domingo, 26 de maio de 2024

O dogma da Trindade diz quem é Deus e tem implicações práticas

 

Quem e como é Deus é a pergunta que os cristãos fazem a si próprios e em Igreja e cuja resposta é mobilizadora para a contemplação do mistério e para o rumo a dar à vida, segundo Deus.

Assim, a liturgia da Solenidade da Santíssima Trindade insta-nos a mergulhar no mistério de Deus e a contemplar o Deus que, sendo unidade, é família de três Pessoas em perfeita comunhão de amor. Por amor, criou os homens e as mulheres; e, por amor, convida-os/as à vinculação a essa comunidade de amor que é a família trinitária.

Em primeira leitura (Dt 4,32-34.39-40), Moisés convida Israel a descobrir o rosto e o coração de Deus, a partir da contemplação das suas ações na História. O Deus em que Israel crê é o Deus libertador, que ama os seus filhos, que está sempre disponível para os libertar de tudo o que os escraviza, que acompanha cada passo do seu Povo e que lhe deixa indicações seguras para ser feliz e para ter Vida em abundância.

Literariamente, o Deuteronómio é um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o Jordão e entrar na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa um testamento espiritual: lembra aos Hebreus os compromissos para com Deus e convida-os a renovar a Aliança com Javé.

O trecho em apreço é parte do primeiro desses discursos (cf Dt 1,6-4,43).  Moisés começa, no discurso, por sintetizar a História do Povo, desde a estada no Horeb/Sinai, até à chegada ao Nebo, na Transjordânia, frente a Jericó; depois, propõe um resumo da Aliança e das suas exigências. Os teólogos deuteronomistas sugerem, com esta sequência, que o compromisso pedido a Israel se apoia nos acontecimentos históricos expostos. A ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

O hagiógrafo deuteronomista convida Israel a contemplar a História “desde o dia em que Deus criou o homem sobre a Terra”, para ver se, no caminho histórico percorrido pela Humanidade, alguma vez apareceu um deus que tenha feito tanto por alguém como Javé fez e faz pelo seu Povo.

Como ajuda à reflexão, o catequista elenca as ações de Deus em prol de Israel, sem paralelo na História de outros povos. O acontecimento central da História de Israel – a saga maravilhosa da libertação da escravidão do Egito – tem lugar de destaque. O Senhor escutou o clamor do Povo, condenado à morte pelo poder do faraó; falou a Moisés, do meio da sarça-ardente e confiou-lhe a tarefa da libertação; fez “tremendas maravilhas”, para convencer o faraó a libertar os Hebreus, que estavam escravizados; lançou todo o seu poder contra o faraó e venceu-o.

Todavia, a libertação do Egito não é ato isolado. Deus continuou a multiplicar ações maravilhosas em benefício de Israel. No Sinai, fez ouvir a sua voz, para instruir Israel e para o ajudar a viver de forma sábia e justa; mais tarde, aquando da aproximação da Terra Prometida, desalojou povos “mais numerosos e mais fortes”, para dar ao seu Povo um lar. Com este elenco de “obras”, o catequista conclui que “nunca nenhum deus fez o que nós vimos Javé fazer por nós”.

Os gestos de Deus em favor de Israel mostram um padrão de ser e de agir: o Deus que agiu assim, no passado, agirá assim, no futuro. Todas as intervenções de Javé na História O definem como Deus compassivo, cheio de misericórdia, que se interessa pelo seu Povo e que o acompanha no caminho, sempre disposto a intervir, para salvar e para dar Vida. O Deus de Israel é o Deus que quer estabelecer laços familiares com o seu Povo, que pretende criar com Israel uma História de amor e de relação.

Por tudo isto, Israel deve reconhecer que “só o Senhor é Deus e que não há outro”. Com efeito, d’Ele e só d’Ele brotam a Vida, a salvação, a felicidade, a liberdade. Por conseguinte, o Povo não deve pôr a sua esperança e a sua realização noutros deuses, que nem existem. Por outro lado, Israel deve viver em consonância com as leis e mandamentos de Deus. Este caminho não é de dependência e de servidão, mas de felicidade. Deus não se imiscui na vida dos homens para os tornar dependentes, mas para os libertar e para os levar à Vida verdadeira.

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Evangelho (Mt 28,16-20) mostra Jesus a despedir-Se dos discípulos e enviá-los a todas as nações como testemunhas da salvação, para ensinarem tudo o que aprenderam de Jesus e para batizarem, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, todos os que se mostrarem disponíveis para integrar a família de Deus, a comunidade trinitária.

