quinta-feira, 2 de maio de 2024

Saneamento político a coberto de estatutos

A 12 de abril, Ana Jorge, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), teve uma reunião com a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, que lhe terá passado uma mensagem de confiança para se manter como provedora. Duas semanas depois, o governo, com base nos Estatutos Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, invocou os motivos previstos na lei para destituir a provedora e, consequentemente, toda a mesa.
Ana Jorge saíra do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), sem que o cenário de demissão transparecesse. Segundo fonte próxima da provedora, na conversa com a governante, esta, ter-lhe-á “por duas vezes”, transmitiu-lhe “confiança” para o mandato na SCML. Não obstante, a ministra terá insistido na necessidade de um plano de reestruturação urgente, dado o atual estado financeiro da Santa Casa, mas sem ter feito depender da apresentação de tal documento a manutenção de Ana Jorge no cargo.
O certo é que, a 29 abril, após ter sido contactada pelo gabinete da ministra, a provedora soube que iria cessar funções, por determinação governamental. Pelo Despacho n.º 4702-B/2024, de 29 de abril (publicado no dia 30), do primeiro-ministro (PM) e da ministra da tutela, recorrendo aos Estatutos, invocou os motivos legais necessários para a destituição da provedora e da restante mesa: a “não prestação de informações essenciais ao exercício da tutela” e “atuações culposas ou gravemente negligentes que afetem a gestão ou o bom nome da SCML” (ver n.º 5 do artigo 11.º dos Estatutos). Portanto, ambos os governantes aduziram, como motivos para a demissão, Parte superior do formulárioParte inferior do formulário“a não prestação de informações essenciais ao exercício da tutela, nomeadamente, a falta de informação à tutela sobre o relatório e contas de 2023, mesmo que em versão provisória, e sobre a execução orçamental do primeiro trimestre de 2024, bem como a ausência de resposta de todos os pedidos de informação até agora solicitados” – “atuações gravemente negligentes que afetam a gestão da SCML, nomeadamente a ausência de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital, desde que tomou posse até agora”.
Em relação às contas, fonte da SCML adiantou que os documentos seguiram, no próprio dia 29, para o MTSS. Só não foram remetidas mais cedo, porque estar em curso a auditoria do Tribunal de Contas (TdC) aos exercícios de 2021 e 2022, que têm impacto nas contas de 2023, e foi autorizado pelo anterior governo, com a concordância do TdC, a apresentação do documento relativo a 2023 até 30 de abril. Certamente, a ministra terá o despacho da antecessora, que validou o procedimento.
Entretanto, a 30 de abril, Ana Jorge enviou uma comunicação aos trabalhadores da SCML, cujo teor indicia surpresa com a decisão do governo. “O comunicado emitido pelo Ministério do Trabalho é, pela forma rude, sobranceira e caluniosa com que justifica a minha exoneração, motivo para me sentir desiludida”, referiu a provedora, clamando: “Sempre achei e hoje mais do que nunca, que em política, tal como na vida, não vale tudo.”
Ana Jorge, tal como a ministra, deverá ser chamada ao Parlamento, adiantou que, “a seu tempo e em sede própria, contarei a minha verdade”, a qual pode incidir na gestão do caso da “Santa Casa Global”, empresa criada para a internacionalização do jogo. É que nem a auditoria da BDO a todo o processo conseguiu aceder às contas das empresas compradas e criadas no Brasil, que foram financiadas através de garantias bancárias subscritas pela SCML. Tais dados são essenciais para se perceber o que aconteceu ao dinheiro, pelo que a Santa Casa já se constituiu como assistente no processo judicial que investiga suspeitas de crimes nestes negócios.
Apesar de o PM ter negado qualquer ato de “saneamento político”, a oposição já anunciou pretender ouvir, no Parlamento, todos os envolvidos. Aliás, ainda antes da destituição formal, a Iniciativa Liberal (IL) pediu a audição de todos os responsáveis pela internacionalização do jogo, o qual provocou um buraco nas contas que poderá ultrapassar os 50 milhões de euros. Na primeira reunião da Comissão de Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, o Partido Socialista (PS) invocou a figura do “adiamento potestativo” para a comissão não votar o requerimento.
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Na carta enviada aos trabalhadores da SCML, a antiga ministra da Saúde, do governo de José Sócrates (labéu de que não se liberta, na área dos vencedores das eleições), apesar da “surpresa” da decisão da exoneração, salienta que “foi uma honra” servir a SCML.
A ex-provedora assume que “foram 11 meses muito duros” e defendeu a atuação da sua equipa, que trabalhou “rumo à sustentabilidade financeira, à motivação dos colaboradores” e em prol do compromisso social assumido com “milhares de pessoas”. “É por isso – pelo tanto trabalho, desenvolvido em tão pouco tempo e pelo plano de reestruturação sólido que desenhámos e que queríamos implementar – que hoje não me sinto tão triste. Por isto, só por isto”, escreveu.
Ana Jorge tomou posse a 2 de maio de 2023, por escolha do anterior governo, em virtude de a SCML atravessar graves dificuldades financeiras, depois dos anos de pandemia e de um processo polémico de internacionalização dos jogos sociais, levado a cabo pela administração do provedor Edmundo Martinho, que pode ter custado à instituição 50 milhões de euros.
Na hora da saída, Ana Jorge Parte superior do formulárioParte inferior do formulárionão foi meiga nas palavras, respondendo a quem a afastou do cargo: “O comunicado emitido pelo Ministério do Trabalho é, pela forma rude, sobranceira e caluniosa com que justifica a minha exoneração, motivo para me sentir desiludida.”
