domingo, 12 de maio de 2024

Sobe aos Céus, voltará e está connosco todos os dias: tempo da Igreja

 

A Solenidade da Ascensão do Senhor, em Quinta-feira da Ascensão, ou no VII domingo da Páscoa, nos países onde o dia próprio não é feriado (o caso de Portugal), mostra qual é a meta da nossa caminhada: a comunhão com Deus. Além disso, lembra aos discípulos que, enquanto caminham na terra, têm a responsabilidade da continuidade da obra de Jesus e do testemunho da salvação de Deus.

primeira leitura (At 1,1-11) centra-se na mensagem essencial da solenidade: Jesus, tendo revelado aos homens o desígnio do Pai, entrou na Vida definitiva da comunhão com Deus, a vida que espera todos os que percorrem a senda de Jesus. Os discípulos, testemunhas da partida de Jesus, não podem ficar parados a olhar para o céu; mas têm de ir, de olhos postos nos Céus, para o meio dos homens, seus irmãos, continuar a missão de Jesus.

O livro dos “Atos dos Apóstolos” é a segunda parte da obra lucana. Tendo apresentado, no seu Evangelho, o “tempo de Jesus”, Lucas completa a obra com a apresentação do “tempo da Igreja”, em que a oferta da salvação de Deus é levada ao encontro do Mundo pela comunidade de Jesus, a Igreja, animada e guiada pelo Espírito Santo, o Espírito de Cristo.

O livro dirige-se a comunidades cristãs de língua grega, que nasceram do trabalho missionário de Paulo e que têm dificuldades no compromisso com a fé: passou a fase da expetativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino e desilusão porque a vinda não se concretizou; as questões doutrinais causam confusões e conflitos internos; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida. Por conseguinte, as comunidades instalaram-se na mediocridade.

Lucas deixa claro que o desígnio de salvação que Jesus veio apresentar não pode parar. Enquanto Ele não volta, são os discípulos que têm de apresentar ao Mundo a salvação de Deus. Devem, com alegria e entusiasmo, testemunhar Jesus e o Evangelho em todos os cantos da Terra. É essa a tarefa de que Jesus os incumbiu, quando voltou para o Pai, garantindo-lhes a sua presença e o seu acompanhamento.

O texto da primeira leitura da liturgia da Ascensão é o início do livro dos “Atos dos Apóstolos”. Começa com o prólogo que relaciona os Atos com o 3.° Evangelho, na referência a Teófilo a quem o Evangelho era dedicado e na alusão a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no Mundo. O prólogo também apresenta os protagonistas – o Espírito Santo e os apóstolos, vinculados a Jesus – e refere diversas aparições do Ressuscitado aos discípulos, durante 40 dias, antes de subir aos Céus. Nesse tempo, Jesus preparou-os para o anúncio do Reino de Deus. O número 40, que é simbólico, define o tempo necessário para o discípulo aprender e repetir as lições do mestre. Aqui, define o tempo simbólico de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado.

Depois do prólogo, vem o tema da despedida de Jesus dos discípulos e refere as últimas palavras de Jesus antes de partir para o Pai. Nelas, há dois elementos a salientar: a referência à vinda do Espírito e a referência ao testemunho que os discípulos são chamados a dar “em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do Mundo”. Estes elementos definem os traços fundamentais do tempo iniciado com a partida de Jesus: o tempo da Igreja, em que o testemunho da salvação será levado pelos discípulos, animados e orientados pelo Espírito, desde Jerusalém até Roma. É o programa que Lucas apresenta no livro, posto na boca de Jesus ressuscitado. Com efeito, o testemunho e a pregação da Igreja entroncam em Jesus.

O último tema é a ascensão de Jesus ao Céus. A descrição, bastante sóbria, necessita de ser interpretada para, através da roupagem dos símbolos, a mensagem aparecer com toda a claridade.

Não se trata de uma pessoa que, literalmente, descola da terra e se eleva rumo ao céu. Em contexto teológico, a ascensão é uma forma de expressar que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas. É a forma literária de descrever o culminar da vida vivida para Deus, que agora reentra na glória da comunhão com o Pai.

