A Solenidade da Ascensão do Senhor, em Quinta-feira da
Ascensão, ou no VII domingo da Páscoa, nos países onde o dia próprio não é
feriado (o caso de Portugal), mostra qual é a meta da nossa caminhada: a
comunhão com Deus. Além disso, lembra aos discípulos que, enquanto caminham na terra,
têm a responsabilidade da continuidade da obra de Jesus e do testemunho da
salvação de Deus.
A primeira
leitura (At 1,1-11) centra-se
na mensagem essencial da solenidade: Jesus, tendo revelado aos homens o
desígnio do Pai, entrou na Vida definitiva da comunhão com Deus, a vida que
espera todos os que percorrem a senda de Jesus. Os discípulos, testemunhas da
partida de Jesus, não podem ficar parados a olhar para o céu; mas têm de ir, de
olhos postos nos Céus, para o meio dos homens, seus irmãos, continuar a missão
de Jesus.
O livro dos “Atos dos Apóstolos” é a segunda parte da
obra lucana. Tendo apresentado, no seu Evangelho, o “tempo de Jesus”, Lucas
completa a obra com a apresentação do “tempo da Igreja”, em que a oferta da
salvação de Deus é levada ao encontro do Mundo pela comunidade de Jesus, a
Igreja, animada e guiada pelo Espírito Santo, o Espírito de Cristo.
O livro dirige-se a comunidades cristãs de língua
grega, que nasceram do trabalho missionário de Paulo e que têm dificuldades no
compromisso com a fé: passou a fase da expetativa pela vinda iminente do Cristo
glorioso para instaurar o Reino e desilusão porque a vinda não se concretizou;
as questões doutrinais causam confusões e conflitos internos; a monotonia
favorece uma vida cristã pouco comprometida. Por conseguinte, as comunidades
instalaram-se na mediocridade.
Lucas deixa claro que o desígnio de salvação que Jesus
veio apresentar não pode parar. Enquanto Ele não volta, são os discípulos que
têm de apresentar ao Mundo a salvação de Deus. Devem, com alegria e entusiasmo,
testemunhar Jesus e o Evangelho em todos os cantos da Terra. É essa a tarefa de
que Jesus os incumbiu, quando voltou para o Pai, garantindo-lhes a sua presença
e o seu acompanhamento.
O texto da primeira leitura da liturgia da Ascensão é
o início do livro dos “Atos dos Apóstolos”. Começa com o prólogo que relaciona
os Atos com o 3.° Evangelho, na referência a Teófilo a quem o Evangelho era
dedicado e na alusão a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no Mundo. O
prólogo também apresenta os protagonistas – o Espírito Santo e os apóstolos,
vinculados a Jesus – e refere diversas aparições do Ressuscitado aos
discípulos, durante 40 dias, antes de subir aos Céus. Nesse tempo, Jesus
preparou-os para o anúncio do Reino de Deus. O número 40, que é simbólico, define
o tempo necessário para o discípulo aprender e repetir as lições do mestre. Aqui,
define o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.
Depois do prólogo, vem o tema da despedida de Jesus
dos discípulos e refere as últimas palavras de Jesus antes de partir para o
Pai. Nelas, há dois elementos a salientar: a referência à vinda do Espírito e a
referência ao testemunho que os discípulos são chamados a dar “em Jerusalém,
por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do Mundo”. Estes elementos
definem os traços fundamentais do tempo iniciado com a partida de Jesus: o
tempo da Igreja, em que o testemunho da salvação será levado pelos discípulos,
animados e orientados pelo Espírito, desde Jerusalém até Roma. É o programa que
Lucas apresenta no livro, posto na boca de Jesus ressuscitado. Com efeito, o
testemunho e a pregação da Igreja entroncam em Jesus.
O último tema é a ascensão de Jesus ao Céus. A
descrição, bastante sóbria, necessita de ser interpretada para, através da
roupagem dos símbolos, a mensagem aparecer com toda a claridade.
Não se trata de uma pessoa que, literalmente, descola
da terra e se eleva rumo ao céu. Em contexto teológico, a ascensão é uma forma
de expressar que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas.
É a forma literária de descrever o culminar da vida vivida para Deus, que agora
reentra na glória da comunhão com o Pai.
