Quem
ler, superficialmente, os documentos que, à semelhança do governo anterior, o
XXIV Governo Constitucional elaborou e adotou, como pauta de orientação de
postura pessoal e como chave de eficácia na ação governativa, pensará que este
governo será intocável no que à ética republicana diz respeito e eficaz no
atinente ao mérito das medidas que o executivo vai tomar.
Refiro-me,
como é óbvio, ao Código de Conduta do
XXIV Governo Constitucional,
aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 64/2024,
de 24 de abril, ao Regimento do
Conselho de Ministros do XXIV Governo Constitucional, aprovado pela Resolução
do Conselho de Ministros n.º 65/2024, de 24 de abril. Ambos os documentos são
datados de 19 de abril.
***
Diz o governo que o objetivo do seu programa é “a
promoção da ética e [da] responsabilidade na vida pública e a implementação
generalizada de mecanismos que assegurem a transparência e a integridade do
sistema democrático, reforçando a confiança dos cidadãos nas instituições do
Estado de Direito”. Por conseguinte, considera que “a definição de regras
claras que imponham elevados padrões de conduta aos detentores de cargos
políticos constitui um pilar fundamental desse desiderato”. E sustenta que o
seu Código de Conduta (CC), segue a legislação em vigor, está em linha com os regulamentos
internacionais e teve em conta “os contributos da Unidade da Transparência da
Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, prosseguindo o
diálogo com outros órgãos de soberania, designadamente a Assembleia da
República [AR], no que respeita às medidas de combate à corrupção”.
O CC, como instrumento de autorregulação, constitui um
compromisso de orientação assumido pelos membros do governo e pelos membros dos
respetivos gabinetes, “no exercício das suas funções”, bem como a “todos os
dirigentes superiores da Administração Pública sob a direção do governo”, e,
ainda, “aos dirigentes e gestores de institutos e de empresas públicas”.
Quanto aos princípios, no exercício das suas funções, os
membros do governo devem atuar no cumprimento da Constituição, atento o
interesse público e as tarefas fundamentais do Estado, observando os seguintes
princípios gerais de conduta: prossecução do interesse público e boa
administração; transparência; imparcialidade; probidade; integridade e
honestidade; urbanidade (o Presidente da República, quando disse que o
primeiro-ministro tem comportamentos rurais não tinha lido o CC, que só foi
publicado no dia seguinte); respeito interinstitucional; garantia de
confidencialidade, quanto aos assuntos reservados dos quais tomem conhecimento
no exercício das suas funções.
Mais refere que os membros do governo (e os demais a
quem se aplica o CC) “agem e decidem exclusivamente em função da defesa do
Estado e do interesse público, não podendo usufruir de quaisquer vantagens, ou
a sua promessa, sejam financeiras, patrimoniais ou não patrimoniais, diretas ou
indiretas, para si ou para terceiros, ou de qualquer outra gratificação
indevida, em virtude do cargo que ocupam”.
A nível dos deveres, o CC estipula a abstenção de “qualquer
ação ou omissão, exercida diretamente ou através de interposta pessoa, que
possa ‘objetivamente’ ser interpretada como visando beneficiar indevidamente
uma terceira pessoa, singular ou coletiva”; a rejeição de ofertas ou de qualquer
uma das vantagens, “como contrapartida do exercício de uma ação, omissão, voto
ou influência sobre a tomada de qualquer decisão pública”; a abstenção de usar
ou de permitir que terceiros utilizem, fora de parâmetros de razoabilidade e de
adequação social, bens ou recursos públicos que lhe sejam exclusivamente
disponibilizados para o exercício das suas funções, designadamente viaturas,
meios informáticos e de comunicação”; a aplicação dos princípios acima
referidos, “na sua comunicação pública, incluindo através de redes sociais”.
Em termos de responsabilidade, selecionei um item que julgo
precioso: “A responsabilidade política […] pode implicar, no caso de violação
grave ou reiterada do presente Código de Conduta, a respetiva demissão” (artigo
5.º, n.º 2). É caso para dizer: “Tudo como dantes, quartel-general em
Abrantes!”
