Quem e como é Deus é a pergunta que os cristãos fazem
a si próprios e em Igreja e cuja resposta é mobilizadora para a contemplação do
mistério e para o rumo a dar à vida, segundo Deus.
Assim, a liturgia da Solenidade da Santíssima Trindade
insta-nos a mergulhar no mistério de Deus e a contemplar o Deus que, sendo
unidade, é família de três Pessoas em perfeita comunhão de amor. Por amor,
criou os homens e as mulheres; e, por amor, convida-os/as à vinculação a essa
comunidade de amor que é a família trinitária.
Em primeira
leitura (Dt 4,32-34.39-40),
Moisés convida Israel a descobrir o rosto e o coração de Deus, a partir da
contemplação das suas ações na História. O Deus em que Israel crê é o Deus
libertador, que ama os seus filhos, que está sempre disponível para os libertar
de tudo o que os escraviza, que acompanha cada passo do seu Povo e que lhe
deixa indicações seguras para ser feliz e para ter Vida em abundância.
Literariamente, o Deuteronómio
é um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab,
antes de o Povo atravessar o Jordão e entrar na Terra Prometida. Pressentindo a
proximidade da sua morte, Moisés deixa um testamento espiritual: lembra aos
Hebreus os compromissos para com Deus e convida-os a renovar a Aliança com
Javé.
O trecho em apreço é parte do primeiro desses
discursos (cf Dt 1,6-4,43).
Moisés começa, no discurso, por sintetizar a História do Povo, desde a
estada no Horeb/Sinai, até à chegada ao Nebo, na Transjordânia, frente a
Jericó; depois, propõe um resumo da Aliança e das suas exigências. Os teólogos
deuteronomistas sugerem, com esta sequência, que o compromisso pedido a Israel
se apoia nos acontecimentos históricos expostos. A ação de Deus ao longo da
caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.
O hagiógrafo deuteronomista convida Israel a
contemplar a História “desde o dia em que Deus criou o homem sobre a Terra”, para
ver se, no caminho histórico percorrido pela Humanidade, alguma vez apareceu um
deus que tenha feito tanto por alguém como Javé fez e faz pelo seu Povo.
Como ajuda à reflexão, o catequista elenca as ações de
Deus em prol de Israel, sem paralelo na História de outros povos. O
acontecimento central da História de Israel – a saga maravilhosa da libertação
da escravidão do Egito – tem lugar de destaque. O Senhor escutou o clamor do
Povo, condenado à morte pelo poder do faraó; falou a Moisés, do meio da sarça-ardente
e confiou-lhe a tarefa da libertação; fez “tremendas maravilhas”, para
convencer o faraó a libertar os Hebreus, que estavam escravizados; lançou todo
o seu poder contra o faraó e venceu-o.
Todavia, a libertação do Egito não é ato isolado. Deus
continuou a multiplicar ações maravilhosas em benefício de Israel. No Sinai, fez
ouvir a sua voz, para instruir Israel e para o ajudar a viver de forma sábia e
justa; mais tarde, aquando da aproximação da Terra Prometida, desalojou povos
“mais numerosos e mais fortes”, para dar ao seu Povo um lar. Com este elenco de
“obras”, o catequista conclui que “nunca nenhum deus fez o que nós vimos Javé
fazer por nós”.
Os gestos de Deus em favor de Israel mostram um padrão
de ser e de agir: o Deus que agiu assim, no passado, agirá assim, no futuro. Todas
as intervenções de Javé na História O definem como Deus compassivo, cheio de
misericórdia, que se interessa pelo seu Povo e que o acompanha no caminho,
sempre disposto a intervir, para salvar e para dar Vida. O Deus de Israel é o
Deus que quer estabelecer laços familiares com o seu Povo, que pretende criar
com Israel uma História de amor e de relação.
Por tudo isto, Israel deve reconhecer que “só o Senhor
é Deus e que não há outro”. Com efeito, d’Ele e só d’Ele brotam a Vida, a
salvação, a felicidade, a liberdade. Por conseguinte, o Povo não deve pôr a sua
esperança e a sua realização noutros deuses, que nem existem. Por outro lado,
Israel deve viver em consonância com as leis e mandamentos de Deus. Este caminho
não é de dependência e de servidão, mas de felicidade. Deus não se imiscui na
vida dos homens para os tornar dependentes, mas para os libertar e para os
levar à Vida verdadeira.
***
O Evangelho
(Mt 28,16-20) mostra Jesus a
despedir-Se dos discípulos e enviá-los a todas as nações como testemunhas da
salvação, para ensinarem tudo o que aprenderam de Jesus e para batizarem, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, todos os que se mostrarem
disponíveis para integrar a família de Deus, a comunidade trinitária.