A nuvem que subtrai Jesus aos olhos dos discípulos,
pairando entre o céu e a terra, é, no Antigo Testamento (AT), símbolo da
presença do divino na vida dos humanos. A nuvem, que esconde e manifesta,
sugere o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não pode ver,
mas cuja presença adivinha nos acidentes da caminhada. Céu e terra, presença e
ausência, luz e sombra, divino e humano, são dimensões sugeridas com o
Ressuscitado, que, elevado à glória do Pai, continua a caminhar com os
discípulos.
Os discípulos olham para o céu. É a expetativa da
Igreja que, na peregrinação na Terra, anseia pela nova vinda de Cristo para
levar a seu termo a libertação do Homem e do Mundo.
Por fim, os dois homens vestidos de branco interpelam
os discípulos. O branco sugere o Mundo de Deus. O testemunho desses homens vem
de Deus. Instam os discípulos a continuarem no Mundo, animados pelo Espírito, a
obra libertadora de Jesus. Agora, é a comunidade que tem de continuar, na
História, a obra de Jesus, com a esperança na vinda definitiva do Senhor.
A despedida de Jesus teria acontecido em Jerusalém,
após uma refeição com os discípulos. No Evangelho, Lucas é mais explícito: foi
em Betânia, situada no cimo do Monte das Oliveiras, em frente de Jerusalém, que
Jesus se despediu dos discípulos e, à vista deles, subiu aos Céus. De acordo
com o esquema teológico de Lucas, Jerusalém é o lugar onde a salvação irrompe e
o lugar de onde a salvação de Jesus parte para ir ao encontro do Mundo. Lá
está, no cimo do Monte das Oliveiras, uma pequena capela octogonal a fazer memória
da Ascensão de Jesus.
***
No Evangelho
(Mc 16,15-20), Jesus
ressuscitado despede-se dos discípulos e passa-lhes o testemunho. Os
discípulos, formados na escola de Jesus, têm por missão levar o Evangelho a
toda a criatura e dar Vida a todos os que vivem prisioneiros do sofrimento. De
junto do Pai, Jesus continuará a acompanhá-los e a mostrar-lhes os caminhos que
devem percorrer.
A perícope de Mc 16,9-20, conhecida como conclusão
longa, terá sido aditada, posteriormente. O estilo e o vocabulário
distinguem-na do resto do Evangelho. Aliás, não aparece nos manuscritos mais
importantes e mais antigos, como os códices Vaticano e Sinaítico. A forma como
Marcos concluiu o relato terá deixado os leitores insatisfeitos e surgiram tentativas
de lhe dar um final satisfatório. Algumas estão, aliás, atestadas em diversos
documentos antigos que nos transmitiram o texto do 2.º Evangelho. De entre os
diversos finais que apareceram, houve um que se impôs. É de meados do século II
e faz o resumo das aparições do Ressuscitado contadas por outros evangelistas.
Assim, a aparição de Jesus aos Onze depende de Lc 24,36-43 e de Jo 20,19-29; a missão
dos apóstolos depende de Mt 28,16-20 e de Lc 24,44-49; o relato da Ascensão
depende de Lc 24,50-53 e de At 1,4-11. Embora tardio, este final é parte
integrante da Sagrada Escritura. A Igreja reconhece-o como canónico, como
inspirado por Deus e como Palavra de Deus.
O quadro apresenta os discípulos a reagir, negativamente,
ao facto de Jesus não estar com eles. Na manhã da ressurreição, estavam em luto
e em pranto; depois, receberam o testemunho das mulheres que estiveram com
Jesus, incrédulos e de coração obstinado. É uma comunidade que, em vez de sair
para enfrentar a hostilidade do Mundo, fica dentro de portas, prisioneira do
medo. Porém, depois de aparecer a Maria Madalena e a dois discípulos “que iam a
caminho do campo”, Jesus apresentou-Se aos onze, que estavam à mesa. É aqui que
o trecho em apreço nos situa.
Os onze estavam dentro de casa, à mesa, como na última
ceia. Foi então que Jesus se pôs no meio deles. O quadro faz uma sugestão
eucarística. É quando os discípulos se juntam à volta da mesa da eucaristia que
Jesus Se lhes apresenta vivo e ressuscitado, lhes fala, os corrige e lhes
mostra o que fazer e como viver. É a partir da vivência eucarística que os
discípulos são enviados.
