Decorreu, em Lisboa, na sede da Agência Europeia para a Segurança Marítima,
entre os dias 14 e 16 de maio, o primeiro Fórum Global promovido pelo KAICIID –
Centro Internacional de Diálogo, sob o mote “O Diálogo como força
transformadora: Construir Alianças para a Paz num mundo em rápida mudança”, que
fez sentarem-se à mesa, em prol da construção de alianças para a paz, líderes
políticos e religiosos mundiais, organizações internacionais e sociedade civil.
O Centro
Internacional Rei Abdullah Bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e
Intercultural (KAICIID) é uma organização intergovernamental que visa promover
o diálogo entre religiões e culturas, encorajar o respeito pela diversidade e
construir alianças para a paz entre nações e povos, bem como combater o uso
indevido da religião como justificação para a violência e a perseguição. É
liderado pelo Conselho das Partes constituído por representantes dos
Estados-membros fundadores – Arábia Saudita, Áustria, Espanha e a Santa Sé
(como fundador observador) – e pelo conselho diretivo composto por
representantes de várias religiões (incluindo Cristianismo, Budismo, Hinduísmo,
Islão, Judaísmo, Jainismo e Sikhismo). Fundado em 2012 e sediado em Lisboa
desde 2022, o KAICIID tem longa experiência na promoção da reconciliação,
colmatando divisões e melhorando a compreensão mútua entre grupos étnicos,
culturais, sociais, etários, religiosos e religiosos.
Num momento
assaz difícil, em que a Humanidade enfrenta enormes desafios – com guerras,
conflitos e profundas clivagens sociais a abrirem espaço para o medo, a
desconfiança e os discursos de ódio e de intolerância – este Fórum Global ganha
mais sentido, focando-se no poder do diálogo intercultural e inter-religioso
como chave para a identificação de bases comuns em torno da defesa da dignidade
e dos direitos humanos como pilares de sociedades pacíficas.
Os
intervenientes procuraram construir confiança, expandir visões e criar
oportunidades para que seja possível sair do plano das intenções e avançar para
a ação concreta e concertada, pelo desenvolvimento de iniciativas multilaterais
em prol coesão social e da resolução de conflitos.
O evento,
cujo anfitrião foi o secretário-geral do KAICIID, Dr. Zuhair Alharti, contou
com o contributo de figuras internacionais como Graça Machel, cofundadora e
vice-presidente do The Elders (grupo independente de líderes globais que
trabalham pela paz, pela justiça e pelos direitos humanos), Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro
italiano, e François Hollande, antigo presidente francês. Contou, igualmente,
com a presença de importantes líderes religiosos como o Patriarca Ecuménico de
Constantinopla, Bartolomeu I, o Grande Mufti do Egito, Shawki Ibrahim
Abdel-Karim Allam, ou o rabino principal da Polónia, Michael Schudrich.
Foi um
evento marcante, unindo líderes de todo o Mundo, para promover alianças
multissetoriais e para abrir caminho a processos de diálogo transformadores,
com vista a objetivos comuns de afirmação da dignidade humana. Usar o poder do
diálogo para construir pontes foi a premissa do fórum e da ação desta organização
intergovernamental para o diálogo intercultural e inter-religioso, que trabalha
na promoção dos valores do respeito, da compreensão e da cooperação entre
pessoas, com respeito pela justiça e pela paz, procurando pôr fim ao uso
abusivo da religião para justificar opressão, violência e conflito.
***
Líderes das
principais religiões (islâmicos, judeus e cristãos) e políticos defenderam a
necessidade de diálogo em todas as perspetivas, para encontrar soluções para os
conflitos globais, como na Ucrânia e em Gaza, e para a crise climática. “Este
fórum promove a colaboração entre diferentes comunidades”, afirmou o Imam da
Grande Mesquita de Meca, Salih Bin Abdullah al-Humaid, vincando: “Temos todas
as partes a defender uma verdadeira aliança, apesar das nossas diferenças
culturais e religiosas.” Foi um encontro que o rabi-chefe da Polónia e membro
do Conselho de Liderança Judaica-Muçulmana, Michael Schudrich, elogiou,
sublinhando que “seria impossível acontecer, há alguns anos”. A necessidade de
o fórum não servir apenas para debater conceitos, mas para inspirar ações foi
defendida pelos vários intervenientes, com o antigo presidente da Áustria,
Heinz Fischer, a admitir que “a religião e a política podem colaborar para
resolver conflitos” e que o diálogo da reunião “é muito importante”, perante a
guerra na Ucrânia, em Gaza e para outros conflitos em diferentes partes do Mundo.
