quinta-feira, 2 de maio de 2024

Considerandos sobre família e identidade

 

As transformações socioeconómicas impactam as estruturas familiares e influem na subjetividade da vida e na constituição das famílias, atingindo-lhes as relações sociais, comunitárias, políticas e económicas. Tais mudanças, acentuadas desde a segunda metade do século XIX, e, depois, com o avanço capitalista, redesenham o cenário social, quanto à organização e à reprodução da vida familiar. Os estudiosos sustentam que a família, na sociedade capitalista, se perspetiva de modo a garantir a inserção no mercado de trabalho e o acesso aos bens materiais e simbólicos, como elemento central na vida dos indivíduos.

O impacto das transformações na família tem a centralidade na reprodução da vida nos âmbitos material, social e emocional. A sua inserção social e a articulação das mais diversas formas de superação de situações do quotidiano têm redefinido as relações familiares, que se movem pela busca e pela obtenção do provimento das necessidades básicas (materiais, afetivas, relacionais e de pertença). Tais mudanças provocaram diferentes formas de vida em família, pela diversidade e pelas alterações do modelo e da organização familiar.

 O século XX foi marcado por duas grandes guerras, por conflitos, pela revolução global, por avanços científicos e tecnológicos e por transformações societárias decorrentes dos movimentos políticos, ideológicos, religiosos, culturais e económicos, indutores de mudanças sociais profundas e irredutíveis. Na organização da família, observamos, há séculos, alterações ocorridas na sua constituição, de acordo com a época e com os seus valores e princípios. Porém, a partir da segunda metade do século XIX, pelo avanço do capitalismo, pela instituição da família burguesa (pai, mãe, filhos e morada independente da família de origem), pela interferência da Igreja católica (e outras) e da escola (ambas com forte presença na construção de valores familiares como instâncias normatizadoras da vida em sociedade), delinearam-se as grandes mudanças.

As décadas de 60 e 70 do século XX operaram a mudança de cenário da família, em virtude do rompimento de valores, antes tidos como inalteráveis. E os jovens lançaram-se à rutura de formas tradicionais de viver em família, pela liberalização sexual, pelas uniões consensuais, pela roupa, pela música e pelo comportamento padronizado, indiciando era de mudanças e de resistência a padrões, a atitudes e a comportamentos tradicionais. Daí, maior liberalização sexual, tanto para heterossexuais como para homossexuais. As mulheres ganham maior liberdade, quando, na Itália, é legalizada a venda de anticoncetivos e a informação sobre o controlo da natalidade, em 1971, o divórcio, no mesmo período, e o aborto, em 1978. Cresceu o número de casais a coabitar antes do casamento. A leis permissivas facilitavam os atos proibidos e deram visibilidade a essas questões, embora as leis mais reconhecessem do que gerassem o novo clima de relaxamento sexual. Porém, instituíam uma moral consuetudinária.

Estas transformações influíram imenso no campo da cultura popular, especialmente entre os jovens. Expandiram-se as ideias e as atitudes feministas, que também reivindicavam igualdade, direito à liberdade sexual, rompimento da relação casamento-sexo-reprodução, fim da autoridade do homem na família, igualdade de direitos políticos e civis e mudanças na legislação civil e laboral. E, desde a década de 60, à escala mundial, a difusão dos anticoncetivos separou a sexualidade da reprodução e interferiu na sexualidade feminina, criando as condições para a mulher não ter a vida e a sexualidade atadas à maternidade, recriando o mundo subjetivo feminino e ampliando a ação da mulher na sociedade.

Pílula e trabalho remunerado da mulher abalaram os alicerces familiares e encetaram o processo de mudança substantiva na família, que seria ainda mais estimulada pela crise financeira, na época de expansão do capitalismo reformado e domesticado, salvo de si mesmo, que redundava num círculo virtuoso retroalimentado pelos valores ascendentes das variáveis socioeconómicas. Tudo subia: produtividade, lucro, salários, padrão de vida, segurança, estabilidade, harmonia social, prosperidade geral. Porém, o que parecia futuro brilhante e de bem-estar mudou, a partir dos anos 70, com a passagem do capitalismo monopolista à flexibilização do capital e ao retorno ao liberalismo económico, incrementado pela globalização da economia, pela expansão de empresas que, a partir da base nacional, implantam filiais no exterior, obedecendo a estratégias competitivas em escala mundial, com o peso da ciência na economia e com os avanços da tecnologia.

