestão Pública, Curso de Alta Direção em Gestão de Unidades de Saúde para Gestores.

A classe de enfermagem está representada por Maria do Rosário Rodrigues de Barros, especialista em Enfermagem Comunitária, a exercer os cargos de assessora da diretora do Serviço de Gestão de Recursos Humanos da ULS do Alto Minho e do  presidente do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Viana do Castelo; e pelo enfermeiro Ricardo Correia de Matos, especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, professor convidado na Escola Superior de Saúde Norte da Cruz Vermelha Portuguesa e tesoureiro nacional da Ordem dos Enfermeiros.

A tutela considera que o “estado atual da Saúde em Portugal é preocupante” e que, face a este diagnóstico (Que diagnóstico), o grupo terá de elaborar, em 30 dias, um plano que vise a melhoria do acesso aos cuidados de Saúde, para ser posto en prática até ao final de 2025. Mas, no imediato, a prova de fogo é a resposta que vai preparar para o verão, para não se repetirem cenários com serviços de urgências a fecharem portas, por falta de médicos que assegurem as escalas. 

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Segundo o jornal Público, Fernando Araújo terá estranhado o pedido, por não estar a par dos planos da tutela, mas o governo esperava que o plano estivesse adiantado e assegura que o verão decorrerá “com normalidade”.

Ana Paula Martins, no Porto, à margem de uma visita ao bloco operatório do Hospital de Santo António, onde conheceu um projeto que junta cirurgia robótica e inteligência artificial, declarou: “Temos uma ‘task force’ que, em despacho, está a ser nomeada e que já está, desde que tomamos posse, a trabalhar no Plano de Urgência e de Emergência que será apresentado, brevemente, pelo governo. Naturalmente que este denominado Plano Sazonal também será realizado com este mesmo grupo de líderes, que tem pessoas de várias profissões e, sobretudo, tem pessoas de várias zonas do país.”

Curioso: o grupo está a trabalhar antes de ser nomeado!

Confrontada pelos jornalistas com perguntas sobre que plano pedira à DE-SNS, a ministra não esclareceu totalmente as competências de cada uma das estruturas ligadas ao SNS e à área da saúde, mas disse que tinha expectativa que a DE-SNS garantisse a articulação de toda esta rede. “Os Planos Sazonais de saúde pública são da DGS [Direcção-Geral da Saúde], por causa das ondas de calor e das ondas de frio, e são sempre feitos pela DGS e assim continuará [...]. Mas sintetizando um longo decreto-lei [o dos estatutos da DE-SNS] com muitas competências e inúmeras atribuições, é muito claro que a articulação da malha, da rede das ULS que integram os centros hospitalares e os chamados centros de saúde, é competência do senhor diretor-executivo e da sua equipa, para garantir a articulação de toda esta rede”, referiu a governante.

E acrescentou: “Se temos situações de maior pressão, em determinadas alturas do ano, em determinadas regiões do país e em determinadas especialidades, como sabemos a obstetrícia, é isso que a DE-SNS faz, tem feito, e daí essa expectativa.”

Antes de seguir para o CMIN, estrutura que também faz parte da ULS Santo António, Ana Paula Martins, questionada sobre quem será o sucessor de Fernando Araújo, não respondeu. E, sobre a visita ao CMIN, que não estava formalmente programada, avançou que serviria para se reunir com “líderes a Norte e perceber [...] e [para] perceber a resposta a dar aos cidadãos”.

Antes, em informação aos jornalistas, referiu que a reunião iria juntar os responsáveis do Norte da área materno-infantil de forma a preparar o plano de verão. Efetivamente, no Santo António, ao longo da visita, foi acompanhada pelo presidente do conselho de administração da ULS de Santo António, Paulo Barbosa, pelo diretor do serviço de cirurgia deste hospital, Eurico Castro Alves, que é também presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, pelo diretor clínico, António Barros e pelo diretor do CMIN, Caldas Afonso.

A este propósito, foi revelado que estava programada uma visita à urgência de obstetrícia da ULS de São João, também no Porto.

