quarta-feira, 8 de maio de 2024

Venha daí, então, uma equipa competente para gerir a SCML

 

Na sequência de requerimento da Iniciativa e Liberal (IL), arrancou, a 8 de maio, na comissão parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, uma série de audições “urgentes” a personalidades das gestões anterior e atual da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (CSML). 

O primeiro a ser ouvido foi o anterior provedor, Edmundo Martinho, cuja gestão tem estado no epicentro da polémica, pelo investimento no processo de internacionalização dos jogos sociais, cujas perdas rondam cerca de 50 milhões de euros.

O ex-provedor considerou previsível o afastamento da sucessora cujo trabalho criticou. “As opções tomadas repercutiram-se negativamente na Santa Casa. E não se conhece uma estratégia para este desequilíbrio entre as receitas e as despesas”, acusou, referindo-se às irregularidades denunciadas pela então provedora na Santa Casa Global, o que resultou na interrupção dos negócios internacionais da SCML. “É normal que, durante um período, houvesse resultados negativos. Funciona assim. São processos que implicam investimentos, nomeadamente na rede de distribuição. Isto estava tudo previsto. Foi a interrupção abrupta do investimento que trouxe os resultados negativos”, afirmou Edmundo Martinho, vincando que a internacionalização é um caminho correto para a SCML. E garantiu que toda a sua ação fora articulada com a tutela.

Quem também já foi ouvida, na comissão, foi a vice-provedora demissionária, que admitiu não haver propriamente “um plano robusto” para obviar às dificuldades financeiras da instituição, mas foram tomadas medidas urgentes, como a redução dos cargos de chefia. “Quando cheguei, havia chefias sem equipa. Eram chefes deles próprios”, declarou Ana Vitória Azevedo, frisando que havia “um conjunto de medidas de sustentabilidade financeira para 2023 e 2024”. No fundo, “eram medidas urgentes”, com vista a “regularizar” as contas da instituição.

Entre as medidas tomadas esteve o corte de “15% do número de cargos”, nomeadamente “uma redução de 40 cargos de dirigentes” em 2023, com um valor de um milhão de euros.

Adiantou que, obviar aos elevados custos de pessoal, foi suspensa a contratação de funcionários sem licença e que  “era urgente de aplicar, na Santa Casa, o acordo de empresa alcançado”Além disso, como “era impensável que os trabalhadores tivessem tanto tempo sem atualizações salariais”, a subida de salários “era fundamental” para a “paz social” da SCML.

Criticou duramente a atual ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, acentuando que “tem todo o direito de mudar a gestão” da SCML, mas não “não tem o direito de dizer coisas que não são verdadeiras”, aludindo ao facto de Ana Paula Ramalho ter referido que só foram cortados 19 dirigentes e que Ana Jorge e a restante mesa retiram benefício próprio, através de aumentos salariais. “O único aumento resultou da aplicação do Estatuto do Gestor Público e foi decretado, não pelos órgãos da Santa Casa, mas pelo anterior governo. […] A mesa não teve nenhum benefício para si”, assegurou, considerando que a “acusação é grave”.

Sobre o processo de internacionalização dos jogos sociais, a ex-vice-provedora disse que “não estava contra”, mas mostrou “reservas e divergências”, nomeadamente sobre a “maneira pouco cautelosa com que o projeto estava a ser executado”, recusando, no entanto, que que este processo esteja na origem dos problemas da Santa Casa. Por outro lado, considerou ainda “extemporânea” a divulgação das conclusões preliminares da auditoria externa, feita pela BDO, ao processo de internacionalização, dado que a investigação ainda estava em curso.

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A audição destas personalidades já dá o tom do sentido das declarações a prestar à comissão parlamentar. No entanto, o que se passa na SCML, que é grave, resulta de diferentes conceções de perspetiva estratégica e de gestão, assim como do que se passou com a pandemia de covid-19, que fragilizou todas as estruturas de vocação social e solidária.   