Estamos na Galileia, após a ressurreição (embora não se diga se é muito ou pouco tempo após a visão do túmulo vazio). Segundo Mateus, Jesus, antes de ser preso, havia marcado encontro com os discípulos na Galileia; e, na manhã da Páscoa, tanto o anjo que falou às mulheres no sepulcro, como o próprio Jesus, vivo e ressuscitado, renovaram o convite a que os discípulos se dirigissem à Galileia, a fim de lá encontrarem o Senhor.

A Galileia, território setentrional da Palestina, era região próspera e bem povoada, de solo fértil e bem cultivado. A sua situação geográfica tornava-a ponto de encontro de muitos povos, pelo que importante número de pagãos fazia parte da sua população. A coabitação de pagãos e não pagãos fazia com que os Judeus da Galileia vivessem a religião de modo diferente dos da Judeia e, em particular, de Jerusalém. A presença dos pagãos levava os Galileus a suavizar a prática da Lei e a interpretar menos rigidamente as regras atinentes, por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. Isso fazia com que os Judeus de Jerusalém desprezassem os Galileus e dissessem que da Galileia “não podia sair nada de bom”.

Contudo, foi na Galileia que Jesus começou a anunciar o Reino de Deus, reuniu um grupo de discípulos e, ao longo de quase três anos, propôs o Reino com palavras e gestos. Depois, foi até Jerusalém, para enfrentar as autoridades e para morrer. E, vencida a violência do sistema e a morte, voltou à Galileia, para retomar o projeto do Reino. Ao relevar a Galileia, Mateus sugere a dimensão universal do anúncio libertador de Jesus: destina-se a Judeus e a Pagãos e é na Galileia e a partir de lá que o Evangelho de Jesus irá ao encontro do Mundo.

O encontro final entre Jesus e os discípulos acontece num “monte que Jesus lhes indicara”. Porém, o evangelista não o identifica. O monte é, na cultura bíblica, o lugar onde Deus Se revela aos homens. No entanto, o monte também aparece, nos sinóticos, como o lugar onde Jesus reúne os discípulos, para lhes dar a sua lei ou para lhes apresentar as suas diretrizes, como aconteceu no “monte das Bem-aventuranças” ou no “monte da Transfiguração”. Esse “monte” não identificado para onde Jesus ressuscitado convoca os discípulos será o “monte do Envio”: aí os discípulos recebem o mandato de irem anunciar o Reino ao Mundo inteiro.

Segundo Mateus, os discípulos cumpriram a indicação que receberam e dirigiram-se para a Galileia. Foi aí, no cimo de um monte, que Jesus ressuscitado Se lhes manifestou.

Quando se encontraram com Jesus, os discípulos adoraram-No. A adoração traduz o reconhecimento de Jesus como o “Kýrios”, o Senhor que tem soberania sobre o Mundo e sobre a História, soberania confirmada pela ressurreição, como vitória sobre a morte. Porém, a par da adoração, o evangelista refere a dúvida (“alguns ainda duvidaram”), elemento que subsistia na mente dos discípulos. A adoração e a dúvida traduzem o que muitos da comunidade de Mateus sentiam ante o mistério de Jesus. De facto, a ressurreição de Jesus é um mistério tão inacessível, à luz da lógica humana, como o da Trindade. Só fazem sentido à luz da lógica de Deus.

Jesus toma a palavra para confirmar aos discípulos e à comunidade de Mateus que é o “Kýrios”, o Senhor da História que derrotou a morte e o mal e que tem poder universal (“todo o poder Me foi dado no céu e na terra”). Jesus considera que o Pai Lhe outorgou esse poder e não quer exercê-lo para dominar, mas para concretizar o desígnio salvador do Pai, passando a sua missão por conduzir ao Pai todos os homens e mulheres.

É no exercício desse poder que Jesus envia os discípulos em missão pelo Mundo: “Ide”. Assim, a Igreja é a comunidade de enviados, cuja missão é testemunhar, no Mundo, a salvação que Jesus trouxe. Contudo, os enviados devem estar cônscios de que não podem perder a referência a Jesus: têm de continuar ligados a Ele como os ramos à videira. Só assim poderão anunciar o que Jesus lhes mandou e não doutrinas ou opiniões próprias.

A missão confiada aos discípulos não é delimitada por quaisquer fronteiras: destina-se a “todas as nações”, a todas as gentes, a todos os corações. A sua dimensão é universal, pois o objetivo de Deus é reunir na sua família todos os homens e mulheres. Faz sentido que este anúncio seja feito na Galileia, terra onde Judeus e Pagãos vivem lado a lado.

