sexta-feira, 24 de maio de 2024

O ex-primeiro-ministro foi ouvido como declarante pelo DCIAP

 

António Costa foi ouvido, a 24 de maio, pelo Departamento Central e Investigação e Ação Penal (DCIAP), mas na qualidade de declarante, não de arguido. Segundo avançou o Expresso, a equipa do Ministério Público (MP) que está com a Operação Influencer, ora liderada pela procuradora Rita Madeira, decidiu ceder ao pedido do antigo chefe de governo e ex-líder socialista para ser ouvido no processo em que foi identificado como suspeito de crime de prevaricação. A audição demorou cerca de hora e meia e não lhe foi perguntado nada que não seja já conhecido do público. Nem tão pouco foi referido termo ‘prevaricação’, o crime de que, alegadamente, é suspeito.

A 2 de abril, António Costa pedia para ser ouvido, “com a maior celeridade possível”, pela Justiça. “Dei instruções para, hoje mesmo, [o advogado] apresentar o requerimento junto do senhor coordenador do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça [STJ], para que possam proceder à minha audição, para se esclarecer qualquer dúvida que tenham”, disse, à saída da tomada de posse do Executivo de Luís Montenegro. Entretanto, o processo saiu da alçada do STJ para o DCIAP. “Não há nada pior do que haver uma suspeita e ela não ser esclarecida”, insistia António Costa, antes de acrescentar que, “agora, é tempo para que as suspeitas se esclareçam”.

Quinze dias depois destas declarações, o inquérito relativo às suspeitas que recaem sobre António Costa ‘ganhava’ uma magistrada responsável, a procuradora Rita Madeira, que coordena o combate à corrupção do DCIAP e que é responsável pelo processo de alegada corrupção na Madeira. A resposta do gabinete da PGR ocorria 24 horas depois de ser noticiado que o DCIAP ainda não tinha designado um procurador para ser titular do processo.

O ex-PM demitiu-se, a 7 de novembro, depois de o seu nome ter sido citado num comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre uma investigação judicial ao centro de dados de Sines e a negócios ligados ao lítio e hidrogénio.

“No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”, lia-se na nota da PGR, que levou António Costa a demitir-se de primeiro-ministro. 

António Costa sempre disse estar “totalmente disponível para colaborar com a Justiça” e reiterou que “quem está sujeito a uma suspeição pública”, como a que existia sobre si, “deve preservar as instituições”.

“Tendo em consideração as notícias que estão a ser divulgadas, confirmamos que o Dr. António Costa foi hoje ouvido na qualidade de declarante, na sequência do requerimento por si apresentado em 2 de abril de 2024. No âmbito da inquirição, prestou todos os esclarecimentos solicitados pelo Ministério Público, não tendo sido constituído arguido. Mantém-se, como até agora, totalmente disponível para colaborar em tudo o que o Ministério Público entender necessário”, segundo explicaram os advogados João Cluny e Diogo Serrano.

No início de maio, o DCIAP avisava que ainda não tinha encontrado “o momento processualmente adequado” para ouvir António Costa, no âmbito da Operação Infuencer, a que levou à sua demissão de primeiro-ministro (PM), a 7 de novembro.

De acordo com o artigo 86.º, n.º 14, do Código de Processo Penal (CPP), “se, através dos esclarecimentos públicos prestados nos termos dos números anteriores, for confirmado que a pessoa publicamente posta em causa assume a qualidade de suspeito, tem esta pessoa o direito de ser ouvida no processo, a seu pedido, num prazo razoável, que não deverá ultrapassar os três meses, com salvaguarda dos interesses da investigação”. E o ex-PM foi ouvido nesta qualidade.

António Costa é suspeito do crime de prevaricação, devido a uma lei alegadamente negociada entre João Tiago Silveira e João Galamba, para beneficiar Start Campus. Segundo o MP, o ex-PM é suspeito da alegada prática do crime de prevaricação devido à aprovação do novo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação no Conselho de Ministros, de 19 de outubro de 2023.

Em abril, o STJ decidiu entregar a investigação ao DCIAP. Ou seja, o processo de Costa passou para a primeira instância, igual a qualquer cidadão, perdendo o foro especial de PM. Mas estará a ser investigado de forma autónoma às restantes investigações que envolvem Vítor Escária, Diogo Lacerda de Machado e Rui de Oliveira Neves, embora os casos estejam relacionados.

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Há um pormenor para o qual importa chamar a atenção. Em entrevista ao Diário de Notícias (DN), publicada a 17 de maio, a ex-ministra da Justiça Francisca van Dunem, instada a pronunciar-se sobre a intervenção do MP no processo que levou à demissão de António Costa, escudou-se no dever de reserva, para não se pronunciar sobre o processo em concreto. Não obstante, considerou que qualquer pessoa que leve a política a sério, “que seja, de facto, um político que se preocupe com a imagem e a dignidade do cargo e com o bem comum, naquele contexto, se demitiria”.