Entre as preocupações identificadas pela mesa, liderada pela provedora (agora exonerada) consta a “provável rutura de tesouraria”, pois, no final de 2023, foi estimado um défice de 25 milhões de euros e a necessidade de reforço de entre 55 milhões e 65 milhões, para “satisfazer compromissos inadiáveis, nomeadamente, despesas com pessoal”, de acordo com o Plano de Orçamento e Atividades 2024 da SCML. Tal situação levou a SCML a receber, em agosto de 2023, uma transferência do Instituto da Segurança Social (ISS) de cerca de 34 milhões de euros, de uma dívida “com utentes em estruturas residenciais para idosos durante a pandemia”, o que equilibrou as contas de 2023, ano em que terá registado um resultado líquido positivo de 10 milhões de euros. Todavia, os problemas financeiros vinham da anterior administração, de Edmundo Martinho, que exerceu funções entre 2017 e o final de março de 2023.

O ponto de viragem da saúde financeira da instituição fundada em 1498 (mais do que pentassecular) coincidiu com o primeiro ano de pandemia, com a SCML a passar de lucro a prejuízo. Em 2020, passou do lucro de 37,5 milhões de euros, em 2019, para o prejuízo de 52,8 milhões de euros. Em 2021, o prejuízo foi de 39,8 milhões e, em 2022, de 12,4 milhões.

Em 2022, as contas foram corrigidas na sequência da auditoria, dado que o primeiro relatório apontava para lucros de 10,9 milhões. Nos relatórios e contas, a SCML justificava os prejuízos com as “perdas de imparidade associadas às perdas de valor decorrentes dos negócios de internacionalização e pela redução do justo valor das propriedades arrendadas”.

A situação financeira foi agravada por saldos correntes deficitários, com as despesas a excederem as receitas. Em 2022, o défice do saldo corrente atingiu os 11,31 milhões de euros e o orçamentado para 2023 foi quase o triplo, mais de 33 milhões negativos. A análise às contas mostra a tendência recorrente para orçamentação otimista das receitas, que, em 2021 e em 2022, ficaram abaixo do previsto. Em 2021, ficaram 14% abaixo do orçamentado e, em 2022, ficaram 17% abaixo do orçamentado. E, se a receita desapontou, a despesa corrente foi crescendo. Em 2022, atingiu 252,5 milhões de euros em 2022, um aumento de quase 20%, face aos 211,1 milhões de euros de 2017, quando Edmundo Martinho subiu a provedor. Esta rubrica aumentou entre 2017 e 2021, tendo recuado, ligeiramente, em 2022 (menos 2,8 milhões de euros, face a 2021, uma quebra de 1,1%).

Os saldos de capital também foram negativos entre 2020 e 2022, tendo sido orçamentado, para 2023, um valor positivo de 33,25 milhões de euros, ambição sustentada numa estimativa de receitas de capital de 62,5 milhões, através da venda de imóveis. A última estimativa para o saldo de capital era, afinal, de um défice de 26,1 milhões.

O Plano de Orçamento e Atividades para 2024, da atual administração, que refere “preocupante situação económico-financeira” da SCML, identificou previsões excessivas nos orçamentos de receitas, como vendas de imóveis de valor elevado, que permitiam inscrever dotações de despesas sem cobertura em disponibilidades reais

Foi também no final do primeiro ano de pandemia que a SCML adquiriu uma participação de 55% na sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), o que pesou nas contas. A SCML queria tornar-se acionista único do hospital, estando acordada, numa segunda fase, a aquisição dos restantes 45% do capital social à Parpública, o que não de realizou.

Outra das preocupações da mesa fazia mira às garantias bancárias prestadas pela SCML, que, no fim de junho de 2023, ascendiam a 30,4 milhões de euros, dos quais 13,8 e 14,1 milhões de euros aos passivos bancários do HCVP da Santa Casa Global, respetivamente. E, em 2022, o HCVP continuava com situação financeira precária, com um capital próprio de 1,9 milhões, ainda assim melhor do que no ano anterior, com um “buraco” de 7,1 milhões.

A principal fonte de receitas da SCML são os jogos sociais, que representavam, em 2022, cerca de 81% do total da receita corrente, ascendendo a 195 milhões de euros. Porém, apesar de esta rubrica ter aumentado cerca de 4,6%, face aos 186,5 milhões registados em 2021, ficaram longe dos 208,5 milhões de euros estimados e dos resultados da pré-pandemia (em 2019 chegaram aos 226,1 milhões). E, embora tenha o exclusivo da exploração dos jogos, a instituição só recebe 26,52% das receitas líquidas geradas, sendo o remanescente dividido pelos demais beneficiários.

