sexta-feira, 17 de maio de 2024

Lisboa acolheu o 1.º Fórum Global KAICIID para o diálogo

 

Decorreu, em Lisboa, na sede da Agência Europeia para a Segurança Marítima, entre os dias 14 e 16 de maio, o primeiro Fórum Global promovido pelo KAICIID – Centro Internacional de Diálogo, sob o mote “O Diálogo como força transformadora: Construir Alianças para a Paz num mundo em rápida mudança”, que fez sentarem-se à mesa, em prol da construção de alianças para a paz, líderes políticos e religiosos mundiais, organizações internacionais e sociedade civil.

O Centro Internacional Rei Abdullah Bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID) é uma organização intergovernamental que visa promover o diálogo entre religiões e culturas, encorajar o respeito pela diversidade e construir alianças para a paz entre nações e povos, bem como combater o uso indevido da religião como justificação para a violência e a perseguição. É liderado pelo Conselho das Partes constituído por representantes dos Estados-membros fundadores – Arábia Saudita, Áustria, Espanha e a Santa Sé (como fundador observador) – e pelo conselho diretivo composto por representantes de várias religiões (incluindo Cristianismo, Budismo, Hinduísmo, Islão, Judaísmo, Jainismo e Sikhismo). Fundado em 2012 e sediado em Lisboa desde 2022, o KAICIID tem longa experiência na promoção da reconciliação, colmatando divisões e melhorando a compreensão mútua entre grupos étnicos, culturais, sociais, etários, religiosos e religiosos.

Num momento assaz difícil, em que a Humanidade enfrenta enormes desafios – com guerras, conflitos e profundas clivagens sociais a abrirem espaço para o medo, a desconfiança e os discursos de ódio e de intolerância – este Fórum Global ganha mais sentido, focando-se no poder do diálogo intercultural e inter-religioso como chave para a identificação de bases comuns em torno da defesa da dignidade e dos direitos humanos como pilares de sociedades pacíficas.

Os intervenientes procuraram construir confiança, expandir visões e criar oportunidades para que seja possível sair do plano das intenções e avançar para a ação concreta e concertada, pelo desenvolvimento de iniciativas multilaterais em prol coesão social e da resolução de conflitos.

O evento, cujo anfitrião foi o secretário-geral do KAICIID, Dr. Zuhair Alharti, contou com o contributo de figuras internacionais como Graça Machel, cofundadora e vice-presidente do The Elders (grupo independente de líderes globais que trabalham pela paz, pela justiça e pelos direitos humanos), Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro italiano, e François Hollande, antigo presidente francês. Contou, igualmente, com a presença de importantes líderes religiosos como o Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, o Grande Mufti do Egito, Shawki Ibrahim Abdel-Karim Allam, ou o rabino principal da Polónia, Michael Schudrich.

Foi um evento marcante, unindo líderes de todo o Mundo, para promover alianças multissetoriais e para abrir caminho a processos de diálogo transformadores, com vista a objetivos comuns de afirmação da dignidade humana. Usar o poder do diálogo para construir pontes foi a premissa do fórum e da ação desta organização intergovernamental para o diálogo intercultural e inter-religioso, que trabalha na promoção dos valores do respeito, da compreensão e da cooperação entre pessoas, com respeito pela justiça e pela paz, procurando pôr fim ao uso abusivo da religião para justificar opressão, violência e conflito.

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Líderes das principais religiões (islâmicos, judeus e cristãos) e políticos defenderam a necessidade de diálogo em todas as perspetivas, para encontrar soluções para os conflitos globais, como na Ucrânia e em Gaza, e para a crise climática. “Este fórum promove a colaboração entre diferentes comunidades”, afirmou o Imam da Grande Mesquita de Meca, Salih Bin Abdullah al-Humaid, vincando: “Temos todas as partes a defender uma verdadeira aliança, apesar das nossas diferenças culturais e religiosas.” Foi um encontro que o rabi-chefe da Polónia e membro do Conselho de Liderança Judaica-Muçulmana, Michael Schudrich, elogiou, sublinhando que “seria impossível acontecer, há alguns anos”. A necessidade de o fórum não servir apenas para debater conceitos, mas para inspirar ações foi defendida pelos vários intervenientes, com o antigo presidente da Áustria, Heinz Fischer, a admitir que “a religião e a política podem colaborar para resolver conflitos” e que o diálogo da reunião “é muito importante”, perante a guerra na Ucrânia, em Gaza e para outros conflitos em diferentes partes do Mundo. “A paz não é o nosso único valor, mas, sem paz, todos os outros valores ficam em risco”, observou.

