sábado, 11 de maio de 2024

Que reforma da justiça em defesa do Estado de direito democrático?

 

A 1 de maio, pelo cinquentenário do 25 de Abril, 50 personalidades – oriundas dos partidos ditos do arco da governação, da magistratura (antigos magistrados), da advocacia e de independentes – subscreveram um manifesto de crítica aos aspetos ditos mais nefastos do sistema de justiça em Portugal, apelando à iniciativa política para “uma verdadeira reforma”. Priorizam a separação dos dois poderes e sugerem a uma “atitude pró-ativa” do poder político “na definição e execução da política de justiça”, como se a Justiça não fosse poder político, nos termos constitucionais, ao lado do Presidente da República (PR), da Assembleia da República (AR) e do Governo.  

Sem detrimento da sua autonomia, exigem a recondução do Ministério Público (MP) ao funcionamento hierárquico e o fim do exercício, por parte dos seus magistrados, de “um poder sem controlo” interno ou externo.

O Manifesto pede escrutínio externo e avaliação democrática independente do sistema judicial. Ao mesmo tempo, insta o PR, a AR e o Governo, bem como os partidos, a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de “uma reforma no setor da Justiça”, que deve ser assumida como “inequívoca prioridade na defesa do Estado de Direito democrático”, o qual está em causa, por “ser o setor do poder público” (aqui já é poder político) que evidencia mais problemas.

Sei que a Justiça (sobretudo da parte do MP) tem evidenciado problemas, mas não é o setor com mais problemas. A AR foi dissolvida 10 vezes, o PR é objeto de crítica generalizada e já vamos no 30.º governo (foram seis provisórios e 24 constitucionais, alguns bem curtos). Os casos e casinhos são muitos.

As “falhas” da Justiçam, em nada compatíveis com “o Estado de Direito Democrático”, nem com “a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos” (comparativamente com outros países europeus), nem com “o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça”, constam dos 10 pontos do Manifesto. Para lá das “recorrentes quebras do segredo de justiça” que “boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais elementares direitos de muitos cidadãos”, o Manifesto denuncia “graves abusos na utilização de medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”. Em causa estão muitas escutas telefónicas prolongadas, buscas domiciliárias injustificadas e detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade, bem como a montagem do habitual espetáculo mediático nas intervenções do MP contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre as investigações em curso, que têm formatado a opinião pública para a ideia de que os titulares de cargos públicos são iguais e corruptos, até prova em contrário.

Segundo os subscritores, esta forma de atuar, com “contornos mais políticos do que judiciários”, tem produzido desgaste no regime e aberto “as portas ao populismo” e à demagogia. É tanto maior a perversidade quanto “os resultados práticos do combate à corrupção se reduzem, normalmente, ao insucesso e à incapacidade de combater tão grave fenómeno.

A passividade do país político face a esta realidade levou ao “penoso limite” de ver a ação do MP produzir a queda de duas maiorias parlamentares (AR e Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira) resultantes de eleições recentes, embora, em ambos os casos, os tribunais não tenham dado provimento e tenham contrariado a narrativa do MP. E o Manifesto considera “inconcebível” que, tendo decorrido “longos cinco meses” entre a demissão do primeiro-ministro (PM), na sequência do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a sua cessação de funções, o MP nem sequer se tenha dignado informá-lo sobre o objeto do inquérito, nem o tenha convocado para qualquer diligência processual.

Além de consubstanciarem indevida interferência na ação política, tais episódios não são conformes às exigências do Estado de Direito democrático. E, apesar da gravidade do sucedido, não houve consequência interna na condução das investigações e dos atos processuais, “por força de um funcionamento e de uma cultura de perfil corporativo” que predomina no MP.

Desta cultura corporativa e “da assumida desresponsabilização da procuradora-geral da República pelas investigações”, decorre que a política criminal, em vez de ser definida pelo poder político stricto sensu, nos termos constitucionais, é, na prática, executada por magistrados do MP, sem mandato constitucional, os quais exercem “um poder sem controlo” externo ou interno.

Apesar desta “perigosa realidade”, o Manifesto anota que, nem qualquer outro órgão de soberania, nem qualquer partido político relevante, têm mostrado vontade e coragem políticas para encetar a verdadeira reforma da Justiça. Por isso, a “um sobressalto cívico” da sociedade, no ano em que a democracia celebra os seus 50 anos, impelindo “os responsáveis políticos a assumirem as suas responsabilidades” e a levarem a cabo uma reforma que, respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do MP e as garantias de defesa judicial, resolva os “estrangulamentos e as disfunções” que minam a sua eficácia e a sua legitimação pública”, garantindo “efetiva separação entre o poder político e a justiça”.

 O Manifesto pretende que a reforma “não seja desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do sistema”, mas que tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático como eixos centrais das suas preocupações. Por isso, a primeira prioridade deve ser “garantir uma efetiva separação entre o poder político e a Justiça”, seguindo-se a “transparência” no funcionamento das instituições da Justiça, e a capacidade de os órgãos democraticamente eleitos “definirem a política criminal” e “controlarem a sua execução”.

Das outras prioridades avançadas pelo Manifesto, duas dirigem-se diretamente às magistraturas: reconduzir o MP ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o procurador-geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas; e reforçar os meios de avaliação efetiva e independente, no sistema judiciário, implementando mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente pela AR, exigindo os subscritores “ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação, quer na abertura da investigação penal, quer no uso dos meios de investigação especialmente intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias”, a fim de fazer prevalecer “o princípio constitucional da presunção de inocência”.

