Na sequência de requerimento da Iniciativa e Liberal (IL), arrancou, a 8 de maio, na comissão parlamentar de Trabalho, Segurança Social e
Inclusão, uma
série de audições “urgentes” a personalidades das gestões anterior e atual da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (CSML).
O primeiro a ser ouvido foi o anterior provedor, Edmundo
Martinho, cuja gestão tem estado no epicentro da polémica, pelo
investimento no processo de internacionalização dos jogos sociais, cujas perdas
rondam cerca de 50 milhões de euros.
O ex-provedor considerou
previsível o afastamento da sucessora cujo trabalho criticou. “As opções
tomadas repercutiram-se negativamente na Santa Casa. E não se conhece uma
estratégia para este desequilíbrio entre as receitas e as despesas”, acusou,
referindo-se às irregularidades denunciadas pela então provedora na Santa Casa
Global, o que resultou na interrupção dos negócios internacionais da SCML. “É
normal que, durante um período, houvesse resultados negativos. Funciona assim.
São processos que implicam investimentos, nomeadamente na rede de distribuição.
Isto estava tudo previsto. Foi a interrupção abrupta do investimento que trouxe
os resultados negativos”, afirmou Edmundo Martinho, vincando que a
internacionalização é um caminho correto para a SCML. E garantiu que toda a sua
ação fora articulada com a tutela.
Quem
também já foi ouvida, na comissão, foi a vice-provedora demissionária, que
admitiu não haver propriamente “um plano robusto” para obviar às dificuldades
financeiras da instituição, mas foram tomadas medidas urgentes, como a redução
dos cargos de chefia. “Quando cheguei, havia chefias sem equipa. Eram chefes
deles próprios”, declarou Ana Vitória Azevedo, frisando que havia “um conjunto de medidas de sustentabilidade financeira para 2023 e
2024”. No fundo, “eram medidas urgentes”, com
vista a “regularizar” as contas da instituição.
Entre as medidas tomadas esteve o corte de “15% do número de cargos”,
nomeadamente “uma redução de 40 cargos de dirigentes” em 2023, com um valor de
um milhão de euros.
Adiantou que, obviar aos elevados custos de pessoal, foi suspensa a
contratação de funcionários sem licença e que “era urgente de aplicar, na Santa
Casa, o acordo de empresa alcançado”. Além disso, como “era
impensável que os trabalhadores tivessem tanto tempo sem atualizações
salariais”, a subida de salários “era fundamental” para a “paz social”
da SCML.
Criticou duramente a atual ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança
Social, acentuando que “tem todo o direito de mudar a gestão” da SCML, mas não
“não tem o direito de dizer coisas que não são
verdadeiras”, aludindo ao facto de Ana Paula Ramalho ter referido que só
foram cortados 19 dirigentes e que Ana Jorge e a restante mesa retiram
benefício próprio, através de aumentos salariais. “O único aumento resultou da
aplicação do Estatuto do Gestor Público
e foi decretado, não pelos órgãos da Santa Casa, mas pelo anterior governo. […]
A mesa não teve nenhum benefício para si”, assegurou, considerando que a
“acusação é grave”.
Sobre o processo de internacionalização dos jogos sociais, a
ex-vice-provedora disse que “não estava contra”, mas mostrou “reservas e divergências”, nomeadamente sobre a “maneira
pouco cautelosa com que o projeto estava a ser executado”, recusando,
no entanto, que que este processo esteja na origem dos problemas da Santa Casa.
Por outro lado, considerou ainda “extemporânea” a divulgação
das conclusões preliminares da auditoria externa, feita pela BDO, ao
processo de internacionalização, dado que a investigação ainda estava em curso.
***
A audição destas personalidades já dá o tom do sentido das declarações a prestar
à comissão parlamentar. No entanto, o que se passa na SCML, que é grave,
resulta de diferentes conceções de perspetiva estratégica e de gestão, assim
como do que se passou com a pandemia de covid-19, que fragilizou todas as
estruturas de vocação social e solidária.