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Também o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) julga “inacreditável não haver um plano para o verão e nem para o inverno”, porque “a Saúde não para no verão nem no inverno”. Considerando que “os utentes têm de continuar a ser tratados”, mas admitindo que, no verão, “costuma haver menos atividade programada”, sustenta que “tem de haver um plano para continuar a dar a resposta nesta área e também a nível das urgências”. Senão, reforça, “vamos chegar a junho ou a dezembro e vamos continuar a lamentar-nos que o SNS está sem capacidade de resposta para as situações graves que nos aparecem”.

O bastonário, dizendo ter ficado “francamente preocupado com a situação”, anunciou que, de imediato, enviaria à tutela “um documento que um grupo de especialistas de várias áreas – como Medicina Familiar, Medicina Interna, Medicina Intensiva, Pneumologia e outras – estava a preparar como apoio a um plano de inverno, que poderá servir como contributo para um plano de verão”. E esclareceu: Não temos um documento concreto para esta época do ano, porque nunca nos passou pela cabeça que não estivessem já definidas as linhas de resposta ao verão.”

O representante da classe médica reforça a necessidade de planos para as duas épocas, considerando que têm de ser elaborados antecipadamente. Por exemplo, “o plano para o inverno tem começar a ser preparado, assim que termina a fase mais complicada do inverno que estamos a viver”. Ambos os planos exigem “uma gestão rigorosa de recursos humanos, mais contratações e nós sabemos que estes processos são demasiado morosos”. No caso do verão, o plano deveria ter sido planeado no início do ano, quando são aprovadas as escalas. E o bastonário refere vários aspetos importantes: a saúde das pessoas, as descompensações provocadas pelas caraterísticas do tempo, a época em que há menos recursos, devido às férias anuais (neste período ocorrem também as férias escolares) e o facto de haver determinadas zonas do país para onde há mais mobilização, nesta altura, como o Algarve, Lisboa e Alentejo. Assim, como refere, “o Litoral tem que estar preparado para dar resposta ao aumento da população e não haver rutura dos serviços”.

Por fim, sublinhou: “Um plano de verão não se prepara no verão. Em Saúde, é preciso antecipar, programar e planear. As coisas têm de ser feitas com antecedência, para os serviços se poderem organizar, por exemplo, para as contratações que serão necessárias. E lamento que isto não tenha sido feito.” Aliás, reforça, “lamento que, para 2024, não tenha sido definido nenhum plano, nem de verão nem de inverno.”

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Não é crível que não haja, em Portugal, uma planificação anual da Saúde. O que há é, certamente, a discordância de pontos de vista tida como inultrapassável e a dificuldade em cumprir o quer que seja. Em muitos casos, o serviço público deixa de ser prioritário e imperam os interesses pessoais e as guerras do alecrim e da manjerona. E é desolador que a governante, com larga experiência na área, não distinga, claramente, se o plano de verão é da competência da DGS ou da DE-SNS. Ou melhor, como pode dizer que é competência da DGS, mas que a DE-SNS deve coordenar?

Penso que me assistia a razão, ao sustentar que as reformas na Saúde não implicavam a criação de nova entidade como a DE-SNS. Revitalizar as estruturas existentes, dando-lhes mais competências e recursos, seria o caminho. Porém, criada a DE-SNS, não se lhe pode exigir um largo relatório de autoavaliação em 60 dias (foi um convite à demissão) e pedir-lhe, já conhecida a sua situação de demissionária, um plano de verão ou de inverno. A DE-SNS podia fazê-lo? Talvez. Contudo, não se pedem missões a quem se retirou a confiança, nem há pessoas perfeitas.  

Quanto à OM, se tinha coisas tão boas na manga, porque não as apresentou?

A posse de novo governo não devia implicar mudança das administrações, pelo menos de imediato. Aí, também estas têm culpas no cartório: “Há eleições e para tudo, durante meses!”

Por fim, é de prever que as ULS serão financiadas para pagar a unidades convencionadas, o que mostra qual o rumo que o governo quer para o SNS.

