António Costa foi ouvido, a 24 de maio, pelo Departamento
Central e Investigação e Ação Penal (DCIAP), mas na qualidade de declarante,
não de arguido. Segundo avançou o Expresso, a equipa do Ministério Público (MP) que está com a Operação
Influencer, ora liderada pela procuradora Rita Madeira, decidiu ceder ao pedido
do antigo chefe de governo e ex-líder socialista para ser ouvido no
processo em que foi identificado como suspeito de crime de prevaricação. A
audição demorou cerca de hora e meia e não lhe foi perguntado nada que não seja
já conhecido do público. Nem tão pouco foi referido termo ‘prevaricação’, o
crime de que, alegadamente, é suspeito.
A 2 de abril, António Costa pedia para ser ouvido, “com a maior celeridade possível”, pela Justiça. “Dei
instruções para, hoje mesmo, [o advogado] apresentar o requerimento junto do
senhor coordenador do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça [STJ], para
que possam proceder à minha audição, para se esclarecer qualquer dúvida que
tenham”, disse, à saída da tomada de posse do Executivo de Luís Montenegro. Entretanto,
o processo saiu da alçada do STJ para o DCIAP. “Não há nada pior do que haver
uma suspeita e ela não ser esclarecida”, insistia António Costa,
antes de acrescentar que, “agora, é tempo para que as suspeitas se esclareçam”.
Quinze dias depois destas declarações, o inquérito
relativo às suspeitas que recaem sobre António Costa ‘ganhava’ uma magistrada
responsável, a procuradora Rita Madeira, que coordena o combate à corrupção do
DCIAP e que é responsável pelo processo de alegada corrupção na Madeira. A resposta do gabinete da PGR ocorria 24 horas depois
de ser noticiado que o DCIAP ainda não tinha designado um procurador para ser
titular do processo.
O ex-PM demitiu-se, a 7 de novembro, depois de o seu
nome ter sido citado num comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre
uma investigação judicial ao centro de dados de Sines e a negócios ligados ao
lítio e hidrogénio.
“No decurso das investigações
surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da
autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear
procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas
no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse
o foro competente”, lia-se na nota da PGR, que levou António Costa a demitir-se
de primeiro-ministro.
António Costa sempre disse estar “totalmente
disponível para colaborar com a Justiça” e reiterou que “quem está sujeito a
uma suspeição pública”, como a que existia sobre si, “deve preservar as instituições”.
“Tendo em consideração as notícias que estão a ser
divulgadas, confirmamos que o Dr. António Costa foi hoje ouvido na qualidade de
declarante, na sequência do requerimento por si apresentado em 2 de abril de
2024. No âmbito da inquirição, prestou todos os esclarecimentos solicitados
pelo Ministério Público, não tendo sido constituído arguido. Mantém-se, como
até agora, totalmente disponível para colaborar em tudo o que o Ministério
Público entender necessário”, segundo explicaram os advogados João Cluny e
Diogo Serrano.
No início de maio, o DCIAP avisava que ainda não tinha
encontrado “o momento processualmente adequado” para ouvir António Costa, no
âmbito da Operação Infuencer, a que levou à sua demissão de primeiro-ministro (PM),
a 7 de novembro.
De acordo com o artigo 86.º, n.º 14, do Código de
Processo Penal (CPP), “se, através dos esclarecimentos públicos prestados nos
termos dos números anteriores, for confirmado que a pessoa publicamente
posta em causa assume a qualidade de suspeito, tem esta pessoa o direito de ser
ouvida no processo, a seu pedido, num prazo razoável, que não deverá
ultrapassar os três meses, com salvaguarda dos interesses da investigação”. E o
ex-PM foi ouvido nesta qualidade.
António Costa é suspeito do crime de prevaricação, devido a uma lei alegadamente negociada
entre João Tiago Silveira e João Galamba, para beneficiar Start Campus. Segundo
o MP, o ex-PM é suspeito da alegada prática do crime de prevaricação devido à
aprovação do novo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação no Conselho de
Ministros, de 19 de outubro de 2023.
Em abril, o STJ decidiu entregar a investigação ao
DCIAP. Ou seja, o processo de Costa passou para a primeira instância, igual a
qualquer cidadão, perdendo o foro especial de PM. Mas estará a ser investigado
de forma autónoma às restantes investigações que envolvem Vítor Escária, Diogo
Lacerda de Machado e Rui de Oliveira Neves, embora os casos estejam relacionados.
***
Há um pormenor para o qual importa chamar a atenção. Em entrevista ao Diário de Notícias (DN), publicada a 17 de maio, a ex-ministra da Justiça Francisca van
Dunem, instada a pronunciar-se sobre a intervenção do MP no processo que levou
à demissão de António Costa, escudou-se no dever de reserva, para não se pronunciar
sobre o processo em concreto. Não
obstante, considerou que qualquer pessoa que leve a política a sério, “que seja,
de facto, um político que se preocupe com a imagem e a dignidade do cargo e com
o bem comum, naquele contexto, se demitiria”.
