A
1 de maio, pelo cinquentenário do 25 de Abril, 50 personalidades – oriundas dos
partidos ditos do arco da governação, da magistratura (antigos magistrados), da
advocacia e de independentes – subscreveram um manifesto de crítica aos aspetos
ditos mais nefastos do sistema de justiça em Portugal, apelando à iniciativa
política para “uma verdadeira reforma”. Priorizam a separação dos dois poderes
e sugerem a uma “atitude pró-ativa” do poder político “na definição e execução
da política de justiça”, como se a Justiça não fosse poder político, nos termos
constitucionais, ao lado do Presidente da República (PR), da Assembleia da
República (AR) e do Governo.
Sem
detrimento da sua autonomia, exigem a recondução do Ministério Público (MP) ao
funcionamento hierárquico e o fim do exercício, por parte dos seus magistrados,
de “um poder sem controlo” interno ou externo.
O
Manifesto pede escrutínio externo e avaliação democrática independente do
sistema judicial. Ao mesmo tempo, insta o PR, a AR e o Governo, bem como os
partidos, a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de “uma
reforma no setor da Justiça”, que deve ser assumida como “inequívoca prioridade
na defesa do Estado de Direito democrático”, o qual está em causa, por “ser o
setor do poder público” (aqui já é poder político) que evidencia mais problemas.
Sei
que a Justiça (sobretudo da parte do MP) tem evidenciado problemas, mas não é o
setor com mais problemas. A AR foi dissolvida 10 vezes, o PR é objeto de
crítica generalizada e já vamos no 30.º governo (foram seis provisórios e 24
constitucionais, alguns bem curtos). Os casos e casinhos são muitos.
As
“falhas” da Justiçam, em nada compatíveis com “o Estado de Direito
Democrático”, nem com “a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela
afetos” (comparativamente com outros países europeus), nem com “o respeito
pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça”, constam
dos 10 pontos do Manifesto. Para lá das “recorrentes quebras do segredo de
justiça” que “boicotam a investigação e atropelam de forma grosseira os mais
elementares direitos de muitos cidadãos”, o Manifesto denuncia “graves abusos
na utilização de medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos”. Em causa estão muitas escutas telefónicas prolongadas, buscas domiciliárias
injustificadas e detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade,
bem como a montagem do habitual espetáculo mediático nas intervenções do MP
contra agentes políticos, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre as
investigações em curso, que têm formatado a opinião pública para a ideia de que
os titulares de cargos públicos são iguais e corruptos, até prova em contrário.
Segundo
os subscritores, esta forma de atuar, com “contornos mais políticos do que
judiciários”, tem produzido desgaste no regime e aberto “as portas ao
populismo” e à demagogia. É tanto maior a perversidade quanto “os resultados
práticos do combate à corrupção se reduzem, normalmente, ao insucesso e à
incapacidade de combater tão grave fenómeno.
A
passividade do país político face a esta realidade levou ao “penoso limite” de ver
a ação do MP produzir a queda de duas maiorias parlamentares (AR e Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira) resultantes de eleições recentes,
embora, em ambos os casos, os tribunais não tenham dado provimento e tenham contrariado
a narrativa do MP. E o Manifesto considera “inconcebível” que, tendo decorrido
“longos cinco meses” entre a demissão do primeiro-ministro (PM), na sequência
do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a sua cessação de
funções, o MP nem sequer se tenha dignado informá-lo sobre o objeto do
inquérito, nem o tenha convocado para qualquer diligência processual.
Além
de consubstanciarem indevida interferência na ação política, tais episódios não
são conformes às exigências do Estado de Direito democrático. E, apesar da
gravidade do sucedido, não houve consequência interna na condução das investigações
e dos atos processuais, “por força de um funcionamento e de uma cultura de
perfil corporativo” que predomina no MP.