2024.05.04 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 3 de maio de 2024

A governação económica na União Europeia

 

Com as eleições para o Parlamento Europeu (PE) no horizonte, sobressai a importância da governação económica da União Europeia (UE). Com efeito, não sendo a única vertente da governação da UE, que é uma entidade, fundamentalmente política, a economia é um pilar fundamental da União Económica e Monetária (UEM). Aliás, a UE foi precedida da criação da Comunidade Económica Europeia (CEE), que sucedeu à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), fundada a 18 de abril de 1951, que estabelecia a livre circulação de carvão, ferro e aço (matérias de alta importância económica, ao tempo) entre os países-membros e defendia políticas para a instalação de indústrias siderúrgicas.  

Antes da introdução do euro, a UE estabeleceu a arquitetura da união económica e monetária, pelo Tratado de Maastricht, em 1992, visando a governação económica da UE, bem como detetar e corrigir desequilíbrios económicos suscetíveis de enfraquecer as economias nacionais ou de afetar outros países da UE com repercussões transfronteiras. O quadro de governação económica refere-se a um sistema de instituições e de procedimentos que a UE criou para coordenar as políticas económicas dos estados-membros e para atingir os seus objetivos económicos. Compreendendo um sistema complexo de coordenação e supervisão, assenta nos princípios de acompanhamento, de prevenção e de correção das tendências económicas suscetíveis de enfraquecer as economias de cada estado-membro ou de se repercutirem noutras economias.

A coordenação e a supervisão eficazes oferecem três vantagens principais: assegurar a solidez e a sustentabilidade das finanças públicas, no médio e no longo prazo para todos os estados-membros; promover o crescimento económico sustentável e a convergência; e corrigir os desequilíbrios macroeconómicos, com o apoio de reformas e de investimentos que reforcem o crescimento e a resiliência. Em conjunto com a moeda única na área do euro e com a política monetária que lhe está associada, o quadro de governação económica da UE contribuiu para a estabilidade económica, para o crescimento e para o aumento do emprego. Desde o Tratado de Maastricht, este quadro tem evoluído gradualmente. Foram empreendidas reformas, em resposta a crises económicas, como a crise financeira mundial de 2008.

A recuperação após a pandemia de covid-19 e as consequências da guerra na Ucrânia lançam novos desafios à economia da UE, no contexto de níveis de endividamento e taxas de juro mais elevados e de novos objetivos, em investimentos e em reformas. O quadro atual revelou-se demasiado rígido em tempos difíceis, o que leva o cumprimento das regras pelos estados-membros a ser desigual. Por isso, a UE atualizou o quadro de governação económica para o preparar para o futuro. A 10 de fevereiro de 2024, os negociadores do Conselho e do PE chegaram a acordo político provisório sobre as novas regras, que está bem encaminhado, para entrar em vigor ainda na primavera de 2024. A reforma tem como principais objetivos: garantir finanças públicas sãs e sustentáveis; promover o crescimento através de reformas e investimentos. As novas regras visam contribuir para as prioridades da UE de construir um futuro digital, ecológico e mais resiliente, reforçando o apoio à competitividade e autonomia estratégica.

Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) fixa valores de referência para o défice orçamental e para os níveis da dívida pública: 3%, para a relação entre o défice orçamental programado ou verificado e o produto interno bruto (PIB) a preços de mercado; e 60 %, para a relação entre a dívida pública e o PIB a preços de mercado.

Por seu turno, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), que define as regras para o acompanhamento e para a coordenação das políticas orçamentais e económicas nacionais, contém regras preventivas e corretivas. O PEC aplica-se a todos os Estados-Membros da UE, mas só os países do euro estão sujeitos a sanções no âmbito da vertente corretiva.

Os regulamentos “pacote de seis” e “pacote de dois” reforçam a supervisão orçamental e introduzem o procedimento relativo aos desequilíbrios macroeconómicos, para assegurar a supervisão dos desequilíbrios que surjam fora do âmbito das políticas orçamentais.

Ao nível da prevenção, o PEC contém um quadro de governação orçamental, também conhecido por “vertente preventiva”, que visa assegurar a solidez das finanças públicas e uma balança de pagamentos sustentável, bem como evitar défices orçamentais excessivos. É no âmbito do exercício anual do Semestre Europeu que a UE e os estados-membros fazem grande parte da coordenação das políticas económicas e orçamentais, alinhando-as com as regras acordadas.