Entre as preocupações identificadas pela mesa, liderada pela provedora
(agora exonerada) consta a “provável rutura de tesouraria”, pois, no final de
2023, foi estimado um défice de 25 milhões de euros e
a necessidade de reforço de entre 55 milhões e 65 milhões, para “satisfazer
compromissos inadiáveis, nomeadamente, despesas com pessoal”, de
acordo com o Plano de Orçamento e Atividades 2024 da SCML. Tal situação levou a SCML a receber, em agosto de 2023, uma transferência do Instituto da Segurança Social (ISS) de cerca de 34 milhões de euros, de uma dívida “com
utentes em estruturas residenciais para idosos durante a pandemia”, o que equilibrou as contas de 2023, ano em que terá registado um
resultado líquido positivo de 10 milhões de euros. Todavia, os problemas
financeiros vinham da anterior administração, de Edmundo Martinho, que exerceu
funções entre 2017 e o final de março de 2023.
O ponto de viragem da saúde financeira da instituição fundada em 1498 (mais
do que pentassecular) coincidiu com o primeiro ano de pandemia,
com a SCML a passar de lucro a prejuízo. Em 2020, passou do lucro
de 37,5 milhões de euros, em 2019, para o prejuízo de 52,8 milhões de euros. Em
2021, o prejuízo foi de 39,8 milhões e, em 2022, de 12,4 milhões.
Em 2022, as contas foram corrigidas na sequência da
auditoria, dado que o primeiro relatório apontava para lucros de 10,9
milhões. Nos relatórios e contas, a SCML justificava os prejuízos com as
“perdas de imparidade associadas às perdas de valor decorrentes dos negócios de
internacionalização e pela redução do justo valor das propriedades arrendadas”.
A situação financeira foi agravada por saldos
correntes deficitários, com as despesas a excederem as receitas. Em 2022, o défice do saldo corrente atingiu os 11,31
milhões de euros e o orçamentado para 2023 foi
quase o triplo, mais de 33 milhões negativos. A análise
às contas mostra a tendência recorrente para orçamentação otimista
das receitas, que, em 2021 e em 2022, ficaram abaixo do previsto. Em
2021, ficaram 14% abaixo do orçamentado e, em 2022, ficaram 17% abaixo do orçamentado.
E, se a receita desapontou, a despesa corrente foi crescendo. Em 2022, atingiu 252,5 milhões de euros em 2022, um aumento de quase 20%, face aos 211,1 milhões de euros de 2017,
quando Edmundo Martinho subiu a provedor. Esta rubrica aumentou entre
2017 e 2021, tendo recuado, ligeiramente, em 2022 (menos 2,8 milhões de
euros, face a 2021, uma quebra de 1,1%).
Os saldos de capital também foram negativos entre 2020
e 2022, tendo sido orçamentado, para 2023,
um valor positivo de 33,25 milhões de euros, ambição sustentada numa estimativa
de receitas de capital de 62,5 milhões, através da venda de imóveis. A última
estimativa para o saldo de capital era, afinal, de um défice de 26,1 milhões.
O Plano de Orçamento e Atividades para 2024, da atual administração, que refere
“preocupante situação económico-financeira” da SCML,
identificou previsões excessivas nos orçamentos de receitas, como vendas de imóveis de valor elevado, que permitiam inscrever
dotações de despesas sem cobertura em disponibilidades reais”
Foi também no final do primeiro ano de pandemia que a SCML adquiriu uma
participação de 55% na sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha
Portuguesa (HCVP), o que pesou nas contas. A SCML queria tornar-se acionista
único do hospital, estando acordada, numa segunda fase, a aquisição dos
restantes 45% do capital social à Parpública, o que não de realizou.
Outra das preocupações da mesa fazia mira às garantias bancárias prestadas
pela SCML, que, no fim de junho de 2023, ascendiam a 30,4 milhões de
euros, dos quais 13,8 e 14,1 milhões de euros aos passivos
bancários do HCVP e da Santa Casa Global,
respetivamente. E, em 2022, o HCVP continuava com situação financeira
precária, com um capital próprio de 1,9 milhões, ainda assim melhor do
que no ano anterior, com um “buraco” de 7,1 milhões.
A principal fonte de receitas da SCML são os jogos sociais, que representavam,
em 2022, cerca de 81% do total da receita corrente, ascendendo
a 195 milhões de euros. Porém, apesar de esta
rubrica ter aumentado cerca de 4,6%, face aos 186,5 milhões registados em 2021,
ficaram longe dos 208,5 milhões de euros estimados e dos resultados da
pré-pandemia (em 2019 chegaram aos 226,1 milhões). E, embora tenha o exclusivo
da exploração dos jogos, a instituição só recebe 26,52% das receitas
líquidas geradas, sendo o remanescente dividido pelos demais
beneficiários.