“A paz não é o nosso único valor, mas, sem paz, todos os outros valores ficam
em risco”, observou.
Para o
patriarca ortodoxo Bartolomeu I, o patriarca verde, o evento deve destacar a
necessidade de paz, mas sobretudo de sustentabilidade ecológica. “Estamos
preocupados porque estamos convencidos que a crise climática tem raízes
profundamente espirituais”, confessou, defendendo que preservar o ambiente e os
recursos do planeta “não é uma moda, mas uma responsabilidade divina”. Como
adiantou, “todos os líderes religiosos têm a responsabilidade de alertar as
congregações de que o planeta é sagrado e de que não pode haver indiferença e
inação”.
Graça Machel, apresentando-se como “lutadora pela paz e a
liberdade” e como “avó africana que quer deixar um Mundo de paz aos netos e às
gerações vindouras”, defendeu a participação as mulheres em processos de
pacificação, resolução de conflitos e negociações de paz. “Apelo a todos a
encontrar formas significativas de garantir que as mulheres se sentam nas
principais mesas de negociação e de tomada de decisões – com as suas
capacidades enquanto especialistas, líderes da sociedade civil, guardadoras da
religião, académicas, advogadas, defensoras dos direitos humanos, mães e
irmãs”, afirmou, frisando que tal participação deveria ser obrigatória.
Aquela que viria a ser, mais tarde, mulher do presidente
Nelson Mandela, da África do Sul, contou exemplos de processos de resolução de
conflitos em que participou, na Libéria, no Burundi e no Quénia, para defender
a participação das mulheres: são elas que têm a maior dor e “que carregam o
maior peso do sofrimento e as feridas mais dolorosas das vítimas dos conflitos”
e, por isso, é importante “ouvir e respeitar diferentes vozes, diversas
entoações”, para poder “desfrutar dos acordes harmoniosos e duradouros da paz”.
Até porque as mulheres “têm perspetivas e aspirações absolutamente cruciais
para a resolução duradoura dos conflitos”. Mas, apesar de resoluções das Nações
Unidas nesse sentido, as mulheres continuam a ser a minoria nesses processos de
pacificação. Tão pouco deve ser deixado só às fações beligerantes a resolução
dos conflitos. Deve reconhecer-se “a força do diálogo entre múltiplos
intervenientes” e deverá haver “uma percentagem de mulheres sentadas à mesa das
negociações formais”.
Aquela que, enquanto estudante, viveu em Lisboa, num lar da
Igreja Presbiteriana, a que pertencia, vincou a responsabilidade de os líderes
religiosos apontarem caminhos a milhões de pessoas: devem assumir um papel de
“portadores da paz”, levando as instituições religiosas a serem “plataformas de
diálogo” e a ajudarem a “pôr fim aos conflitos”. “Aqueles de quem procuramos
orientação espiritual” devem recusar “as ideologias que fomentam a
desigualdade, a divisão e a destruição e orientarem-nos para empatia, compaixão
e aceitação mútua”, concluiu.
Matteo Renzi fez várias perguntas: “No tempo do Mundo, há
lugar para o diálogo? No tempo da inteligência artificial, há lugar para a
religião? No tempo das redes sociais, há lugar para a cultura?” E concluiu: “Não
só há lugar, como precisamos de lugares de oportunidades de diálogo sobre esses
pontos, porque esse é o futuro, não o passado do Mundo.”
O futuro,
como observou, passa pela cultura, que “não deveria ser a última” opção
política. E referiu a sua decisão, enquanto presidente da Câmara de Florença,
de destinar as mesmas verbas para a cultura e para a segurança: “Por cada euro
para a segurança, havia um euro para a cultura.” Uma lógica semelhante à que a
cidade vivera no Renascimento, quando estava em guerra. E, apesar disso, o
escultor e ourives Lorenzo Ghiberti e o seu filho Vittore esculpiram a Porta do
Paraíso no Batistério de Florença, “uma das obras-primas do Renascimento”,
comentou Renzi, acrescentando: “Devemos dar a mesma atenção ao diálogo que
dedicamos à geopolítica.”
Carlos
Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, lembrou a presença do Papa em Lisboa,
em agosto, para afirmar que a mensagem “todos, todos, todos” está “no coração
das religiões”. E citou o rabi judeu Jonathan Sacks, para afirmar: “Quando
contas a tua história, a tua identidade é forte e podes acolher” o estrangeiro;
“quando omites a tua história a identidade é fraca e sentes-te ameaçado.” François
Hollande pediu aos religiosos que “sejam exemplos de unidade” e em ideias
semelhantes insistiu Heinz Fischer, ex-presidente austríaco.