Desta
cultura corporativa e “da assumida desresponsabilização da procuradora-geral da
República pelas investigações”, decorre que a política criminal, em vez de ser
definida pelo poder político stricto
sensu, nos termos constitucionais, é, na prática, executada por magistrados
do MP, sem mandato constitucional, os quais exercem “um poder sem controlo”
externo ou interno.
Apesar
desta “perigosa realidade”, o Manifesto anota que, nem qualquer outro órgão de
soberania, nem qualquer partido político relevante, têm mostrado vontade e
coragem políticas para encetar a verdadeira reforma da Justiça. Por isso, a “um
sobressalto cívico” da sociedade, no ano em que a democracia celebra os seus 50
anos, impelindo “os responsáveis políticos a assumirem as suas
responsabilidades” e a levarem a cabo uma reforma que, respeitando
integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do MP e as garantias
de defesa judicial, resolva os “estrangulamentos e as disfunções” que minam a
sua eficácia e a sua legitimação pública”, garantindo “efetiva separação entre
o poder político e a justiça”.
O Manifesto pretende que a reforma “não seja
desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do
sistema”, mas que tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático
como eixos centrais das suas preocupações. Por isso, a primeira prioridade deve
ser “garantir uma efetiva separação entre o poder político e a Justiça”,
seguindo-se a “transparência” no funcionamento das instituições da Justiça, e a
capacidade de os órgãos democraticamente eleitos “definirem a política
criminal” e “controlarem a sua execução”.
Das
outras prioridades avançadas pelo Manifesto, duas dirigem-se diretamente às
magistraturas: reconduzir o MP ao modelo constitucional do seu funcionamento
hierárquico, tendo como vértice o procurador-geral da República,
responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho
profissional das equipas; e reforçar os meios de avaliação efetiva e
independente, no sistema judiciário, implementando mecanismos de escrutínio
democrático externo, designadamente pela AR, exigindo os subscritores “ponderação,
rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação, quer na abertura da
investigação penal, quer no uso dos meios de investigação especialmente
intrusivos como as escutas e as buscas domiciliárias”, a fim de fazer prevalecer
“o princípio constitucional da presunção de inocência”.
Fazer
“cumprir, efetivamente, o segredo de justiça”, bem como “reduzir drasticamente
a morosidade dos processos judiciais”, são outras prioridades. E o Manifesto termina,
afirmando que “a melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir”, nos 50
anos da democracia, é reconhecer o que a está a fragilizar e, honrando o nome
dos que por ela lutaram, “ter a coragem e a vontade de mudar”.
***
A
leitura do Manifesto permite ver que o regime carece de intervenções de caráter
estrutural que lhe devolvam a plena capacidade para responder aos desafios da
atualidade e que a reforma da Justiça aparece como prioritária, pois, além de
ter de respeitar a Constituição, a sua ação deve ser entendida pelo Povo e, não
o sendo, é a Justiça que falha. Essa incompreensão tem-se agravado nos últimos
anos, minando a confiança no sistema judicial.
A
morosidade, mormente na jurisdição administrativa e tributária e na
investigação criminal, é inadmissível na sociedade democrática, visto que põe
em causa a realização da Justiça. As quebras do segredo de justiça, com a
participação de parte da comunicação social, dão azo a julgamentos populares,
boicotam a investigação e atropelam os mais elementares direitos de muitos
cidadãos. Um regime que aceita tal procedimento perde parte significativa da
autoridade moral ante aqueles de quem se quer distinguir, em termos éticos e de
respeito pelos Direitos Humanos.
Assiste-se,
na investigação penal, a abusos na utilização de medidas fortemente restritivas
dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente com a
proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias
injustificadas e de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa
legalidade, com o espetáculo das intervenções do MP contra agentes políticos. Este
procedimento torna-se mais crítico, quando os resultados do combate à corrupção
se reduzem ao insucesso e à incapacidade de combater tão grave fenómeno, por
quem tem essa missão. E o Manifesto acentua o facto da demissão do PM, na
sequência de um parágrafo num comunicado da PGR, sem que algum outro órgão de
soberania tenha tomado posição crítica.