Para o patriarca ortodoxo Bartolomeu I, o patriarca verde, o evento deve destacar a necessidade de paz, mas sobretudo de sustentabilidade ecológica. “Estamos preocupados porque estamos convencidos que a crise climática tem raízes profundamente espirituais”, confessou, defendendo que preservar o ambiente e os recursos do planeta “não é uma moda, mas uma responsabilidade divina”. Como adiantou, “todos os líderes religiosos têm a responsabilidade de alertar as congregações de que o planeta é sagrado e de que não pode haver indiferença e inação”.

Graça Machel, apresentando-se como “lutadora pela paz e a liberdade” e como “avó africana que quer deixar um Mundo de paz aos netos e às gerações vindouras”, defendeu a participação as mulheres em processos de pacificação, resolução de conflitos e negociações de paz. “Apelo a todos a encontrar formas significativas de garantir que as mulheres se sentam nas principais mesas de negociação e de tomada de decisões – com as suas capacidades enquanto especialistas, líderes da sociedade civil, guardadoras da religião, académicas, advogadas, defensoras dos direitos humanos, mães e irmãs”, afirmou, frisando que tal participação deveria ser obrigatória.

Aquela que viria a ser, mais tarde, mulher do presidente Nelson Mandela, da África do Sul, contou exemplos de processos de resolução de conflitos em que participou, na Libéria, no Burundi e no Quénia, para defender a participação das mulheres: são elas que têm a maior dor e “que carregam o maior peso do sofrimento e as feridas mais dolorosas das vítimas dos conflitos” e, por isso, é importante “ouvir e respeitar diferentes vozes, diversas entoações”, para poder “desfrutar dos acordes harmoniosos e duradouros da paz”. Até porque as mulheres “têm perspetivas e aspirações absolutamente cruciais para a resolução duradoura dos conflitos”. Mas, apesar de resoluções das Nações Unidas nesse sentido, as mulheres continuam a ser a minoria nesses processos de pacificação. Tão pouco deve ser deixado só às fações beligerantes a resolução dos conflitos. Deve reconhecer-se “a força do diálogo entre múltiplos intervenientes” e deverá haver “uma percentagem de mulheres sentadas à mesa das negociações formais”.

Aquela que, enquanto estudante, viveu em Lisboa, num lar da Igreja Presbiteriana, a que pertencia, vincou a responsabilidade de os líderes religiosos apontarem caminhos a milhões de pessoas: devem assumir um papel de “portadores da paz”, levando as instituições religiosas a serem “plataformas de diálogo” e a ajudarem a “pôr fim aos conflitos”. “Aqueles de quem procuramos orientação espiritual” devem recusar “as ideologias que fomentam a desigualdade, a divisão e a destruição e orientarem-nos para empatia, compaixão e aceitação mútua”, concluiu.

Matteo Renzi fez várias perguntas: “No tempo do Mundo, há lugar para o diálogo? No tempo da inteligência artificial, há lugar para a religião? No tempo das redes sociais, há lugar para a cultura?” E concluiu: “Não só há lugar, como precisamos de lugares de oportunidades de diálogo sobre esses pontos, porque esse é o futuro, não o passado do Mundo.”

O futuro, como observou, passa pela cultura, que “não deveria ser a última” opção política. E referiu a sua decisão, enquanto presidente da Câmara de Florença, de destinar as mesmas verbas para a cultura e para a segurança: “Por cada euro para a segurança, havia um euro para a cultura.” Uma lógica semelhante à que a cidade vivera no Renascimento, quando estava em guerra. E, apesar disso, o escultor e ourives Lorenzo Ghiberti e o seu filho Vittore esculpiram a Porta do Paraíso no Batistério de Florença, “uma das obras-primas do Renascimento”, comentou Renzi, acrescentando: “Devemos dar a mesma atenção ao diálogo que dedicamos à geopolítica.”

Carlos Moedas, presidente da Câmara de Lisboa, lembrou a presença do Papa em Lisboa, em agosto, para afirmar que a mensagem “todos, todos, todos” está “no coração das religiões”. E citou o rabi judeu Jonathan Sacks, para afirmar: “Quando contas a tua história, a tua identidade é forte e podes acolher” o estrangeiro; “quando omites a tua história a identidade é fraca e sentes-te ameaçado.” François Hollande pediu aos religiosos que “sejam exemplos de unidade” e em ideias semelhantes insistiu Heinz Fischer, ex-presidente austríaco.