Augusto
Santos Silva, ex-presidente da Assembleia da República, falando dos conflitos
que se multiplicam, referiu-se à Arménia e ao Azerbaijão, sublinhando que “as nossas
diferenças enriquecem o Mundo”. E, perante os jornalistas, condenou a
“justificação do discurso de ódio” como “uma das coisas mais antipatrióticas,
porque a pátria portuguesa não é isso, é uma pátria habituada há séculos aos
que saem e aos que entram”, de proveniência “variada” e de influências
diversificadas – cristã, judaica, muçulmana, romana… “Quem quer dividir-nos,
quem quer que nos odiemos uns aos outros, quem quer que nós sejamos
intolerantes uns com os outros, esse está a pôr em perigo o essencial da pátria
portuguesa.” E, face a alguns discursos que se tinham acabado de ouvir na
sessão de abertura, o agora, de novo, professor da Universidade do Porto
afirmou que o diálogo inter-religioso também se enriquece no diálogo das
religiões com a cultura humanista europeia, que se afastou de tentação
teocrática, e declarou: “Estas sessões são muito importantes, mas são a parte
mais fácil do nosso trabalho. A parte mais difícil é que façamos o que dizemos,
pratiquemos o que pregamos. E que estejamos atentos a todos os que prostituem
as palavras: dizem palavras que sabemos que, depois, não correspondem aos seus
atos.”
***
Entretanto,
no dia 14, à margem do Fórum, o patriarca de Lisboa recebeu, no Seminário dos Olivais, o
patriarca ecuménico de Constantinopla (Igreja Ortodoxa), em encontro
que considerou “histórico”. D. Rui Valério saudou o líder ortodoxo, enfatizando
a “sede de paz” que se sente no Mundo atual. “Ser reconciliado é o caminho que,
como cristãos, temos para oferecer à sociedade de hoje, como forma de vencer a
guerra”, apontou o patriarca de Lisboa, que evocou, a dimensão histórica do Patriarcado de
Lisboa, com grande dimensão “missionária”. Para D. Rui Valério, é
necessário colocar em prática o apelo de Francisco por uma “Igreja em caminho”,
ao encontro de “todos os irmãos”.
A saudação,
perante membros do clero de Lisboa e da delegação ortodoxa, realçou a
importância da unidade dos cristãos, encerrando-se com uma oração por essa
causa dirigida à intercessão da Virgem Maria, “ícone da unidade”.
Rui Valério
citou uma mensagem enviada a Bartolomeu I pelo Papa, a 30 de novembro, em que observava
que “todos os autênticos caminhos para a restauração da plena comunhão entre os
discípulos do Senhor se distinguem pelo contacto pessoal e pelo tempo passado
juntos”. E Bartolomeu I apresentou-se como irmão, dizendo que se sentia “em casa” e vincando: “Amamos
a Igreja Católica como uma irmã.” Apontou ao 1700.º aniversário de Niceia,
primeiro Concílio ecuménico da História da Igreja, adiantando que já convidou o
Papa para as celebrações.
Os participantes no Concílio de
Niceia abordaram, entre outros temas, a definição da data da Páscoa. Os ortodoxos celebraram a Páscoa,
este ano, cinco semanas mais tarde do que os católicos e protestantes, a 5 de
maio; em 2025, a data coincide, no dia 20 de abril. No século XVI, com a introdução
por Gregório XIII do novo calendário, os católicos começaram a calcular a data
da Páscoa a partir do calendário gregoriano, enquanto as Igrejas do Oriente
continuam a celebrar a Páscoa de acordo com o calendário juliano, usado em toda
a Igreja, antes dessa reforma, e no qual o Concílio de Niceia também se baseou.
O patriarca ecuménico apelou ao diálogo fraterno para “resolver o
problema” que persiste, impedindo os cristãos de celebrarem juntos a Páscoa, a “maior festa da fé cristã”. Assumiu
uma amizade “sincera” com Francisco, tendo sido o primeiro patriarca ecuménico presente
no início solene de um pontificado, no Vaticano, em março de 2013. Após esse “dia
histórico”, Bartolomeu e o Papa estiveram juntos noutras 12 ocasiões, em Roma e
em viagens internacionais, incluindo passagens por Jerusalém ou pela ilha de
Lesbos, junto dos refugiados. Agora, admitiu que o interesse da Igreja Católica
pela sinodalidade vai “ajudar muito ao diálogo e ao caminho para a unidade” dos
cristãos, refletindo sobre a relação entre o primado e o Sínodo.
2024.05.17 – Louro de Carvalho
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