Jesus ressuscitado envia (“ide”) os discípulos e
define os contornos da missão. O primeiro vinca a universalidade da missão. Os
discípulos são enviados a “todo o Mundo” e não devem deter-se ante barreiras
rácicas, geográficas ou culturais. A salvação trazida por Jesus e que os
discípulos testemunham não tem limites. O espaço de atuação dos discípulos é o
Mundo inteiro e o âmbito da sua atuação é “toda a criatura”. Outro contorno é o
conteúdo do anúncio: o “Evangelho”. No AT, a palavra refere-se à “boa notícia”
da chegada da salvação para o Povo de Deus. Na boca de Jesus, a palavra designa
o anúncio da chegada do Reino, o Mundo transformado e renovado por Deus. Para
os catequistas das primeiras comunidades, Evangelho é anúncio de um
acontecimento capital: em Jesus Cristo, Deus veio ao encontro dos homens,
manifestou-lhes o seu amor, inseriu-os na sua família, convidou-os a integrar a
comunidade do Reino, ofereceu-lhes a Vida, o que muda a História e transforma o
sentido e os horizontes da existência humana.
O anúncio do Evangelho obriga os homens a optar. Quem
aderir a Jesus chegará à Vida plena (“quem acreditar e for batizado será
salvo”), mas quem O recusar ficará à margem da salvação (“quem não acreditar
será condenado”). O Evangelho atinge não só os seres humanos, mas “toda a
criatura”. O homem, por egoísmo e por lucro, explora a criação e destrói-a.
Ora, a salvação de Deus destina-se a transformar o coração do Homem, eliminando
o egoísmo.
Ao transformar o coração do Homem, o Evangelho de
Jesus, anunciado pelos discípulos, propõe nova relação do homem com as outras
criaturas – uma relação não marcada pelo abuso e pela exploração, mas pelo
respeito e pelo amor. Dessa forma, nascerá uma nova humanidade e uma nova
natureza. A presença da salvação de Deus no Mundo tornar-se-á realidade através
dos gestos dos discípulos. Comprometidos com Jesus, vencerão a injustiça e a
opressão (“expulsarão os demónios em meu nome”), serão arautos da paz e do
entendimento dos homens (“falarão novas línguas”), levarão a esperança e a Vida
a todos os que sofrem e que são prisioneiros da doença e do sofrimento (“quando
impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados”). Foi isso que Jesus
fez. A missão dos discípulos entronca em Jesus e continua a obra de Jesus.
Definida a missão dos discípulos, o caminho de Jesus
na Terra está concluído. Com sobriedade, o evangelista descreve a partida de
Jesus e a sua entronização “à direita de Deus”. A glorificação de Jesus ao lado
de Deus garante a veracidade da proposta de Jesus. Para os antigos, quem se
sentava à direita do rei era uma personalidade distinta, que o rei honrava de
forma especial. Jesus, por cumprir com total fidelidade o desígnio de Deus, é
honrado pelo Pai e é sentado à sua direita. A missão dos discípulos não é uma
aventura sem sentido e sem saída, mas o projeto de salvação que Deus oferece ao
homem e a todos os outros seres criados.
Consumada a partida de Jesus, os discípulos cumprem o
mandato missionário. A descrição do modo como os discípulos assumem a missão é
sóbria, mas densa: “partiram”, isto é, deixaram o medo, as seguranças, a zona
de conforto, as apostas e projetos pessoais, por causa da missão; “foram
pregar”, isto é, propuseram, com palavras e com gestos concretos, a Vida que
Deus oferece aos homens, através de Jesus; “por toda a parte”, isto é, levaram
ao Mundo, aos homens, às outras criaturas, a todos, a proposta salvadora de
Deus.
Por fim, o catequista garante que os discípulos não estão
sós na missão. Jesus, vivo e ressuscitado, está com eles, coopera com eles e
manifesta-Se ao Mundo na palavra e nos gestos deles.
***
A segunda
leitura (Ef 1,17-23) insta os discípulos à consciência da esperança a
que foram chamados: a Vida de comunhão com Deus – esperança que ilumina o
horizonte dos que fazem parte da Igreja, o corpo do qual Cristo é a cabeça.