Assim, à luz dos dados que tem da personalidade de António Costa, com quem trabalhou no 21.º e no 22.º governos constitucionais, “estranharia muito e ficaria mesmo muito surpreendida se ele não o fizesse”. Por isso, acha que, se um primeiro-ministro, determinada altura, é suspeito – “embora, em Portugal, não tenhamos a figura técnica de suspeito no Código de Processo Penal – aquilo que temos é um arguido”. E insistiu: “A partir do momento em que o primeiro-ministro é referido num comunicado, isso só pode significar que ele é arguido no processo. Porque se for suspeito, então não faz sentido referi-lo. Porque o suspeito não existe tecnicamente. Portanto, a partir do momento em que aparece uma referência pública, o que há é que o primeiro-ministro pode estar envolvido num processo e significará que há condições para o constituir arguido. E, nessa medida, penso que a dignidade da própria função imporia que qualquer pessoa de bem se retirasse.”

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Obviamente, não me pronuncio sobre a índole (técnica ou não) da condição de “suspeito”, prevista no CPP. Todavia, a entrevistada veio, do ponto de vista jurídico, deitar poeira para o ar. Com efeito, a condição de suspeito existe no CPP. E há suspeitos e há arguidos. O arguido tem direito a organizar a sua defesa e, se o entender, a arremeter-se ao silêncio; e o suspeito tem direito a ser ouvido, num prazo que não deve ultrapassar os três meses.   

Claramente, Van Dunem considera “fatal” o famoso parágrafo da nota da PGR: “Em termos objetivos, se houvesse, eventualmente, uma maior perceção dos deveres e até mesmo do posicionamento institucional dos vários intervenientes, seria perfeitamente percetível que aquilo iria acontecer.”

Depois, explica: “Se eu imagino, por exemplo, uma situação em que um procurador-geral da República tem notícia de que foi participado ou houve uma participação contra ele envolvendo a prática de um crime de corrupção e tem também notícia de que quem é competente para desencadear o procedimento considera que há ali razões para desencadear o procedimento, o que é que faz? Não se demite? Acho que sim, que se demite.”

A seguir, justifica: “Não é ele que está em causa, mas está em causa a instituição. Já temos o ambiente suficientemente envenenado, no que diz respeito à dignidade das instituições, no que diz respeito à própria utilidade das instituições e ao trabalho e serviço que elas devem prestar à sociedade na sua globalidade.”

E conclui: “Portanto, as pessoas que ocupam lugares nas instituições devem ter claramente uma preocupação com elas, mas em primeiro lugar preocupar-se em definir as instituições. E, às vezes, isso implica, em certas alturas, que as pessoas assumam o afastamento delas para não contaminarem.” E, por uma questão de cortesia (tem responsabilidades ao nível da sua nomeação), não se pronuncia sobre os atos da procuradora-geral da República, muito menos sobre um cenário em que, não vindo a ser constituído arguido o ex-PM, como é que ficará a situação da procuradora-geral da República.

Questionada sobre se “mantinha a escolha que fez na participação que teve no processo”, fugiu à questão e explanou: “Um PGR deve ser alguém que tenha competências técnicas do ponto de vista jurídico e que tenha competências de direção, porque é alguém que vai dirigir uma comunidade de magistrados, mas que também deve ter competências institucionais.”

 

Apesar de tudo, as declarações da ex-ministra relevam a imagem política de António Costa e insinuam um certo desconforto com a prestação da procuradora-geral. A questão pendente é se temos como consistente a figura do suspeito. Na prática, à luz do CPP, ela é relevante e distinta da do arguido. Não tem valor técnico?   

Quanto à atuação do MP, em relação ao então PM, tudo parece que as suspeitas não tinham consistência – sustenta-o a posição do juiz de instrução criminal e um acórdão do tribunal da Relação de Lisboa –, o que dá a entender que a ação do MP terá sido precipitada. Contudo, a PGR, contra tudo e contra todos, limita-se a garantir que a investigação prossegue, o que leva a questionar com que base, com que finalidade e se há novas expectativas. Para já, a única inferição a que se chega é que o poder judiciário, por iniciativa própria ou a rogo de alguém, deitou abaixo um governo, originou a dissolução da Assembleia da República, com a marcação de novas eleições, que deixaram o país em situação de muito difícil governabilidade.

Provavelmente, o partido do governo, de maioria absoluta, chegaria a 2026 totalmente desgastado e um outro partido ou coligação teria disposto de tempo para se constituir como alternativa de governação. É claro, quem estava sedento de poder aproveitou a oportunidade para subir. Pelo menos, já mudou o logótipo da República, colocou nova gente na administração pública e faz avançar as poucas medidas relativamente bem escritas, com sabor a pouco e inflacionadas pela propaganda. E o Presidente da República conseguiu ver no palco do poder executivo uma força partidária da sua família política.

Quanto a António Costa, por mais que digam querer empurrá-lo para um alto cargo europeu, não se crê que esteja disponível para isso, enquanto a sua situação na Justiça não estiver totalmente esclarecida, nem que a Europa lho solicitasse. Quem lhe conhece a ambição também lhe conhece os pruridos.       

2024.05.24 – Louro de Carvalho

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