Passou a haver forças produtivas de crucial importância, além das macroestruturas financeiras: configuração mista, público-privada, constituída pela monumental massa de recursos concentrada em bancos centrais, grandes bancos internacionais, fundos de investimento, companhias de seguro, corporações multinacionais, fundos de pensão e proprietários de grandes fortunas.

As implicações do processo de globalização da economia, aliadas à aguda crise do mercado do trabalho, nos anos 80, criaram e acumularam expressões da desigualdade social que induziram as mulheres a ingressar no mercado de trabalho, a contribuir para o rendimento familiar e a buscar, no futuro, a elevação do nível educacional, pela necessidade de capacitação para o trabalho qualificado. Por conseguinte, assistiu-se a transformações na organização e na constituição familiar. Os modelos vividos na sociedade e tidos como corretos e ideais, para todas as pessoas, de família tradicional, organizada de forma heterossexual, patriarcal, monogâmica e nuclear, foram cedendo a outras formas de constituir família: monoparentais chefiadas por homens ou por mulheres; ampliadas ou extensas; reconstituídas; organizadas sem vínculo consanguíneo; pessoas que moram sozinhas; famílias paralelas; e famílias constituídas por casais de sexo idêntico.

Tais mudanças fragilizam o suporte da ideologia que associa a família à ideia de Natureza, evidenciando que os factos que envolvem a família, mais do que respostas biológicas necessárias aos seres humanos, são respostas dos movimentos sociais e culturais trazidos, pelas pessoas, do contexto histórico das suas vidas. Essas interferências, inclusive as recentes, como as intervenções tecnológicas, são grandes contribuintes para a rutura da ideia de naturalidade da família (embora inegável). Os avanços tecnológicos, voltados para a reprodução assistida ou para a anticonceção, induzem processos de mudança, viabilizando escolhas, para evitar ou provocar a gravidez, o que não seria considerado meio natural, mas que não lesa totalmente a ideia de Natureza atribuída à família, como condição biológica do ser humano, idealização muito presente no imaginário social.

A família continua a ser a mediação entre o indivíduo e a sociedade; e a valorização do grupo explica-se pelos vínculos afetivos, e não só pela constituição e organização. A escolha da família justifica-se pela sua principal caraterística, o afeto, que é a principal força que explica a sua permanência na História da Humanidade. As diferentes organizações familiares constituem-se, privilegiando os vínculos afetivos, bem como os acordos e os interesses do grupo familiar.

Outro apontamento que remete para a identidade de família está aliado à hierarquia e aos valores, pois a família nuclear tradicional define claramente os papéis dos seus membros, os quais, se alterados, geram estranheza. As identidades, essencialmente dinâmicas, criam-se e recriam-se, no fértil terreno das diferenças, das alteridades, das diversidades, num verdadeiro jogo dialético, onde pulsam identidades construídas e atribuídas. A sociabilidade é uma exigência natural.

Podemos, assim, pensar que a identidade familiar surge como processo socialmente construído. Vem composta pelo conjunto de identidades indivíduas e que, ao reunirem-se, compõem a identidade familiar, podendo constituir-se a partir da análise sócio-histórica, carregada de subjetividade e de potencialidade, num movimento incessante em que os membros da família se constroem mutuamente. Assim, a identidade familiar também poderá formar-se a partir da organização de grupos dispostos diferentemente, como pais solteiros, mães solteiras, casais recasados, casais do mesmo sexo e outras formas, sempre na combinatória de igualdade e de diferença, em relação a si mesmo e aos outros, conjugando o afeto e a capacidade de servir.

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Vem este arrazoado epistémico a propósito do lançamento do livro “Identidade e Família – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade” (Oficina do Livro), cuja validade não discuto, até porque tem contributos de mais de uma vintena de pessoas, algumas das quais (não todas, obviamente) de crédito reconhecido. O livro, todavia, caiu mal, pela inoportunidade temporal num país político ainda no rescaldo de eleições legislativas que, realmente, não satisfizeram as forças partidárias a que estávamos habituados. Por outro lado, vieram à ribalta as ideias mais conservadoras defendidas por alguns dos colaboradores.