Todos os anos, cada estado-membro recebe do Conselho Europeu (Conselho) orientações sobre as suas políticas económicas, orçamentais, de emprego e estruturais, orientações inicialmente, propostas pela Comissão e, em seguida, analisadas e debatidas pelos peritos dos estados-membros e acordadas pelos ministros da Economia e das Finanças (Ecofin), antes de serem debatidas pelos chefes de Estado ou de governo da UE no Conselho e, por fim, formalmente adotadas por este.

A reforma acordada do regulamento da vertente preventiva permitirá abordagem adaptada a cada estado-membro, considerando que as situações orçamentais, os níveis da dívida pública e os desafios económicos são diferentes por toda a UE, assim como assegurará a redução global dos rácios e défices da dívida para níveis prudentes, de forma gradual, realista e favorável ao crescimento, bem como uma supervisão multilateral eficaz. A adoção formal das novas regras está prevista para a primavera de 2024. Uma vez adotados, os textos serão publicados no Jornal Oficial da União Europeia e entrarão em vigor no dia seguinte ao da publicação.

A Comissão enviará uma trajetória de referência baseada no risco e diferenciada, expressa em termos de despesas líquidas plurianuais, aos estados-membros que apresentem défice orçamental e dívida pública que excedam os valores de referência de 3 % e 60 % do PIB, respetivamente. Os estados-membros cumpridores podem solicitar à Comissão informações técnicas sobre o saldo primário estrutural necessário para assegurar que o seu défice nominal seja mantido abaixo de 3 % do PIB. A trajetória assegurará que, após um período de ajustamento orçamental, a dívida pública dos estados-membros apresente tendência descendente plausível ou permaneça em níveis prudentes inferiores a 60 % do PIB a médio prazo. Além disso, terá por objetivo assegurar que todos os défices orçamentais sejam reduzidos e mantidos abaixo de 3 % do PIB.

O período normal de ajustamento orçamental é de quatro anos. No entanto, os estados-membros podem solicitar um período mais longo de, no máximo, sete anos. Esta prorrogação será permitida se o estado-membro fizer reformas e investimentos que melhorem a resiliência e o potencial de crescimento, apoiem a sustentabilidade orçamental e contemplem as prioridades comuns da UE, como a transições ecológica e digital, a segurança energética ou o reforço da capacidade de defesa.

A trajetória de referência respeitará duas salvaguardas: a  relativa à sustentabilidade da dívida e a relativa à resiliência ao défice. A primeira assegurará que o rácio da dívida pública diminua segundo a média anual mínima de 1 % do PIB, desde que o rácio da dívida do estado-membro exceda 90 %, ou de 0,5 % do PIB, desde que o rácio da dívida se mantenha entre 60 % e 90 %. Esta salvaguarda não se aplica a países cujo rácio da dívida seja inferior a 60 %. O escopo é reduzir os rácios da dívida para níveis prudentes, de forma gradual e realista. Já a segunda salvaguarda proporciona a margem de segurança abaixo do valor de referência de 3 % do défice previsto no TFUE. O escopo é fazer orçamentos nacionais para o futuro, pela criação de reservas orçamentais.

No âmbito do novo quadro, cada estado-membro elaborará um plano orçamental estrutural de médio prazo, com a duração de quatro ou cinco anos, até 20 de setembro de 2024. Este plano incluirá os compromissos em matéria orçamental, de reformas e de investimento e contribuirá para assegurar a redução coerente e gradual da dívida e promover o crescimento sustentável e inclusivo. Com base na sua trajetória de referência ou em informações técnicas, os estados-membros incorporarão nos seus planos orçamentais estruturais nacionais de médio prazo a sua trajetória de ajustamento orçamental, expressa como trajetória das despesas líquidas.