Augusto Santos Silva, ex-presidente da Assembleia da República, falando dos conflitos que se multiplicam, referiu-se à Arménia e ao Azerbaijão, sublinhando que “as nossas diferenças enriquecem o Mundo”. E, perante os jornalistas, condenou a “justificação do discurso de ódio” como “uma das coisas mais antipatrióticas, porque a pátria portuguesa não é isso, é uma pátria habituada há séculos aos que saem e aos que entram”, de proveniência “variada” e de influências diversificadas – cristã, judaica, muçulmana, romana… “Quem quer dividir-nos, quem quer que nos odiemos uns aos outros, quem quer que nós sejamos intolerantes uns com os outros, esse está a pôr em perigo o essencial da pátria portuguesa.” E, face a alguns discursos que se tinham acabado de ouvir na sessão de abertura, o agora, de novo, professor da Universidade do Porto afirmou que o diálogo inter-religioso também se enriquece no diálogo das religiões com a cultura humanista europeia, que se afastou de tentação teocrática, e declarou: “Estas sessões são muito importantes, mas são a parte mais fácil do nosso trabalho. A parte mais difícil é que façamos o que dizemos, pratiquemos o que pregamos. E que estejamos atentos a todos os que prostituem as palavras: dizem palavras que sabemos que, depois, não correspondem aos seus atos.”

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Entretanto, no dia 14, à margem do Fórum, o patriarca de Lisboa recebeu, no Seminário dos Olivais, o patriarca ecuménico de Constantinopla (Igreja Ortodoxa), em encontro que considerou “histórico”. D. Rui Valério saudou o líder ortodoxo, enfatizando a “sede de paz” que se sente no Mundo atual. “Ser reconciliado é o caminho que, como cristãos, temos para oferecer à sociedade de hoje, como forma de vencer a guerra”, apontou o patriarca de Lisboa, que evocou, a dimensão histórica do Patriarcado de Lisboa, com grande dimensão “missionária”. Para D. Rui Valério, é necessário colocar em prática o apelo de Francisco por uma “Igreja em caminho”, ao encontro de “todos os irmãos”.

A saudação, perante membros do clero de Lisboa e da delegação ortodoxa, realçou a importância da unidade dos cristãos, encerrando-se com uma oração por essa causa dirigida à intercessão da Virgem Maria, “ícone da unidade”.

Rui Valério citou uma mensagem enviada a Bartolomeu I pelo Papa, a 30 de novembro, em que observava que “todos os autênticos caminhos para a restauração da plena comunhão entre os discípulos do Senhor se distinguem pelo contacto pessoal e pelo tempo passado juntos”. E Bartolomeu I apresentou-se como irmão, dizendo que se sentia “em casa” e vincando: “Amamos a Igreja Católica como uma irmã.” Apontou ao 1700.º aniversário de Niceia, primeiro Concílio ecuménico da História da Igreja, adiantando que já convidou o Papa para as celebrações.

Os participantes no Concílio de Niceia abordaram, entre outros temas, a definição da data da Páscoa. Os ortodoxos celebraram a Páscoa, este ano, cinco semanas mais tarde do que os católicos e protestantes, a 5 de maio; em 2025, a data coincide, no dia 20 de abril. No século XVI, com a introdução por Gregório XIII do novo calendário, os católicos começaram a calcular a data da Páscoa a partir do calendário gregoriano, enquanto as Igrejas do Oriente continuam a celebrar a Páscoa de acordo com o calendário juliano, usado em toda a Igreja, antes dessa reforma, e no qual o Concílio de Niceia também se baseou.

O patriarca ecuménico apelou ao diálogo fraterno para “resolver o problema” que persiste, impedindo os cristãos de celebrarem juntos a Páscoa, a “maior festa da fé cristã”. Assumiu uma amizade “sincera” com Francisco, tendo sido o primeiro patriarca ecuménico presente no início solene de um pontificado, no Vaticano, em março de 2013. Após esse “dia histórico”, Bartolomeu e o Papa estiveram juntos noutras 12 ocasiões, em Roma e em viagens internacionais, incluindo passagens por Jerusalém ou pela ilha de Lesbos, junto dos refugiados. Agora, admitiu que o interesse da Igreja Católica pela sinodalidade vai “ajudar muito ao diálogo e ao caminho para a unidade” dos cristãos, refletindo sobre a relação entre o primado e o Sínodo.

2024.05.17 – Louro de Carvalho

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