Éfeso, cidade da costa jónica, a cerca de três
quilómetros de Selçuk, na província de Esmirna, na Turquia, chegou a ser a
segunda cidade do império romano, famosa pelo Templo de Ártemis, uma das sete
maravilhas do Mundo, e pelo seu teatro, com capacidade para cerca de 25 mil
espetadores. Deram-lhe fama as suas escolas filosóficas, a sua vida cultural e
ser o principal centro comercial do Mediterrâneo. Por ali passou o apóstolo, na
terceira viagem, e ficou durante bastante tempo. Reuniu considerável número de
pessoas convertidas ao Caminho, desenvolvendo-se numerosa e entusiasta comunidade
cristã. Foi aos seus anciãos que Paulo confiou, em Mileto, o seu testamento
espiritual, apostólico e pastoral antes de ir a Jerusalém, onde foi preso.
O tema central da Carta aos Efésios é o desígnio de
Deus (a que Paulo chama “o mistério”): definido desde sempre, que permaneceu
oculto ao entendimento dos homens durante séculos, até que foi dado a conhecer
em Jesus e revelado aos apóstolos. O projeto salvador de Deus concretiza-se,
agora, na Igreja, Corpo de Cristo, sacramento de salvação, onde judeus e pagãos
se encontram e vivem em unidade. O trecho em apreço integra a primeira parte da
carta, que reflete sobre o “Mistério” de Cristo e da Igreja (cf Ef 1,3-3,21). Ao hino de louvor a Deus
pelo seu plano de salvação, concretizado em Cristo segue-se uma ação de graças
pela fé dos Efésios e pela caridade que eles manifestam para com todos os
irmãos na fé.
Os Efésios vivem, de forma exemplar, a fé em Cristo e
a caridade que resulta do mandamento do amor. Cônscio disso, Paulo garante aos
santos de Éfeso e das outras Igrejas que não cessa de agradecer a Deus os seus
dons, pois é Ele, pelo Espírito, que alimenta a fé e a caridade dos fiéis.
À ação de graças, Paulo une fervorosa oração, pedindo
a Deus para os destinatários da Carta “um espírito de sabedoria” que os leve a
conhecê-Lo e a apreciar “a esperança a que foram chamados”, que é a Vida
eterna, prometida como herança aos que caminham com Jesus. A prova de que o Pai
pode realizar tal esperança é o que Ele fez com Jesus: ressuscitou-O da morte e
sentou-O à sua direita, exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre todos os poderes.
Paulo acha que, se Deus fez isso com Cristo, o fará connosco. A ressurreição de
Cristo foi o primeiro fruto da ação de Deus, a que se seguirá a nossa
ressurreição, aliás incluída na de Cristo.
Paulo frisa que a soberania de Cristo (dada pelo Pai) se
exerce sobre a Igreja. Para tanto, retoma uma imagem que já utilizou nos seus
escritos: a Igreja como “Corpo de Cristo”. A ideia de que a comunidade cristã é
o corpo de Cristo, formado por muitos membros, já aparecera nas grandes cartas
paulinas, acentuando a relação dos vários membros do corpo entre si. Porém, nas
“cartas do cativeiro” (como Efésios e Colossenses), reaparece a noção de corpo
de Cristo a refletir a relação entre a comunidade e Cristo. Aqui, há dois
conceitos significativos a definir o quadro da relação entre Cristo e a Igreja:
o de “cabeça” e o de “plenitude” (em grego, “plêrôma”).
Dizer que Cristo é a cabeça da Igreja significa que os
dois formam uma unidade indissolúvel, numa comunhão total de vida e de destino;
que Cristo é o centro à volta do qual o corpo se articula, a partir do qual e
em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e constrói, a origem e o fim
desse corpo; e que a Igreja/corpo está submetida à obediência a Cristo/cabeça:
só de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência. Dizer que a Igreja é
a plenitude de Cristo significa que nela reside a totalidade de Cristo. Ela é o
recetáculo, a habitação, onde o Cristo total Se torna presente no Mundo; é por esse
corpo que Jesus realiza o projeto de salvação em prol dos homens. Presente
nesse corpo, Cristo enche o Mundo e atrai a Si o universo, até que “seja tudo
em todos”.
***
Povos todos, batei palmas, aclamai Deus com brados de
alegria, porque o Senhor, o Altíssimo, é terrível, o Rei soberano de toda a Terra.
Sobe entre aclamações, ao som da trombeta. Cantai hinos a Deus, cantai hinos ao
nosso Rei. Deus é Rei do universo: cantai os hinos mais belos. Deus reina sobre
os povos, está sentado no seu trono sagrado (cf Sl 47).
2024.05.12 – Louro de Carvalho
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