Estes planos e as trajetórias das despesas líquidas têm de ser aprovados pelo Conselho, na sequência de avaliação pela Comissão. Se um estado-membro solicitar prorrogação do período de ajustamento, os compromissos em matéria de reformas e investimentos subjacentes à prorrogação têm também de ser aprovados pelo Conselho. E, se o plano orçamental estrutural nacional de médio prazo do estado-membro não cumprir os requisitos, o Conselho recomendar-lhe-á que apresente um plano revisto. E a Comissão utilizará uma conta de controlo para acompanhar os desvios cumulativos, ascendentes e descendentes, dos estados-membros em relação às respetivas trajetórias de despesas líquidas acordadas.

Para simplificar o quadro orçamental da UE e para aumentar a transparência, um indicador operacional único baseado na sustentabilidade da dívida servirá de base para definir a trajetória das despesas líquidas e fazer a supervisão orçamental anual para cada estado-membro: o indicador de despesas líquidas, que terá por base as despesas primárias líquidas financiadas a nível nacional, ou seja, as despesas excluindo as medidas discricionárias do lado das receitas, as despesas com juros, as despesas cíclicas com o desemprego, as despesas nacionais com o cofinanciamento de programas financiados pela UE e as despesas com programas da UE inteiramente cobertas por receitas provenientes de fundos da UE. O indicador de despesas líquidas permitirá a estabilização macroeconómica, pois não será afetado por estabilizadores automáticos, incluindo flutuações das receitas e das despesas fora do controlo direto do governo.

O novo quadro prevê a introdução de um relatório anual sobre os progressos realizados, no qual cada estado-membro fornecerá informações sobre a execução do seu plano orçamental estrutural nacional de médio prazo, incluindo a trajetória das despesas líquidas, e sobre os progressos em matéria de reformas e investimentos. As regras preveem a possibilidade de ativar a cláusula de derrogação de âmbito geral, suspendendo as regras para todos os estados-membros em caso de recessão económica grave na área do euro ou no seu conjunto da UE, desde que tal não comprometa a sustentabilidade orçamental a médio prazo. O período máximo de ativação da cláusula é de um ano, com a possibilidade de prorrogação.

Ao abrigo das novas regras, o Conselho pode ativar a cláusula de derrogação nacional, se tal for solicitado por um estado-membro e recomendado pela Comissão. A cláusula suspenderá as regras só para o estado-membro em causa, se houver circunstâncias excecionais fora do controlo desse estado-membro que tenham impacto significativo nas suas finanças públicas. A cláusula só será ativada, se tal não comprometer a sustentabilidade orçamental a médio prazo, sendo o tempo limite para a sua ativação especificado pelo Conselho.

Em conformidade com o TFUE (artigo 126.º, n.º 1), os estados-membros têm de evitar um défice orçamental e uma dívida pública excessivos. Ou seja, não poderão exceder os valores de referência de 3 % do rácio do défice e de 60 % do rácio da dívida. As regras de execução neste domínio são estabelecidas na vertente corretiva do PEC e devem ser reforçadas no âmbito do novo quadro de governação económica.

O objetivo do procedimento por défice excessivo, de assegurar a disciplina orçamental, visa evitar défices orçamentais excessivos e incentivar a sua rápida correção, se ocorrerem; e reduzir, gradualmente a dívida de forma sustentável, até que a dívida seja reduzida para um nível inferior ao valor de referência de 60 % do PIB previsto no TFUE.

procedimento por défice excessivo, com base no critério do défice, exige ajustamento estrutural anual mínimo de 0,5 % do PIB. O incumprimento pode resultar em multas até 0,05 % do PIB, a pagar pelo estado-membro em causa, de seis em seis meses, até que o Conselho confirme que foram tomadas medidas eficazes. A Comissão considerará a possibilidade de iniciar procedimento por défice excessivo, com base no critério do défice, se o rácio entre o défice orçamental e o PIB exceder o valor de referência de 3 %. O procedimento por défice excessivo, com base no critério da dívida, centrar-se-á em desvios em relação à trajetória das despesas líquidas, considerando-se que a relação entre a dívida pública e o PIB está a diminuir suficientemente e a aproximar-se do valor de referência a um ritmo satisfatório, se o estado-membro em causa respeitar a sua trajetória das despesas líquidas. A Comissão considerará a possibilidade de iniciar o procedimento por défice excessivo, com base no critério da dívida, se os desvios registados na conta de controlo do estado-membro excederem 0,3 % do PIB, anualmente, ou 0,6 % do PIB, cumulativamente.