Jesus define o método a usar pelos discípulos na concretização da missão: começam por ensinar; depois, batizam os que escutaram e acolheram o que lhes foi proposto. São as fases da iniciação cristã conhecidas da comunidade de Mateus: primeiro, a catequese, cujo conteúdo são as palavras e os gestos de Jesus; depois o batismo, quando os interpelados pela Palavra proclamada estão devidamente informados acerca de Jesus. Quem é batizado “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” fica vinculado à comunidade trinitária. Concretiza-se assim o desígnio de Deus: dar a todos os homens e mulheres a possibilidade de se integrarem na família de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. A missão dos enviados é a continuação da obra de Jesus: reunir a Humanidade inteira na casa de Deus, no coração da Trindade.

A última afirmação de Jesus é a garantia de que estará com os discípulos “até ao fim dos tempos”. No início do seu Evangelho, Mateus apresentara Jesus como o “Emanuel” (“Deus connosco”); agora, na última cena, garante que essa presença é realidade permanente, pois Jesus estará sempre com a Igreja que peregrina na História (“Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos”). Assim, a comunidade de Jesus, enviada ao Mundo a apresentar-lhe o projeto salvador do Pai, contará sempre com a presença vivificante e reconfortante de Jesus, para a ajudar a superar as crises e a ultrapassar as dificuldades da caminhada.

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Na segunda leitura (Rm 8,14-17), Paulo pede aos que receberam o batismo que se deixem guiar pelo Espírito de Deus. Animados pelo dinamismo do Espírito, serão membros da família de Deus e podem chamar a Deus “Abbá” (papá). Deus será, para eles, o Pai cheio de amor, em cujo colo se sentirão amados, protegidos e cuidados.

Deus, não quer ver-nos a viver “na carne”, pois significaria andarmos por caminhos que não nos realizam, nem nos levam ao encontro da felicidade. Assim, movido pelo seu amor, enviou-nos o seu Filho com a oferta de salvação e de Vida. Quem adere e recebe o batismo, passa a viver a partir do novo dinamismo. É a vida no Espírito, que nos situa na órbita de Deus. Passamos a viver – como Jesus – em comunhão com Deus, atentos às suas indicações, em total obediência à sua vontade. Então, Deus é, para nós, o Pai que nos recria e nos dá Vida. Integramos a família de Deus. Já não somos servos a viver no medo do patrão ciumento e exigente, que condena e castiga, mas filhos que Deus ama com amor infinito. Gratos pela nova situação, com o coração cheio de ternura e de amor, chamamos a Deus “Abbá” – palavra com que, familiarmente, as crianças se dirigem ao pai e que pode traduzir-se como “papá” –, expressão de intimidade filial, que define a relação familiar de amor, de confiança, de carinho.

A condição de filhos de Deus equipara-nos a Cristo. Tornamo-nos herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo. A herança que nos está reservada é a Vida plena e definitiva que Deus oferece aos que aceitam a salvação e se propõem trilhar, com Cristo, a via do amor, da doação.

É belíssima a imagem de Deus que Paulo nos deixa na Carta aos Romanos. Mostra-nos o Deus que nos ama e que nos quer integrados na sua família. E nós, embalados pela sua ternura, cheios de confiança e de admiração, chamamos-lhe “Abbá”. Belíssima fotografia de família!

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O mistério da Santíssima Trindade, de um só Deus em três pessoas (triuno ou unitrino), iguais e distintas, vinca a unidade e a pluralidade (em comunhão) de Deus, comunhão que se expande para os seus filhos. Porém, o mistério ou desígnio de Deus tem consequências para nós. Se somos seus filhos, somos irmãos uns dos outros, o que exige a caminhada para a unidade e o respeito pela diversidade. E, se o escopo é a comunhão com Deus, a comunhão entre os irmãos tem de ser cada vez mais sólida, mais profunda e mais solidária. Ninguém pode ficar para trás e ninguém pode ficar privado da sua liberdade. Isto impõe que a Igreja seja inclusiva, não exclusivista. Isto impõe o acolhimento de todos e o respeito por quem não queira aderir.   

Graças à inefável liberalidade de Deus, cantamos com o salmista veterotestamentário (Sl 33):

“A palavra do Senhor é reta, da fidelidade nascem as suas obras.

Ele ama a justiça e a retidão: a terra está cheia da bondade do Senhor.

A palavra do Senhor criou os céus, o sopro da sua boca os adornou.

Ele disse e tudo foi feito, Ele mandou e tudo foi criado.

Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem, para os que esperam na sua bondade, para libertar da morte as suas almas e os alimentar no tempo da fome.

A nossa alma espera o Senhor: Ele é o nosso amparo e protetor.

Venha sobre nós a vossa bondade, porque em Vós esperamos, Senhor.”

E cantamos com a tradição eclesial e com João, o visionário do Novo Testamento: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo (loa trinitária), ao Deus que é, que era e que há de vir (Ap 1,8)!”

2024.05.26 – Louro de Carvalho

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