A nuvem que subtrai Jesus aos olhos dos discípulos, pairando entre o céu e a terra, é, no Antigo Testamento (AT), símbolo da presença do divino na vida dos humanos. A nuvem, que esconde e manifesta, sugere o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não pode ver, mas cuja presença adivinha nos acidentes da caminhada. Céu e terra, presença e ausência, luz e sombra, divino e humano, são dimensões sugeridas com o Ressuscitado, que, elevado à glória do Pai, continua a caminhar com os discípulos.

Os discípulos olham para o céu. É a expetativa da Igreja que, na peregrinação na Terra, anseia pela nova vinda de Cristo para levar a seu termo a libertação do Homem e do Mundo.

Por fim, os dois homens vestidos de branco interpelam os discípulos. O branco sugere o Mundo de Deus. O testemunho desses homens vem de Deus. Instam os discípulos a continuarem no Mundo, animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus. Agora, é a comunidade que tem de continuar, na História, a obra de Jesus, com a esperança na vinda definitiva do Senhor.

A despedida de Jesus teria acontecido em Jerusalém, após uma refeição com os discípulos. No Evangelho, Lucas é mais explícito: foi em Betânia, situada no cimo do Monte das Oliveiras, em frente de Jerusalém, que Jesus se despediu dos discípulos e, à vista deles, subiu aos Céus. De acordo com o esquema teológico de Lucas, Jerusalém é o lugar onde a salvação irrompe e o lugar de onde a salvação de Jesus parte para ir ao encontro do Mundo. Lá está, no cimo do Monte das Oliveiras, uma pequena capela octogonal a fazer memória da Ascensão de Jesus.

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No Evangelho (Mc 16,15-20), Jesus ressuscitado despede-se dos discípulos e passa-lhes o testemunho.  Os discípulos, formados na escola de Jesus, têm por missão levar o Evangelho a toda a criatura e dar Vida a todos os que vivem prisioneiros do sofrimento. De junto do Pai, Jesus continuará a acompanhá-los e a mostrar-lhes os caminhos que devem percorrer.

A perícope de Mc 16,9-20, conhecida como conclusão longa, terá sido aditada, posteriormente. O estilo e o vocabulário distinguem-na do resto do Evangelho. Aliás, não aparece nos manuscritos mais importantes e mais antigos, como os códices Vaticano e Sinaítico. A forma como Marcos concluiu o relato terá deixado os leitores insatisfeitos e surgiram tentativas de lhe dar um final satisfatório. Algumas estão, aliás, atestadas em diversos documentos antigos que nos transmitiram o texto do 2.º Evangelho. De entre os diversos finais que apareceram, houve um que se impôs. É de meados do século II e faz o resumo das aparições do Ressuscitado contadas por outros evangelistas. Assim, a aparição de Jesus aos Onze depende de Lc 24,36-43 e de Jo 20,19-29; a missão dos apóstolos depende de Mt 28,16-20 e de Lc 24,44-49; o relato da Ascensão depende de Lc 24,50-53 e de At 1,4-11. Embora tardio, este final é parte integrante da Sagrada Escritura. A Igreja reconhece-o como canónico, como inspirado por Deus e como Palavra de Deus.

O quadro apresenta os discípulos a reagir, negativamente, ao facto de Jesus não estar com eles. Na manhã da ressurreição, estavam em luto e em pranto; depois, receberam o testemunho das mulheres que estiveram com Jesus, incrédulos e de coração obstinado. É uma comunidade que, em vez de sair para enfrentar a hostilidade do Mundo, fica dentro de portas, prisioneira do medo. Porém, depois de aparecer a Maria Madalena e a dois discípulos “que iam a caminho do campo”, Jesus apresentou-Se aos onze, que estavam à mesa. É aqui que o trecho em apreço nos situa. 

Os onze estavam dentro de casa, à mesa, como na última ceia. Foi então que Jesus se pôs no meio deles. O quadro faz uma sugestão eucarística. É quando os discípulos se juntam à volta da mesa da eucaristia que Jesus Se lhes apresenta vivo e ressuscitado, lhes fala, os corrige e lhes mostra o que fazer e como viver. É a partir da vivência eucarística que os discípulos são enviados.