Fazer “cumprir, efetivamente, o segredo de justiça”, bem como “reduzir drasticamente a morosidade dos processos judiciais”, são outras prioridades. E o Manifesto termina, afirmando que “a melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir”, nos 50 anos da democracia, é reconhecer o que a está a fragilizar e, honrando o nome dos que por ela lutaram, “ter a coragem e a vontade de mudar”.

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A leitura do Manifesto permite ver que o regime carece de intervenções de caráter estrutural que lhe devolvam a plena capacidade para responder aos desafios da atualidade e que a reforma da Justiça aparece como prioritária, pois, além de ter de respeitar a Constituição, a sua ação deve ser entendida pelo Povo e, não o sendo, é a Justiça que falha. Essa incompreensão tem-se agravado nos últimos anos, minando a confiança no sistema judicial.

A morosidade, mormente na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal, é inadmissível na sociedade democrática, visto que põe em causa a realização da Justiça. As quebras do segredo de justiça, com a participação de parte da comunicação social, dão azo a julgamentos populares, boicotam a investigação e atropelam os mais elementares direitos de muitos cidadãos. Um regime que aceita tal procedimento perde parte significativa da autoridade moral ante aqueles de quem se quer distinguir, em termos éticos e de respeito pelos Direitos Humanos.

Assiste-se, na investigação penal, a abusos na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente com a proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias injustificadas e de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade, com o espetáculo das intervenções do MP contra agentes políticos. Este procedimento torna-se mais crítico, quando os resultados do combate à corrupção se reduzem ao insucesso e à incapacidade de combater tão grave fenómeno, por quem tem essa missão. E o Manifesto acentua o facto da demissão do PM, na sequência de um parágrafo num comunicado da PGR, sem que algum outro órgão de soberania tenha tomado posição crítica.

Ao invés dos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona à margem de escrutínio ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente administrada em nome do Povo. O sentimento de impunidade que a ineficácia do sistema transmite à sociedade é agravado pelo défice dos mecanismos de avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo descomprometido face ao aparelho judiciário.

O poder que, pelo sufrágio livre e democrático, os cidadãos delegam nos seus representantes para, em seu nome, definirem e executarem as diversas políticas setoriais, não encontra expressão efetiva no caso da política criminal, que incumbe, constitucionalmente, ao poder político stricto sensu, mas a sua execução, a cargo do MP, sem mandato constitucional, é feita sem controlo externo ou interno. Não obstante, não tem havido qualquer ação política com vista à verdadeira reforma da Justiça. Tem, antes, prevalecido a busca do pequeno ganho partidário imediato, em detrimento do interesse público, variando as posições em função da filiação partidária dos atingidos, como revelam as posições contraditórias assumidas nos casos que afetaram os governos da República e da Região Autónoma da Madeira. Face a esta inércia, quando a democracia celebra 50 anos, compete à sociedade um sobressalto cívico que leve os responsáveis políticos a elegerem a Justiça como “inequívoca prioridade na defesa do Estado de Direito Democrático”.

É necessária uma reforma que, acolhendo as legítimas aspirações dos agentes de Justiça, não seja desenhada à medida dos seus interesses corporativos, mas que tenha como prioridade o cidadão e a defesa do Estado de Direito, não ignorando prioridades evidentes, como: garantia da separação entre poder político e Justiça; combate à opacidade, reforçando a transparência das instituições da Justiça; respeito do poder de a coletividade, através dos legítimos representantes, definir a política criminal e controlar a sua execução, nos termos constitucionais; recondução do MP ao modelo constitucional hierárquico, tendo como vértice o procurador-geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas; reforço dos meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e mecanismos de escrutínio externo, designadamente por relatórios periódicos a apresentar à AR pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares; instituição e aplicação das exigências de ponderação, rigor, proporcionalidade e fundamentação, na abertura da investigação penal e no uso de meios de investigação intrusivos, como escutas e buscas domiciliárias, bem como na sua revisão periódica, fazendo prevalecer a presunção de inocência; cumprimento do segredo de justiça, aplicando a lei penal e as normas disciplinares contra a sua violação; minimização da morosidade dos processos judiciais, cumprindo o requisito da decisão em prazo razoável, segundo a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos; e melhoria a no direito de acesso à Justiça.

A máxima “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” proíbe a interferência de uma esfera na outra (vale para os dois lados), mas não subtrai aos órgãos eleitos a responsabilidade na definição e execução da política de Justiça. Antes, exige atitude pró-ativa a quem, em última instância, cabe a responsabilidade pelo funcionamento das instituições.

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O Manifesto (não o sobressalto civil), que é pertinente – por, não açaimando o MP, mas repondo-o no enquadramento constitucional e estatutário –, é tardio e, da parte de alguns, oportunista (Onde estavam, quando o MP começou a cometer os erros ora denunciados?). Previamente à reforma da Justiça, impõe-se que os magistrados respeitem e cumpram o respetivo estatuto. E a reforma não deve atingir só o MP. Todos os órgãos de soberania devem fazer autocrítica e sujeitar-se a escrutínio, que é imperativo para os órgãos cujo mandato não é limitado pelo voto popular.

2024.05.11 – Louro de Carvalho

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