As despesas com pessoal representam 63% das
receitas. Em 2022, a SCML contava com 6080 funcionários, ligeiro recuo, face aos 6204 de
2021. Só que no período de Edmundo Martinho como provedor, entraram cerca
de mais mil trabalhadores, já que, em 2017, eram cerca de cinco mil. Para 2024, a atual administração projetava um total de 6074
trabalhadores.
Outra questão levantada é a do elevado número de chefias. A mesa estima
que 488 desempenhem estes cargos, dos quais 279 cargos de
dirigente, 107 cargos de diretor de estabelecimento e 102 cargos de chefia
direta. Face a 2023, a única diferença, neste âmbito, diz respeito a cargos de
dirigente: eram 281 (menos dois face a 2024). Ainda assim, já foram bem mais os
funcionários em cargos chefia. Em 2020, eram 556, dos quais 348 dirigentes.
O peso das despesas com pessoal, que, em 2022,
representava 63% das receitas totais, devido
à grande dimensão da estrutura, a excessivos níveis
hierárquicos e a inúmeros cargos de chefia, é outras das preocupações
apontada pela administração, no plano de atividades, considerando que esta
circunstância limita “fortemente os recursos a afetar à atividade” da
instituição.
Outro tema que tem gerado polémica é a internacionalização dos jogos sociais através da Santa Casa Global, empresa
criada para gerir as lotarias e jogos de apostas no mercado externo e que foi
alvo de auditoria da BDO. A empresa, detida a 100% pela SCML, foi constituída
em setembro de 2020, com o capital social de cerca de cinco milhões de
euros. Para avançar com o processo de internacionalização, criaram-se várias
subsidiárias, entre as quais a Ainigma Holdings, a SCG Moçambique, a SCG Brasil e a DF HD, nas
quais a Santa Casa Global tem a participação de 26%, 85% e 100% (no caso das
últimas duas), respetivamente. O despacho ministerial determinava que a
sociedade a constituir devia ter sede na União Europeia (UE) e que a atividade
internacional se devia iniciar pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP).
De acordo com a auditoria (ainda provisória), as transferências financeiras da
SCML para a Santa Casa Global, entre 2020 e julho de 2023,
ascendiam a 31,44 milhões de euros, dos quais 2,44 milhões para
a SCG Moçambique, 8,21 milhões de
euros para o grupo Anigma e 15 milhões para a SCG Brasil. A este total, devem ser somados 17,59 milhões de euros de garantias prestadas
para empréstimos bancários e para contas correntes caucionadas.
No tocante às despesas correntes, a saúde, que representa a
segunda maior fatia (24,2% do montante total) nos gastos da SCML, subiu de forma expressiva. Saltou 36,4%, face a 2017, e 20%,
só em 2022, atingindo os 25,1 milhões. Os prejuízos crónicos das unidades de
saúde da Santa Casa, que eram, antes da pandemia, disfarçados pelas fortes receitas
dos jogos sociais, chamam a atenção para área, com a atual administração a
alertar que “as participações na área da saúde não estão sustentadas em
avaliações e estratégias racionais, claras e sustentáveis”. Só neste
ano, o governo anterior aprovou dois contratos, que totalizam cerca de 16
milhões de euros, no âmbito de acordos de cooperação com a SCML. Em causa está
o pagamento adicional de 11,149 milhões de euros, para o SNS usar os serviços
do centro de reabilitação de Alcoitão, e cinco milhões de euros, para o Hospital
Ortopédico de Sant’Ana.
Face à debilidade financeira da SCML, a administração delineou um conjunto
de “orientações e decisões” para levar a cabo em 2023 e 2024, a
fim de “assegurar a solvabilidade financeira imediata” e prometia “iniciar um processo de reformas com a finalidade de alcançar a
sustentabilidade a médio e longo prazos”, sem comprometer a atividade
assistencial “aos mais vulneráveis”, como aponta o Plano de Orçamento e
Atividades 2024. Contudo, o governo julga tais medidas insuficientes e acusa a
mesa de incapacidade e de atuação em proveito próprio.
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Espera-se que a nova gestão faça melhor e que não fiquemos em discussões de
lana caprina.
2024.05.08 – Louro de Carvalho
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