As despesas com pessoal representam 63% das receitas. Em 2022, a SCML contava com 6080 funcionários, ligeiro recuo, face aos 6204 de 2021. Só que no período de Edmundo Martinho como provedor, entraram cerca de mais mil trabalhadores, já que, em 2017, eram cerca de cinco mil. Para 2024, a atual administração projetava um total de 6074 trabalhadores.

Outra questão levantada é a do elevado número de chefias. A mesa estima que 488 desempenhem estes cargos, dos quais 279 cargos de dirigente, 107 cargos de diretor de estabelecimento e 102 cargos de chefia direta. Face a 2023, a única diferença, neste âmbito, diz respeito a cargos de dirigente: eram 281 (menos dois face a 2024). Ainda assim, já foram bem mais os funcionários em cargos chefia. Em 2020, eram 556, dos quais 348 dirigentes.

O peso das despesas com pessoal, que, em 2022, representava 63% das receitas totais, devido à grande dimensão da estrutura, a excessivos níveis hierárquicos e a inúmeros cargos de chefia, é outras das preocupações apontada pela administração, no plano de atividades, considerando que esta circunstância limita “fortemente os recursos a afetar à atividade” da instituição.

Outro tema que tem gerado polémica é a internacionalização dos jogos sociais através da Santa Casa Global, empresa criada para gerir as lotarias e jogos de apostas no mercado externo e que foi alvo de auditoria da BDO. A empresa, detida a 100% pela SCML, foi constituída em setembro de 2020, com o capital social de cerca de cinco milhões de euros. Para avançar com o processo de internacionalização, criaram-se várias subsidiárias, entre as quais a Ainigma Holdings, a SCG Moçambique, a SCG Brasil e a DF HD, nas quais a Santa Casa Global tem a participação de 26%, 85% e 100% (no caso das últimas duas), respetivamente. O despacho ministerial determinava que a sociedade a constituir devia ter sede na União Europeia (UE) e que a atividade internacional se devia iniciar pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). 

De acordo com a auditoria (ainda provisória), as transferências financeiras da SCML para a Santa Casa Global, entre 2020 e julho de 2023, ascendiam a 31,44 milhões de euros, dos quais 2,44 milhões para a SCG Moçambique8,21 milhões de euros para o grupo Anigma e 15 milhões para a SCG Brasil. A este total, devem ser somados 17,59 milhões de euros de garantias prestadas para empréstimos bancários e para contas correntes caucionadas. 

No tocante às despesas correntes, a saúde, que representa a segunda maior fatia (24,2% do montante total) nos gastos da SCML, subiu de forma expressiva. Saltou 36,4%, face a 2017, e 20%, só em 2022, atingindo os 25,1 milhões. Os prejuízos crónicos das unidades de saúde da Santa Casa, que eram, antes da pandemia, disfarçados pelas fortes receitas dos jogos sociais, chamam a atenção para área, com a atual administração a alertar que “as participações na área da saúde não estão sustentadas em avaliações e estratégias racionais, claras e sustentáveis”. Só neste ano, o governo anterior aprovou dois contratos, que totalizam cerca de 16 milhões de euros, no âmbito de acordos de cooperação com a SCML. Em causa está o pagamento adicional de 11,149 milhões de euros, para o SNS usar os serviços do centro de reabilitação de Alcoitão, e cinco milhões de euros, para o Hospital Ortopédico de Sant’Ana.

Face à debilidade financeira da SCML, a administração delineou um conjunto de “orientações e decisões” para levar a cabo em 2023 e 2024, a fim de “assegurar a solvabilidade financeira imediata” e prometia “iniciar um processo de reformas com a finalidade de alcançar a sustentabilidade a médio e longo prazos”, sem comprometer a atividade assistencial “aos mais vulneráveis”, como aponta o Plano de Orçamento e Atividades 2024. Contudo, o governo julga tais medidas insuficientes e acusa a mesa de incapacidade e de atuação em proveito próprio.

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Espera-se que a nova gestão faça melhor e que não fiquemos em discussões de lana caprina.

2024.05.08 – Louro de Carvalho

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