Jesus ressuscitado envia (“ide”) os discípulos e define os contornos da missão. O primeiro vinca a universalidade da missão. Os discípulos são enviados a “todo o Mundo” e não devem deter-se ante barreiras rácicas, geográficas ou culturais. A salvação trazida por Jesus e que os discípulos testemunham não tem limites. O espaço de atuação dos discípulos é o Mundo inteiro e o âmbito da sua atuação é “toda a criatura”. Outro contorno é o conteúdo do anúncio: o “Evangelho”. No AT, a palavra refere-se à “boa notícia” da chegada da salvação para o Povo de Deus. Na boca de Jesus, a palavra designa o anúncio da chegada do Reino, o Mundo transformado e renovado por Deus. Para os catequistas das primeiras comunidades, Evangelho é anúncio de um acontecimento capital: em Jesus Cristo, Deus veio ao encontro dos homens, manifestou-lhes o seu amor, inseriu-os na sua família, convidou-os a integrar a comunidade do Reino, ofereceu-lhes a Vida, o que muda a História e transforma o sentido e os horizontes da existência humana.

O anúncio do Evangelho obriga os homens a optar. Quem aderir a Jesus chegará à Vida plena (“quem acreditar e for batizado será salvo”), mas quem O recusar ficará à margem da salvação (“quem não acreditar será condenado”). O Evangelho atinge não só os seres humanos, mas “toda a criatura”. O homem, por egoísmo e por lucro, explora a criação e destrói-a. Ora, a salvação de Deus destina-se a transformar o coração do Homem, eliminando o egoísmo.

Ao transformar o coração do Homem, o Evangelho de Jesus, anunciado pelos discípulos, propõe nova relação do homem com as outras criaturas – uma relação não marcada pelo abuso e pela exploração, mas pelo respeito e pelo amor. Dessa forma, nascerá uma nova humanidade e uma nova natureza. A presença da salvação de Deus no Mundo tornar-se-á realidade através dos gestos dos discípulos. Comprometidos com Jesus, vencerão a injustiça e a opressão (“expulsarão os demónios em meu nome”), serão arautos da paz e do entendimento dos homens (“falarão novas línguas”), levarão a esperança e a Vida a todos os que sofrem e que são prisioneiros da doença e do sofrimento (“quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados”). Foi isso que Jesus fez. A missão dos discípulos entronca em Jesus e continua a obra de Jesus.

Definida a missão dos discípulos, o caminho de Jesus na Terra está concluído. Com sobriedade, o evangelista descreve a partida de Jesus e a sua entronização “à direita de Deus”. A glorificação de Jesus ao lado de Deus garante a veracidade da proposta de Jesus. Para os antigos, quem se sentava à direita do rei era uma personalidade distinta, que o rei honrava de forma especial. Jesus, por cumprir com total fidelidade o desígnio de Deus, é honrado pelo Pai e é sentado à sua direita. A missão dos discípulos não é uma aventura sem sentido e sem saída, mas o projeto de salvação que Deus oferece ao homem e a todos os outros seres criados.

Consumada a partida de Jesus, os discípulos cumprem o mandato missionário. A descrição do modo como os discípulos assumem a missão é sóbria, mas densa: “partiram”, isto é, deixaram o medo, as seguranças, a zona de conforto, as apostas e projetos pessoais, por causa da missão; “foram pregar”, isto é, propuseram, com palavras e com gestos concretos, a Vida que Deus oferece aos homens, através de Jesus; “por toda a parte”, isto é, levaram ao Mundo, aos homens, às outras criaturas, a todos, a proposta salvadora de Deus.

Por fim, o catequista garante que os discípulos não estão sós na missão. Jesus, vivo e ressuscitado, está com eles, coopera com eles e manifesta-Se ao Mundo na palavra e nos gestos deles.

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segunda leitura (Ef 1,17-23) insta os discípulos à consciência da esperança a que foram chamados: a Vida de comunhão com Deus – esperança que ilumina o horizonte dos que fazem parte da Igreja, o corpo do qual Cristo é a cabeça.