No respeitante a conflitos
de interesses, ou seja, quando os sujeitos ao CC “se encontrem numa
situação em virtude da qual se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da
imparcialidade da sua conduta ou decisão”, é possível solicitar aos serviços
competentes “parecer sobre a eventual existência de conflitos de interesses”. E
quem se julgar em situação de conflito
de interesses deve comunicá-la à entidade ante a qual deva responder e “tomar
imediatamente as medidas necessárias para evitar, sanar ou fazer cessar o
conflito em causa”.
Na linha das vantagens acima contraindicadas, o artigo 8.º
determina a abstenção de “aceitar a oferta, a qualquer título”, “de bens
materiais, consumíveis ou duradouros, ou de serviços, que possam condicionar a
imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções”. Por outro lado,
supõe a existência de “condicionamento da imparcialidade e da integridade” do
exercício de funções, quando haja aceitação de bens de valor estimado igual ou
superior a 150 euros.
Entramos, aqui, no campo da subjetividade. Uma comunidade,
quando se sente reconhecida, não mede a sua generosidade. A quebra da
integridade não está no valore em euros, mas na capacidade de resistência do
governante ou do administrador ao aliciamento.
Todas as ofertas que constituam ou possam ser
interpretadas, pela sua recusa, como quebra de respeito interinstitucional,
designadamente no âmbito das relações entre Estados, devem ser aceites em nome
do Estado, sem prejuízo do dever de apresentação e de registo.
O artigo 10.º ou contradiz a doutrina anteriormente
estabelecida ou assume uma redação ambígua, para os membros do governo poderem
receber ofertas a título pessoal ou institucional.
Neste sentido, “abstêm-se de aceitar, a qualquer
título, convites de pessoas singulares ou coletivas, privadas ou públicas,
nacionais ou estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais
ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a
imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções”. Ultrapassam a
integridade os 150 euros.
Podem aceitar convites que lhes forem dirigidos, na
qualidade de membros do governo, para “eventos oficiais” de entidades públicas
nacionais ou estrangeiras, ou “quaisquer outros convites de entidades
privadas”, desde que isso não condicione a imparcialidade e a integridade do exercício
das suas funções; “sejam compatíveis com a natureza institucional e com a
relevância de representação própria do cargo que ocupam; e “configurem uma
conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes”. Este último
condicionamento pode dar cabo de todo o CC.
O CC prevê que o governo, no prazo de 180 dias, adote um
plano de prevenção de riscos, em articulação com o Mecanismo Nacional
Anticorrupção, para reduzir os riscos de ocorrência de conflitos de interesse e
que promova a transparência relativamente aos membros do governo e aos membros
dos gabinetes. Além disso, é criado um canal de denúncias, comum a todo o governo,
acessível através de um formulário disponibilizado no Portal do Governo, cujo
funcionamento “é independente e autónomo dos demais canais de comunicação,
assegurando a integridade e a confidencialidade das denúncias, e permitindo a
junção de documentos comprovativos dos factos alegados”. O funcionamento e o
seu seguimento pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros
são regulados por despacho do Ministro da Presidência.
O CC será adaptado às eventuais alterações legislativas a
aprovar pela AR ou pelo governo, nos domínios do combate à corrupção,
transparência, representação de interesses particulares e regulação de
contactos, no âmbito da ação governativa, até 60 dias após a respetiva
aprovação.
Por fim, “os membros do governo promovem a adoção de
códigos de conduta nos serviços que dirigem e nos institutos e empresas públicas
sobre os quais exercem superintendência ou tutela, nos termos do regime geral
de prevenção da corrupção”.