O governo, entre as razões que invoca para a destituição, inclui “a ausência de um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital desde que tomou posse até agora”. E a provedora vinca a vigência do “plano de reestruturação sólido que desenhámos e que queríamos implementar”.
Constou que Maria do Rosário Palma Ramalho dera um prazo de 15 dias à provedora para apresentar um plano de reestruturação, tendo esta alegado que, em tão pouco tempo, seria difícil dar execução a esse desiderato. Foi noticiado e deduz-se do despacho que a cessação de funções tem efeitos imediatos, mas o ministro da Presidência, remete-a para a data da posse da nova mesa.
É caso para dizer: “Organizem-se!”
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O ministro da Presidência rejeitou as acusações de saneamento político na exoneração da direção da SCML e defendeu que os Portugueses “não perdoariam” uma inação do governo face à degradação da instituição
Em declarações prestadas no ‘briefing’ após o Conselho de Ministros de 2 de maio, António Leitão Amaro reiterou o papel da SCML, enquanto “instituição importantíssima” na resposta social, e criticou a falta de soluções da administração, que ficará em funções correntes até ser nomeada uma nova equipa. “O que os portugueses não perdoariam era que o governo assistisse, em inação, a um agravar contínuo da situação financeira, da capacidade para atender aos que mais precisam, ao cumprimento da missão social” e [fosse tolerante e aceitasse] essa inação, essa passividade, que não se manifestou em 15 dias ou três semanas”, disse.
Leitão Amaro lembrou Parte superior do formulárioParte inferior do formulárioque a direção, agora exonerada, estava em funções há cerca de um ano, sem que fosse conhecido um “plano de reestruturação” (o que não condiz com a carta da provedora) ou medidas decisivas para inverter a situação de degradação financeira na SCML. “Não fizeram o que precisavam de fazer, não tiveram a diligência que era exigível. Portanto, os Portugueses certamente compreendem que estamos a cumprir o nosso papel quando substituímos quem não faz o que deveria fazer”, reforçou, continuando: “A Santa Casa é muito útil para os Portugueses. Precisava – e precisa – de um novo ímpeto que a direção anterior não garantia”.
O ministro acrescentou que a intenção do governo passa por “trazer capacidade de resposta e sustentabilidade financeira” à SCML, mas apontou falta de cooperação da direção de Ana Jorge e a importância de haver alinhamento com “as estratégias políticas e os programas do governo”.
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É usual a mudança de governo implicar alterações nas direções e chefias de serviços dependentes, direta ou indiretamente, do governo. Não obstante, a exoneração da mesa da SCML foi demasiado intempestiva. E o governo não precisava de aduzir incompetência da parte da provedora (o que tem sido contraditado pela experiência) e da mesa, nem de alegar que não há um plano de restruturação, que existe. Quanto às contas e à debilidade de gestão, o TdC e eventualmente, os tribunais ordinários farão o juízo correto.
O governo, querendo que a SCML seguisse outro rumo, não tinha de invocar falhas estatutárias (o que pode ser contestado em tribunal). Bastava, no despacho, ter invocado a necessidade de alinhamento com “as estratégias políticas e [com] os programas do governo”. Assim, não se falaria de saneamento político, mas da mudança política habitual, ainda que intempestiva e de duvidosa legitimidade, visto a maioria relativa que suporta o governo ser extremamente frágil. Estas mudanças não eram sistemáticas antes das maiorias absolutas do tempo de Cavaco Silva.
Este caso faz-me lembrar a anedota de um suposto episódio protagonizado Oliveira Salazar. Havendo necessidade de preencher duas vagas num cargo público, foi aberto concurso a que se candidataram três jovens: dois brancos e um negro. Presidiu ao júri de seleção o próprio chefe do governo, que explicou que, nos termos constitucionais, todos são iguais perante a lei, pelo que todos os cidadãos têm acesso aos cargos públicos, sendo privilegiado o mérito (o regime entre os cidadãos, contava os “semiassimilados”, que não tinham os mesmo direitos dos de primeira classe). Assim, perguntou ao primeiro candidato qual a primeira cidade atingida pela bomba atómica, ao que ele respondeu, prontamente: “Hiroshima!” Ao segundo perguntou qual a segunda cidade atingida pela bomba atómica, ao que ele respondeu, prontamente: “Nagasáqui!” E ao terceiro (o negro) perguntou por nomes, moradas e idades das vítimas das duas bombas atómicas. E ele não soube responder, pois não tinha estudado.
Eram todos iguais, mas o mérito levou à admissão dos dois primeiros e à exclusão do terceiro.
Também, agora, não houve saneamento político, mas houve destituição com base em inépcias que os atingidos podem considerar calúnias. “E não havia necessidade!” Foi atirar lama para cima da administração exonerada e poeira para os olhos dos Portugueses.
Algo parecido ocorreu com a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). A ministra da Saúde, por despacho, deu um prazo de 60 dias a Fernando Araújo para apresentar um relatório sobre as reformas efetuadas e uma avaliação pormenorizada da organização, da funcionamento e das perspetivas futuras da DE-SNS. Porém, Araújo adiantou-se e apresentou o pedido de demissão, embora garantindo a apresentação do relatório no prazo estabelecido.
Num caso e no outro, o programa do governo apontava para a descontinuidade. No caso da DE-SNS, não houve saneamento, porque esta se adiantou. Caso contrário, haveria.
Resta saber o que virá por aí.
E as reformas e as reestruturações são interrompidas por quem as devia deixar prosseguir, até que pudesse ser feita uma avaliação serena das mesmas. A pressa é inimiga do acerto!

2024.05.02 – Louro de Carvalho


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