Assim, à luz
dos dados que tem da personalidade de António Costa, com quem trabalhou no 21.º
e no 22.º governos constitucionais, “estranharia muito e ficaria mesmo muito
surpreendida se ele não o fizesse”. Por isso, acha que, se um primeiro-ministro,
determinada altura, é suspeito – “embora, em Portugal, não tenhamos a figura
técnica de suspeito no Código de Processo Penal – aquilo que temos é um arguido”.
E insistiu: “A partir do momento em que o primeiro-ministro é referido num
comunicado, isso só pode significar que ele é arguido no processo. Porque se
for suspeito, então não faz sentido referi-lo. Porque o suspeito não existe
tecnicamente. Portanto, a partir do momento em que aparece uma referência
pública, o que há é que o primeiro-ministro pode estar envolvido num processo e
significará que há condições para o constituir arguido. E, nessa medida, penso
que a dignidade da própria função imporia que qualquer pessoa de bem se
retirasse.”
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Obviamente, não
me pronuncio sobre a índole (técnica ou não) da condição de “suspeito”,
prevista no CPP. Todavia, a entrevistada veio, do ponto de vista jurídico,
deitar poeira para o ar. Com efeito, a condição de suspeito existe no CPP. E há
suspeitos e há arguidos. O arguido tem direito a organizar a sua defesa e, se o
entender, a arremeter-se ao silêncio; e o suspeito tem direito a ser ouvido,
num prazo que não deve ultrapassar os três meses.
Claramente,
Van Dunem considera “fatal” o famoso parágrafo da nota da PGR: “Em termos
objetivos, se houvesse, eventualmente, uma maior perceção dos deveres e até
mesmo do posicionamento institucional dos vários intervenientes, seria
perfeitamente percetível que aquilo iria acontecer.”
Depois,
explica: “Se eu imagino, por exemplo, uma situação em que um procurador-geral
da República tem notícia de que foi participado ou houve uma participação
contra ele envolvendo a prática de um crime de corrupção e tem também notícia
de que quem é competente para desencadear o procedimento considera que há ali
razões para desencadear o procedimento, o que é que faz? Não se demite? Acho
que sim, que se demite.”
A seguir,
justifica: “Não é ele que está em causa, mas está em causa a instituição. Já
temos o ambiente suficientemente envenenado, no que diz respeito à dignidade
das instituições, no que diz respeito à própria utilidade das instituições e ao
trabalho e serviço que elas devem prestar à sociedade na sua globalidade.”
E conclui: “Portanto,
as pessoas que ocupam lugares nas instituições devem ter claramente uma
preocupação com elas, mas em primeiro lugar preocupar-se em definir as
instituições. E, às vezes, isso implica, em certas alturas, que as pessoas
assumam o afastamento delas para não contaminarem.” E, por uma questão de cortesia (tem
responsabilidades ao nível da sua nomeação), não se pronuncia sobre os atos da procuradora-geral da
República, muito menos sobre um cenário
em que, não vindo a ser constituído arguido o ex-PM, como é que ficará a
situação da procuradora-geral da República.
Questionada sobre se “mantinha a escolha que fez na participação que teve
no processo”, fugiu à questão e explanou: “Um PGR
deve ser alguém que tenha competências técnicas do ponto de vista jurídico e
que tenha competências de direção, porque é alguém que vai dirigir uma
comunidade de magistrados, mas que também deve ter competências institucionais.”
Apesar de
tudo, as declarações da ex-ministra relevam a imagem política de António Costa
e insinuam um certo desconforto com a prestação da procuradora-geral. A questão
pendente é se temos como consistente a figura do suspeito. Na prática, à luz do
CPP, ela é relevante e distinta da do arguido. Não tem valor técnico?
Quanto à atuação
do MP, em relação ao então PM, tudo parece que as suspeitas não tinham
consistência – sustenta-o a posição do juiz de instrução criminal e um acórdão
do tribunal da Relação de Lisboa –, o que dá a entender que a ação do MP terá
sido precipitada. Contudo, a PGR, contra tudo e contra todos, limita-se a garantir
que a investigação prossegue, o que leva a questionar com que base, com que
finalidade e se há novas expectativas. Para já, a única inferição a que se
chega é que o poder judiciário, por iniciativa própria ou a rogo de alguém, deitou
abaixo um governo, originou a dissolução da Assembleia da República, com a marcação
de novas eleições, que deixaram o país em situação de muito difícil governabilidade.
Provavelmente,
o partido do governo, de maioria absoluta, chegaria a 2026 totalmente
desgastado e um outro partido ou coligação teria disposto de tempo para se constituir
como alternativa de governação. É claro, quem estava sedento de poder
aproveitou a oportunidade para subir. Pelo menos, já mudou o logótipo da República,
colocou nova gente na administração pública e faz avançar as poucas medidas relativamente
bem escritas, com sabor a pouco e inflacionadas pela propaganda. E o Presidente
da República conseguiu ver no palco do poder executivo uma força partidária da
sua família política.
Quanto a
António Costa, por mais que digam querer empurrá-lo para um alto cargo europeu,
não se crê que esteja disponível para isso, enquanto a sua situação na Justiça não
estiver totalmente esclarecida, nem que a Europa lho solicitasse. Quem lhe
conhece a ambição também lhe conhece os pruridos.
2024.05.24 – Louro de Carvalho
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