Afora o caso dos profissionais cuja atividade seja de
extrema complexidade e cujos meandros possam não ser contemplados pelo caráter
genérico e universal das leis, dos estatutos e dos regulamentos, os códigos de
conduta ou são excrescentes, por se limitarem a repetir princípios e deveres
consignados nos diplomas legais, estatutários e regulamentares, ou tentam
suprir lacunas desses normativos, sendo o caminho a reformulação de tais
documentos, não a criação de outros.
***
No concernente ao Regimento do Conselho de Ministros,
diga-se que se trata de instrumento útil à sua organização e ao seu funcionamento,
aliás, como sucede com qualquer órgão colegial.
O regimento acautela a especial responsabilidade do
primeiro-ministro (PM), a par da total solidariedade de todos os membros do
governo, bem como da cooperação dos diversos setores ligados ao governo e das
entidades que deva ouvir; privilegia o consenso nas deliberações, mas prevendo
a votação, quando necessária; estabelece o funcionamento do órgão (respetivas
condições) em plenário e por setores; e prevê, em circunstâncias excecionais, a
elaboração de normativos subscritos apenas pelo PM e pelo ministro ou ministros
a que a respetiva matéria diga respeito; e determina a produção de súmulas e de
comunicados sobre as reuniões.
Já no âmbito da legística, o regimento parece dúbio e
prolixo. Veja-se o elenco de documentos que devem acompanhar um projeto
legislativo, segundo o artigo 33.º, n.º1: sumário a publicar no Diário da República; necessidade da
forma proposta para o projeto; referência à necessidade de pareceres internos
ou consultas externas, realizados ou a realizar; enquadramento jurídico atual e
fundamento para a respetiva alteração; indicação expressa da legislação a
alterar ou a revogar; indicação expressa de eventual legislação complementar,
incluindo instrumentos de regulamentação; avaliação sumária dos meios
financeiros e humanos necessários à administração pública para execução a curto
e médio prazo, bem como de novos atos administrativos criados; ponderação, se
aplicável, sobre oportunidade de criação de regime de isenção para micro,
pequenas e médias empresas ou, não sendo possível, de regime jurídico
específico que atenda às particularidades deste segmento de empresas e mitigue
o impacto dos referidos encargos; indicadores de impacto legislativo (quando
aplicável), designadamente, quanto a impacto económico e concorrencial, impacto
sobre os riscos de fraude, corrupção e infrações conexas, impacto sobre a
deficiência, impacto sobre a pobreza, impacto sobre as políticas de não
discriminação e impacto nas políticas de família e de natalidade; resumo e
justificação do diploma incluindo, designadamente, a identificação das
principais medidas de política; eventual relação com os fundos europeus;
identificação do ato jurídico da União Europeia (UE) a cuja transposição se
procede, sendo o caso; e proposta de nota para a comunicação social.
Os projetos de transposição e atos normativos da UE
devem ser acompanhados de uma tabela de correspondências entre as disposições
da diretiva a transpor e a correspondente transposição nacional; e os projetos
de proposta de lei devem ser acompanhados de ficha de avaliação prévia de
impacto de género. E os projetos de diplomas legislativos devem ser
obrigatoriamente acompanhados de todos os projetos de regulamentação
necessários à sua implementação logo que entrem em vigor, designadamente e
consoante os casos, de projetos de decretos regulamentares, projetos de
portarias e projetos de despachos normativos.
À primeira vista, parece que o documento prima pelo
rigor. Ora, o ótimo é inimigo do bom e há elementos que podiam ser elaborados
durante o processo legislativo ou depois. Todavia, há uma cláusula que pode
deitar todo a perder: o envio destes elementos
“obrigatório, “sob pena de devolução do projeto de diploma ao proponente, bem
como da não circulação e agendamento do projeto”. Assim, isto pode
significar dispensa de deliberação ou postura de governo que pensa durar pouco. Não se trata de ser um governo que está a
prazo, como diz o secretário de Estado do Ambiente (todos estão a prazo de
quatro anos), mas de querer ir para eleições.
É, afinal, a sina de quem não quer negociar e tem a AR
como força de bloqueio!
2024.05.06
– Louro de Carvalho
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