Éfeso, cidade da costa jónica, a cerca de três quilómetros de Selçuk, na província de Esmirna, na Turquia, chegou a ser a segunda cidade do império romano, famosa pelo Templo de Ártemis, uma das sete maravilhas do Mundo, e pelo seu teatro, com capacidade para cerca de 25 mil espetadores. Deram-lhe fama as suas escolas filosóficas, a sua vida cultural e ser o principal centro comercial do Mediterrâneo. Por ali passou o apóstolo, na terceira viagem, e ficou durante bastante tempo. Reuniu considerável número de pessoas convertidas ao Caminho, desenvolvendo-se numerosa e entusiasta comunidade cristã. Foi aos seus anciãos que Paulo confiou, em Mileto, o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral antes de ir a Jerusalém, onde foi preso.

O tema central da Carta aos Efésios é o desígnio de Deus (a que Paulo chama “o mistério”): definido desde sempre, que permaneceu oculto ao entendimento dos homens durante séculos, até que foi dado a conhecer em Jesus e revelado aos apóstolos. O projeto salvador de Deus concretiza-se, agora, na Igreja, Corpo de Cristo, sacramento de salvação, onde judeus e pagãos se encontram e vivem em unidade. O trecho em apreço integra a primeira parte da carta, que reflete sobre o “Mistério” de Cristo e da Igreja (cf Ef 1,3-3,21). Ao hino de louvor a Deus pelo seu plano de salvação, concretizado em Cristo segue-se uma ação de graças pela fé dos Efésios e pela caridade que eles manifestam para com todos os irmãos na fé.

Os Efésios vivem, de forma exemplar, a fé em Cristo e a caridade que resulta do mandamento do amor. Cônscio disso, Paulo garante aos santos de Éfeso e das outras Igrejas que não cessa de agradecer a Deus os seus dons, pois é Ele, pelo Espírito, que alimenta a fé e a caridade dos fiéis.

À ação de graças, Paulo une fervorosa oração, pedindo a Deus para os destinatários da Carta “um espírito de sabedoria” que os leve a conhecê-Lo e a apreciar “a esperança a que foram chamados”, que é a Vida eterna, prometida como herança aos que caminham com Jesus. A prova de que o Pai pode realizar tal esperança é o que Ele fez com Jesus: ressuscitou-O da morte e sentou-O à sua direita, exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre todos os poderes. Paulo acha que, se Deus fez isso com Cristo, o fará connosco. A ressurreição de Cristo foi o primeiro fruto da ação de Deus, a que se seguirá a nossa ressurreição, aliás incluída na de Cristo.

Paulo frisa que a soberania de Cristo (dada pelo Pai) se exerce sobre a Igreja. Para tanto, retoma uma imagem que já utilizou nos seus escritos: a Igreja como “Corpo de Cristo”. A ideia de que a comunidade cristã é o corpo de Cristo, formado por muitos membros, já aparecera nas grandes cartas paulinas, acentuando a relação dos vários membros do corpo entre si. Porém, nas “cartas do cativeiro” (como Efésios e Colossenses), reaparece a noção de corpo de Cristo a refletir a relação entre a comunidade e Cristo. Aqui, há dois conceitos significativos a definir o quadro da relação entre Cristo e a Igreja: o de “cabeça” e o de “plenitude” (em grego, “plêrôma”).

Dizer que Cristo é a cabeça da Igreja significa que os dois formam uma unidade indissolúvel, numa comunhão total de vida e de destino; que Cristo é o centro à volta do qual o corpo se articula, a partir do qual e em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e constrói, a origem e o fim desse corpo; e que a Igreja/corpo está submetida à obediência a Cristo/cabeça: só de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência. Dizer que a Igreja é a plenitude de Cristo significa que nela reside a totalidade de Cristo. Ela é o recetáculo, a habitação, onde o Cristo total Se torna presente no Mundo; é por esse corpo que Jesus realiza o projeto de salvação em prol dos homens. Presente nesse corpo, Cristo enche o Mundo e atrai a Si o universo, até que “seja tudo em todos”.

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Povos todos, batei palmas, aclamai Deus com brados de alegria, porque o Senhor, o Altíssimo, é terrível, o Rei soberano de toda a Terra. Sobe entre aclamações, ao som da trombeta. Cantai hinos a Deus, cantai hinos ao nosso Rei. Deus é Rei do universo: cantai os hinos mais belos. Deus reina sobre os povos, está sentado no seu trono sagrado (cf Sl 47). 

2024.05.12 – Louro de Carvalho

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