Porém, o que chocou mais a opinião pública foi o facto de a apresentação ter sido confiada ao antigo primeiro-ministro do tempo da troika, pela memória que perdura, sobretudo nos que mais sofreram as agruras da austeridade. E reemergiram as ideias mais retrógradas de xenofobia, de racismo, de anti-imigração e de cristalização da direita radical política, económica e social.

A defesa da família nuclear monogâmica, constituída por homem e mulher com estabilidade e a durabilidade até à morte, onde possam nascer e crescer os filhos, é sustentavelmente defendida pela Igreja católica e por confissões religiosas afins, tal como a defesa da vida humana, desde a conceção até à morte natural. Ninguém esperaria que a Igreja católica, tal como outras religiões, defendesse o contrário, aliás porque têm esse direito, numa sociedade livre e pluralista, e sentem esse dever. Todavia, a nível religioso, é de anotar que, embora Jesus Cristo instasse a um estilo de vida exigente e sem reservas, (com base na profundeza da doutrina que era do Pai) vendo o homem (e a família) como criado à imagem e semelhança de Deus (uno e plural, identidade e comunhão), era extremamente acolhedor das pessoas, cujo pecado as tornava marginalizadas pela sociedade puritana (leprosos, cegos, prostitutas, adúlteras, publicanos, etc.), propondo uma sociedade verdadeiramente colhedora e inclusiva. No seu encalço, emerge a doutrina moral do Padre Bernard Häring e, agora, em modo exponencial, o Papa Francisco.

Por outro lado, no quadro da autonomia do poder político terrestre, é de exigir aos decisores que a todos considerem iguais perante a lei, sem quaisquer constrangimentos à liberdade e aos diversos estilos de vida, desde que não ultrapassem as linhas vermelhas do crime (não inventado).

Aliás, se formos sérios no olhar histórico, devemos atentar que a proibição do adultério atingia quase exclusivamente a mulher, por ofender o marido, do qual era propriedade. O libelo de divórcio, antes da vinda de Cristo, que exigiu o regresso à “pureza original”, era prerrogativa exclusiva do homem, que podia descartar a esposa, quando lhe conviesse. O onanismo, condenado na Bíblia (pecado que atormentava adolescentes) era condenado, porque Onã o praticou para não dar descendência ao irmão Er (que falecera), incumprindo a lei do levirato.  

Entretanto, o purismo social e religioso alimentou, durante séculos, o bastardismo de poderosos e chutou o de pobres. Os casais régios coabitavam para obterem a descendência legítima, mas os reis e outros maridos tinham diversões extraconjugais. Pais (e patrões) ditavam com quem as filhas casavam. E muitas mulheres, com separação vetada, viveram autêntico inferno conjugal.              

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A discussão do tema evidencia a emergência de novos sujeitos a disputar lugares, a reivindicar direitos e a realimentar costumes, tradições, modos de vida e de trabalho, trazendo um novo momento para a construção da identidade familiar, seja ela da forma que for constituída.

Sem desconsiderar a família como instituição natural, ela, social e historicamente, pôde assumir configurações diversificadas nas sociedades e no interior de uma mesma sociedade, conforme as classes e grupos sociais heterogéneos. Assim, a inserção social faz-se pelas relações conquistadas, e preconizadas socialmente, sustentadas em amparos legais, agora necessários, tornando mais concretas as condições de viver em família, garantindo-lhe, na sociedade, identidade e espaço próprios. Por isso, as religiões, enquanto propõem os seus ideais, têm de estar atentas às novas realidades. E os decisores políticos e os agentes económicos, sociais e culturais devem formar profissionais capazes de identificar a importância da visibilidade e do reconhecimento da identidade de família na sua amplitude e as demandas postas e as que estarão por vir. A discussão põe em alerta as várias formas de viver a vida da população a que é preciso atender.

2024.05.02 – Louro de Carvalho

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