Ao
invés dos os demais poderes constitucionais, a Justiça funciona à margem de escrutínio
ou responsabilidade democráticos, apesar de ser constitucionalmente
administrada em nome do Povo. O sentimento de impunidade que a ineficácia do
sistema transmite à sociedade é agravado pelo défice dos mecanismos de
avaliação interna existentes e pela falta de mecanismos de escrutínio externo
descomprometido face ao aparelho judiciário.
O
poder que, pelo sufrágio livre e democrático, os cidadãos delegam nos seus
representantes para, em seu nome, definirem e executarem as diversas políticas
setoriais, não encontra expressão efetiva no caso da política criminal, que
incumbe, constitucionalmente, ao poder político stricto sensu, mas a sua execução, a cargo do MP, sem mandato
constitucional, é feita sem controlo externo ou interno. Não obstante, não tem havido
qualquer ação política com vista à verdadeira reforma da Justiça. Tem, antes,
prevalecido a busca do pequeno ganho partidário imediato, em detrimento do
interesse público, variando as posições em função da filiação partidária dos
atingidos, como revelam as posições contraditórias assumidas nos casos que
afetaram os governos da República e da Região Autónoma da Madeira. Face a esta inércia,
quando a democracia celebra 50 anos, compete à sociedade um sobressalto cívico
que leve os responsáveis políticos a elegerem a Justiça como “inequívoca
prioridade na defesa do Estado de Direito Democrático”.
É
necessária uma reforma que, acolhendo as legítimas aspirações dos agentes de
Justiça, não seja desenhada à medida dos seus interesses corporativos, mas que
tenha como prioridade o cidadão e a defesa do Estado de Direito, não ignorando
prioridades evidentes, como: garantia da separação entre poder político e Justiça;
combate à opacidade, reforçando a transparência das instituições da Justiça; respeito
do poder de a coletividade, através dos legítimos representantes, definir a
política criminal e controlar a sua execução, nos termos constitucionais;
recondução do MP ao modelo constitucional hierárquico, tendo como vértice o
procurador-geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela
legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas; reforço dos meios
de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e mecanismos
de escrutínio externo, designadamente por relatórios periódicos a apresentar à
AR pelos órgãos de governo institucional das diferentes magistraturas e sua
apreciação nas comissões parlamentares; instituição e aplicação das exigências
de ponderação, rigor, proporcionalidade e fundamentação, na abertura da
investigação penal e no uso de meios de investigação intrusivos, como escutas e
buscas domiciliárias, bem como na sua revisão periódica, fazendo prevalecer a
presunção de inocência; cumprimento do segredo de justiça, aplicando a lei
penal e as normas disciplinares contra a sua violação; minimização da
morosidade dos processos judiciais, cumprindo o requisito da decisão em prazo
razoável, segundo a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos; e
melhoria a no direito de acesso à Justiça.
A
máxima “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” proíbe a
interferência de uma esfera na outra (vale para os dois lados), mas não subtrai
aos órgãos eleitos a responsabilidade na definição e execução da política de Justiça.
Antes, exige atitude pró-ativa a quem, em última instância, cabe a
responsabilidade pelo funcionamento das instituições.
***
O
Manifesto (não o sobressalto civil), que é pertinente – por, não açaimando o MP,
mas repondo-o no enquadramento constitucional e estatutário –, é tardio e, da parte
de alguns, oportunista (Onde estavam, quando o MP começou a cometer os erros
ora denunciados?). Previamente à reforma da Justiça, impõe-se que os
magistrados respeitem e cumpram o respetivo estatuto. E a reforma não deve
atingir só o MP. Todos os órgãos de soberania devem fazer autocrítica e sujeitar-se
a escrutínio, que é imperativo para os órgãos cujo mandato não é limitado pelo
voto popular.
2024.05.11 – Louro de Carvalho
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