Ao avaliar o cumprimento do critério do défice e/ou da dívida por parte de um Estado-Membro, o Conselho e a Comissão avaliarão vários fatores pertinentes, entre os quais: a gravidade do desvio, os progressos na execução de reformas e investimentos, a gravidade da situação da dívida pública e o aumento das despesas com a defesa (se aplicável). A Comissão avaliará regularmente se o governo em causa tomou medidas eficazes e formulará a recomendação ao Conselho, a quem caberá decidir se pode por termo às sanções, ou se estas devem continuar e/ou ser intensificadas.

O Conselho deverá adotar o regulamento de alteração à vertente corretiva na primavera de 2024.

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A seguir às eleições de junho, inicia-se um novo mandato europeu de cinco anos, que se espera próspero e capaz de responder a todos os desafios que a UE enfrenta, dentro de si e perante o Mudo que a envolve.

2024.05.03 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Saneamento político a coberto de estatutos

A 12 de abril, Ana Jorge, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), teve uma reunião com a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, que lhe terá passado uma mensagem de confiança para se manter como provedora. Duas semanas depois, o governo, com base nos Estatutos Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, invocou os motivos previstos na lei para destituir a provedora e, consequentemente, toda a mesa.
Ana Jorge saíra do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), sem que o cenário de demissão transparecesse. Segundo fonte próxima da provedora, na conversa com a governante, esta, ter-lhe-á “por duas vezes”, transmitiu-lhe “confiança” para o mandato na SCML. Não obstante, a ministra terá insistido na necessidade de um plano de reestruturação urgente, dado o atual estado financeiro da Santa Casa, mas sem ter feito depender da apresentação de tal documento a manutenção de Ana Jorge no cargo.
O certo é que, a 29 abril, após ter sido contactada pelo gabinete da ministra, a provedora soube que iria cessar funções, por determinação governamental. Pelo Despacho n.º 4702-B/2024, de 29 de abril (publicado no dia 30), do primeiro-ministro (PM) e da ministra da tutela, recorrendo aos Estatutos, invocou os motivos legais necessários para a destituição da provedora e da restante mesa: a “não prestação de informações essenciais ao exercício da tutela” e “atuações culposas ou gravemente negligentes que afetem a gestão ou o bom nome da SCML” (ver n.º 5 do artigo 11.º dos Estatutos). Portanto, ambos os governantes aduziram, como motivos para a demissão, Parte superior do formulárioParte inferior do formulário“a não prestação de informações essenciais ao exercício da tutela, nomeadamente, a falta de informação à tutela sobre o relatório e contas de 2023, mesmo que em versão provisória, e sobre a execução orçamental do primeiro trimestre de 2024, bem como a ausência de resposta de todos os pedidos de informação até agora solicitados” – “atuações gravemente negligentes que afetam a gestão da SCML, nomeadamente a ausência de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital, desde que tomou posse até agora”.
Em relação às contas, fonte da SCML adiantou que os documentos seguiram, no próprio dia 29, para o MTSS. Só não foram remetidas mais cedo, porque estar em curso a auditoria do Tribunal de Contas (TdC) aos exercícios de 2021 e 2022, que têm impacto nas contas de 2023, e foi autorizado pelo anterior governo, com a concordância do TdC, a apresentação do documento relativo a 2023 até 30 de abril. Certamente, a ministra terá o despacho da antecessora, que validou o procedimento.
Entretanto, a 30 de abril, Ana Jorge enviou uma comunicação aos trabalhadores da SCML, cujo teor indicia surpresa com a decisão do governo. “O comunicado emitido pelo Ministério do Trabalho é, pela forma rude, sobranceira e caluniosa com que justifica a minha exoneração, motivo para me sentir desiludida”, referiu a provedora, clamando: “Sempre achei e hoje mais do que nunca, que em política, tal como na vida, não vale tudo.”