Estamos na Galileia, após a ressurreição (embora não
se diga se é muito ou pouco tempo após a visão do túmulo vazio). Segundo
Mateus, Jesus, antes de ser preso, havia marcado encontro com os discípulos na
Galileia; e, na manhã da Páscoa, tanto o anjo que falou às mulheres no sepulcro,
como o próprio Jesus, vivo e ressuscitado, renovaram o convite a que os
discípulos se dirigissem à Galileia, a fim de lá encontrarem o Senhor.
A Galileia, território setentrional da Palestina, era região
próspera e bem povoada, de solo fértil e bem cultivado. A sua situação
geográfica tornava-a ponto de encontro de muitos povos, pelo que importante número
de pagãos fazia parte da sua população. A coabitação de pagãos e não pagãos
fazia com que os Judeus da Galileia vivessem a religião de modo diferente dos da
Judeia e, em particular, de Jerusalém. A presença dos pagãos levava os Galileus
a suavizar a prática da Lei e a interpretar menos rigidamente as regras
atinentes, por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os
não judeus. Isso fazia com que os Judeus de Jerusalém desprezassem os Galileus
e dissessem que da Galileia “não podia sair nada de bom”.
Contudo, foi na Galileia que Jesus começou a anunciar
o Reino de Deus, reuniu um grupo de discípulos e, ao longo de quase três anos,
propôs o Reino com palavras e gestos. Depois, foi até Jerusalém, para enfrentar
as autoridades e para morrer. E, vencida a violência do sistema e a morte,
voltou à Galileia, para retomar o projeto do Reino. Ao relevar a Galileia, Mateus
sugere a dimensão universal do anúncio libertador de Jesus: destina-se a Judeus
e a Pagãos e é na Galileia e a partir de lá que o Evangelho de Jesus irá ao
encontro do Mundo.
O encontro final entre Jesus e os discípulos acontece
num “monte que Jesus lhes indicara”. Porém, o evangelista não o identifica. O monte
é, na cultura bíblica, o lugar onde Deus Se revela aos homens. No entanto, o
monte também aparece, nos sinóticos, como o lugar onde Jesus reúne os
discípulos, para lhes dar a sua lei ou para lhes apresentar as suas diretrizes,
como aconteceu no “monte das Bem-aventuranças” ou no “monte da Transfiguração”.
Esse “monte” não identificado para onde Jesus ressuscitado convoca os discípulos
será o “monte do Envio”: aí os discípulos recebem o mandato de irem anunciar o
Reino ao Mundo inteiro.
Segundo Mateus, os discípulos cumpriram a indicação
que receberam e dirigiram-se para a Galileia. Foi aí, no cimo de um monte, que
Jesus ressuscitado Se lhes manifestou.
Quando se encontraram com Jesus, os discípulos
adoraram-No. A adoração traduz o reconhecimento de Jesus como o “Kýrios”, o Senhor
que tem soberania sobre o Mundo e sobre a História, soberania confirmada pela
ressurreição, como vitória sobre a morte. Porém, a par da adoração, o
evangelista refere a dúvida (“alguns ainda duvidaram”), elemento que subsistia
na mente dos discípulos. A adoração e a dúvida traduzem o que muitos da
comunidade de Mateus sentiam ante o mistério de Jesus. De facto, a ressurreição
de Jesus é um mistério tão inacessível, à luz da lógica humana, como o da
Trindade. Só fazem sentido à luz da lógica de Deus.
Jesus toma a palavra para confirmar aos discípulos e à
comunidade de Mateus que é o “Kýrios”, o Senhor da História que derrotou a
morte e o mal e que tem poder universal (“todo o poder Me foi dado no céu e na
terra”). Jesus considera que o Pai Lhe outorgou esse poder e não quer exercê-lo
para dominar, mas para concretizar o desígnio salvador do Pai, passando a sua
missão por conduzir ao Pai todos os homens e mulheres.
É no exercício desse poder que Jesus envia os
discípulos em missão pelo Mundo: “Ide”. Assim, a Igreja é a comunidade de
enviados, cuja missão é testemunhar, no Mundo, a salvação que Jesus trouxe.
Contudo, os enviados devem estar cônscios de que não podem perder a referência
a Jesus: têm de continuar ligados a Ele como os ramos à videira. Só assim poderão
anunciar o que Jesus lhes mandou e não doutrinas ou opiniões próprias.
A missão confiada aos discípulos não é delimitada por quaisquer
fronteiras: destina-se a “todas as nações”, a todas as gentes, a todos os
corações. A sua dimensão é universal, pois o objetivo de Deus é reunir na sua
família todos os homens e mulheres. Faz sentido que este anúncio seja feito na
Galileia, terra onde Judeus e Pagãos vivem lado a lado.
Jesus define o método a usar pelos discípulos na
concretização da missão: começam por ensinar; depois, batizam os que escutaram
e acolheram o que lhes foi proposto. São as fases da iniciação cristã
conhecidas da comunidade de Mateus: primeiro, a catequese, cujo conteúdo são as
palavras e os gestos de Jesus; depois o batismo, quando os interpelados pela
Palavra proclamada estão devidamente informados acerca de Jesus. Quem é
batizado “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” fica vinculado à
comunidade trinitária. Concretiza-se assim o desígnio de Deus: dar a todos os
homens e mulheres a possibilidade de se integrarem na família de Deus Pai,
Filho e Espírito Santo. A missão dos enviados é a continuação da obra de Jesus:
reunir a Humanidade inteira na casa de Deus, no coração da Trindade.
A última afirmação de Jesus é a garantia de que estará
com os discípulos “até ao fim dos tempos”. No início do seu Evangelho, Mateus
apresentara Jesus como o “Emanuel” (“Deus connosco”); agora, na última cena, garante
que essa presença é realidade permanente, pois Jesus estará sempre com a Igreja
que peregrina na História (“Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos”). Assim,
a comunidade de Jesus, enviada ao Mundo a apresentar-lhe o projeto salvador do
Pai, contará sempre com a presença vivificante e reconfortante de Jesus, para a
ajudar a superar as crises e a ultrapassar as dificuldades da caminhada.
***
Na segunda
leitura (Rm 8,14-17), Paulo
pede aos que receberam o batismo que se deixem guiar pelo Espírito de Deus.
Animados pelo dinamismo do Espírito, serão membros da família de Deus e podem
chamar a Deus “Abbá” (papá). Deus será, para eles, o Pai cheio de amor, em cujo
colo se sentirão amados, protegidos e cuidados.
Deus, não quer ver-nos a viver “na carne”, pois significaria
andarmos por caminhos que não nos realizam, nem nos levam ao encontro da felicidade.
Assim, movido pelo seu amor, enviou-nos o seu Filho com a oferta de salvação e
de Vida. Quem adere e recebe o batismo, passa a viver a partir do novo dinamismo.
É a vida no Espírito, que nos situa na órbita de Deus. Passamos a viver – como
Jesus – em comunhão com Deus, atentos às suas indicações, em total obediência à
sua vontade. Então, Deus é, para nós, o Pai que nos recria e nos dá Vida. Integramos
a família de Deus. Já não somos servos a viver no medo do patrão ciumento e
exigente, que condena e castiga, mas filhos que Deus ama com amor infinito. Gratos
pela nova situação, com o coração cheio de ternura e de amor, chamamos a Deus
“Abbá” – palavra com que, familiarmente, as crianças se dirigem ao pai e que
pode traduzir-se como “papá” –, expressão de intimidade filial, que define a
relação familiar de amor, de confiança, de carinho.
A condição de filhos de Deus equipara-nos a Cristo.
Tornamo-nos herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo. A herança que nos está
reservada é a Vida plena e definitiva que Deus oferece aos que aceitam a
salvação e se propõem trilhar, com Cristo, a via do amor, da doação.
É belíssima a imagem de Deus que Paulo nos deixa na Carta
aos Romanos. Mostra-nos o Deus que nos ama e que nos quer integrados na sua
família. E nós, embalados pela sua ternura, cheios de confiança e de admiração,
chamamos-lhe “Abbá”. Belíssima fotografia de família!
***
O mistério da Santíssima Trindade, de um só Deus em três
pessoas (triuno ou unitrino), iguais e distintas, vinca a unidade e a
pluralidade (em comunhão) de Deus, comunhão que se expande para os seus filhos.
Porém, o mistério ou desígnio de Deus tem consequências para nós. Se somos seus
filhos, somos irmãos uns dos outros, o que exige a caminhada para a unidade e o
respeito pela diversidade. E, se o escopo é a comunhão com Deus, a comunhão
entre os irmãos tem de ser cada vez mais sólida, mais profunda e mais solidária.
Ninguém pode ficar para trás e ninguém pode ficar privado da sua liberdade.
Isto impõe que a Igreja seja inclusiva, não exclusivista. Isto impõe o
acolhimento de todos e o respeito por quem não queira aderir.
Graças à inefável liberalidade de Deus, cantamos com o
salmista veterotestamentário (Sl 33):
“A palavra do Senhor é reta, da fidelidade nascem as
suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão: a terra está cheia da
bondade do Senhor.
A palavra do Senhor criou os céus, o sopro da sua boca
os adornou.
Ele disse e tudo foi feito, Ele mandou e tudo foi
criado.
Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade, para libertar da morte as suas almas e os
alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor: Ele é o nosso amparo e
protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade, porque em Vós
esperamos, Senhor.”
E cantamos com a tradição eclesial e com João, o visionário
do Novo Testamento: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo (loa
trinitária), ao Deus que é, que era e que há de vir (Ap 1,8)!”
2024.05.26 – Louro de Carvalho
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