Ana Jorge, tal como a ministra, deverá ser chamada ao Parlamento, adiantou que, “a seu tempo e em sede própria, contarei a minha verdade”, a qual pode incidir na gestão do caso da “Santa Casa Global”, empresa criada para a internacionalização do jogo. É que nem a auditoria da BDO a todo o processo conseguiu aceder às contas das empresas compradas e criadas no Brasil, que foram financiadas através de garantias bancárias subscritas pela SCML. Tais dados são essenciais para se perceber o que aconteceu ao dinheiro, pelo que a Santa Casa já se constituiu como assistente no processo judicial que investiga suspeitas de crimes nestes negócios.
Apesar de o PM ter negado qualquer ato de “saneamento político”, a oposição já anunciou pretender ouvir, no Parlamento, todos os envolvidos. Aliás, ainda antes da destituição formal, a Iniciativa Liberal (IL) pediu a audição de todos os responsáveis pela internacionalização do jogo, o qual provocou um buraco nas contas que poderá ultrapassar os 50 milhões de euros. Na primeira reunião da Comissão de Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, o Partido Socialista (PS) invocou a figura do “adiamento potestativo” para a comissão não votar o requerimento.
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Na carta enviada aos trabalhadores da SCML, a antiga ministra da Saúde, do governo de José Sócrates (labéu de que não se liberta, na área dos vencedores das eleições), apesar da “surpresa” da decisão da exoneração, salienta que “foi uma honra” servir a SCML.
A ex-provedora assume que “foram 11 meses muito duros” e defendeu a atuação da sua equipa, que trabalhou “rumo à sustentabilidade financeira, à motivação dos colaboradores” e em prol do compromisso social assumido com “milhares de pessoas”. “É por isso – pelo tanto trabalho, desenvolvido em tão pouco tempo e pelo plano de reestruturação sólido que desenhámos e que queríamos implementar – que hoje não me sinto tão triste. Por isto, só por isto”, escreveu.
Ana Jorge tomou posse a 2 de maio de 2023, por escolha do anterior governo, em virtude de a SCML atravessar graves dificuldades financeiras, depois dos anos de pandemia e de um processo polémico de internacionalização dos jogos sociais, levado a cabo pela administração do provedor Edmundo Martinho, que pode ter custado à instituição 50 milhões de euros.
Na hora da saída, Ana Jorge Parte superior do formulárioParte inferior do formulárionão foi meiga nas palavras, respondendo a quem a afastou do cargo: “O comunicado emitido pelo Ministério do Trabalho é, pela forma rude, sobranceira e caluniosa com que justifica a minha exoneração, motivo para me sentir desiludida.”
O governo, entre as razões que invoca para a destituição, inclui “a ausência de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital desde que tomou posse até agora”. E a provedora vinca a vigência do “plano de reestruturação sólido que desenhámos e que queríamos implementar”.
Constou que Maria do Rosário Palma Ramalho dera um prazo de 15 dias à provedora para apresentar um plano de reestruturação, tendo esta alegado que, em tão pouco tempo, seria difícil dar execução a esse desiderato. Foi noticiado e deduz-se do despacho que a cessação de funções tem efeitos imediatos, mas o ministro da Presidência, remete-a para a data da posse da nova mesa.
É caso para dizer: “Organizem-se!”
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O ministro da Presidência rejeitou as acusações de saneamento político na exoneração da direção da SCML e defendeu que os Portugueses “não perdoariam” uma inação do governo face à degradação da instituição
Em declarações prestadas no ‘briefing’ após o Conselho de Ministros de 2 de maio, António Leitão Amaro reiterou o papel da SCML, enquanto “instituição importantíssima” na resposta social, e criticou a falta de soluções da administração, que ficará em funções correntes até ser nomeada uma nova equipa. “O que os portugueses não perdoariam era que o governo assistisse, em inação, a um agravar contínuo da situação financeira, da capacidade para atender aos que mais precisam, ao cumprimento da missão social” e [fosse tolerante e aceitasse] essa inação, essa passividade, que não se manifestou em 15 dias ou três semanas”, disse.
Leitão Amaro lembrou Parte superior do formulárioParte inferior do formulárioque a direção, agora exonerada, estava em funções há cerca de um ano, sem que fosse conhecido um “plano de reestruturação” (o que não condiz com a carta da provedora) ou medidas decisivas para inverter a situação de degradação financeira na SCML. “Não fizeram o que precisavam de fazer, não tiveram a diligência que era exigível. Portanto, os Portugueses certamente compreendem que estamos a cumprir o nosso papel quando substituímos quem não faz o que deveria fazer”, reforçou, continuando: “A Santa Casa é muito útil para os Portugueses. Precisava – e precisa – de um novo ímpeto que a direção anterior não garantia”.
O ministro acrescentou que a intenção do governo passa por “trazer capacidade de resposta e sustentabilidade financeira” à SCML, mas apontou falta de cooperação da direção de Ana Jorge e a importância de haver alinhamento com “as estratégias políticas e os programas do governo”.
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É usual a mudança de governo implicar alterações nas direções e chefias de serviços dependentes, direta ou indiretamente, do governo. Não obstante, a exoneração da mesa da SCML foi demasiado intempestiva. E o governo não precisava de aduzir incompetência da parte da provedora (o que tem sido contraditado pela experiência) e da mesa, nem de alegar que não há um plano de restruturação, que existe. Quanto às contas e à debilidade de gestão, o TdC e eventualmente, os tribunais ordinários farão o juízo correto.
O governo, querendo que a SCML seguisse outro rumo, não tinha de invocar falhas estatutárias (o que pode ser contestado em tribunal). Bastava, no despacho, ter invocado a necessidade de alinhamento com “as estratégias políticas e [com] os programas do governo”. Assim, não se falaria de saneamento político, mas da mudança política habitual, ainda que intempestiva e de duvidosa legitimidade, visto a maioria relativa que suporta o governo ser extremamente frágil. Estas mudanças não eram sistemáticas antes das maiorias absolutas do tempo de Cavaco Silva.
Este caso faz-me lembrar a anedota de um suposto episódio protagonizado Oliveira Salazar. Havendo necessidade de preencher duas vagas num cargo público, foi aberto concurso a que se candidataram três jovens: dois brancos e um negro. Presidiu ao júri de seleção o próprio chefe do governo, que explicou que, nos termos constitucionais, todos são iguais perante a lei, pelo que todos os cidadãos têm acesso aos cargos públicos, sendo privilegiado o mérito (o regime entre os cidadãos, contava os “semiassimilados”, que não tinham os mesmo direitos dos de primeira classe). Assim, perguntou ao primeiro candidato qual a primeira cidade atingida pela bomba atómica, ao que ele respondeu, prontamente: “Hiroshima!” Ao segundo perguntou qual a segunda cidade atingida pela bomba atómica, ao que ele respondeu, prontamente: “Nagasáqui!” E ao terceiro (o negro) perguntou por nomes, moradas e idades das vítimas das duas bombas atómicas. E ele não soube responder, pois não tinha estudado.
Eram todos iguais, mas o mérito levou à admissão dos dois primeiros e à exclusão do terceiro.
Também, agora, não houve saneamento político, mas houve destituição com base em inépcias que os atingidos podem considerar calúnias. “E não havia necessidade!” Foi atirar lama para cima da administração exonerada e poeira para os olhos dos Portugueses.
Algo parecido ocorreu com a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). A ministra da Saúde, por despacho, deu um prazo de 60 dias a Fernando Araújo para apresentar um relatório sobre as reformas efetuadas e uma avaliação pormenorizada da organização, da funcionamento e das perspetivas futuras da DE-SNS. Porém, Araújo adiantou-se e apresentou o pedido de demissão, embora garantindo a apresentação do relatório no prazo estabelecido.
Num caso e no outro, o programa do governo apontava para a descontinuidade. No caso da DE-SNS, não houve saneamento, porque esta se adiantou. Caso contrário, haveria.
Resta saber o que virá por aí.
E as reformas e as reestruturações são interrompidas por quem as devia deixar prosseguir, até que pudesse ser feita uma avaliação serena das mesmas. A pressa é inimiga do acerto!

2024.05.02 – Louro de Carvalho