Deus Pai é a fonte primeira do amor. Ama o
Filho, comunica-Lhe o amor e envia-O ao nosso encontro; Jesus mostrou aos
homens, em palavra e em gesto o amor do Pai; os discípulos de Jesus acompanharam-No,
desde a Galileia até Jerusalém, foram testemunhas do seu amor até ao extremo e,
transformados em Homens Novos pelo amor de Jesus, são os arautos do amor de
Deus no Mundo. Está, ante os nossos olhos, a rede de amor que perpassa a
História da Salvação.
A primeira leitura (At 10,25-26.34-35.44-48) da Liturgia da Palavra do
VI domingo da Páscoa, no Ano B, sustenta que a oferta da salvação de Deus por
Jesus Cristo e levada ao Mundo pelos discípulos, tornados apóstolos ou
missionários, se destina a todos os homens e mulheres, sem exceção. Para Deus,
o decisivo não é a pertença a uma etnia ou a um grupo social, mas a
disponibilidade para acolher o amor de Deus e para dar testemunho dele.
O trecho em referência integra uma secção do
livro dos Atos dos Apóstolos (cf
9,32-11,18) cujo protagonista é Pedro e que refere a sua atividade missionária
no litoral da costa palestiniana, entre Jope e Cesareia Marítima, onde Pedro,
qual pregador itinerante, visita diversas comunidades cristãs. O episódio em
causa situa-nos em Cesareia Marítima, cidade construída por Herodes, o Grande,
no século I a. C., num lugar antigamente designado por “Torre de Estraton”. Era
a sede do poder romano na Palestina, pois aí residiam os procuradores romanos
da Judeia.
Figura central do episódio é Cornélio,
centurião romano, “piedoso e temente a Deus”. Pedro estava em Jope, um pouco
mais a sul, hospedado em casa de Simão, o curtidor. Convidado por Cornélio, vai
Cesareia, à casa do centurião e, encontrando-o reunido com diversos familiares
e amigos, anuncia-lhes Jesus. Esta atitude petrina gerou polémica na comunidade
cristã primitiva, particularmente entre os cristãos de Jerusalém. Para os primeiros
cristãos, oriundos do judaísmo, não era claro que os pagãos entrassem na
comunidade cristã. O pagão era ser impuro, em casa de quem o bom judeu estava
proibido de entrar, para não se contaminar.
Todavia, para Lucas, é evidente que Deus quer
oferecer a salvação aos pagãos. Para deixar isso claro, põe Deus a dirigir a
trama: é Deus que, numa visão, pede a Cornélio que mande chamar Pedro; e é Deus
que arrebata Pedro em êxtase e lhe sugere que vá ao encontro de Cornélio, sem
ficar contaminado pelo contacto com o pagão. A decisão de Pedro de apresentar Jesus
a uma família pagã será, pouco depois, aprovada pela Igreja de Jerusalém.
O episódio tem especial importância para a
expansão da Igreja. Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade
de Jesus. A sua conversão marca uma viragem decisiva na proclamação do Evangelho
que, a partir de agora, se abre aos pagãos.
Depois de descrever a receção de Pedro em casa
de Cornélio, Lucas põe na boca de Pedro um discurso – de que o trecho em
referência é um pequeno extrato – onde ecoa o kérigma primitivo (primeiro
anúncio, que proclama as verdades fundamentais sobre Jesus). No discurso, Pedro
anuncia Jesus, a sua atividade (“andou de lugar em lugar fazendo o bem e
curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele”), a
sua morte e ressurreição e a dimensão salvífica da sua ação. É o anúncio de que
Jesus encarregou os primeiros discípulos de testemunharem a todo o Mundo.
O texto acentua o facto de a mensagem da
salvação se destinar a todas as nações, sem distinção de pessoas, de raças ou
de povos. Pedro reconhece que “Deus não faz aceção de pessoas; em qualquer
nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável”. Por isso, este
anúncio tem chegar a todos os cantos da Terra, pois a salvação de Deus é para
todos os homens e mulheres.
Depois do anúncio, acontece a efusão do
Espírito “sobre quantos ouviam a Palavra”, sem distinção de judeus ou pagãos. O
resultado do dom do Espírito é descrito com os elementos do relato do
Pentecostes: todos “falavam línguas” e “glorificavam a Deus”. É a confirmação
de que Deus oferece a salvação a todos os homens, sem distinguir raças,
culturas ou nações. Pedro concluindo o que se impõe, batiza Cornélio e toda a
sua família.
Os cristãos oriundos do Judaísmo e marcados
pela sua mentalidade consideravam que a salvação era, sobretudo, um dom de Deus
para os Judeus; os pagãos poderiam ter acesso à salvação, desde que se
convertessem ao Judaísmo, aceitassem a Lei de Moisés e a circuncisão. Porém, o
Espírito Santo, derramado sobre Cornélio e a sua família, mostra que a salvação
não é património ou monopólio dos Judeus ou dos cristãos oriundos do Judaísmo,
mas dom oferecido a todos os que têm o coração aberto a Deus.
***
A segunda leitura (1Jo 4,7-10) confirma
que Deus é a origem do amor (“Deus é amor”) e que foi d’Ele que partiu a corrente
de amor que nos atingiu, em Jesus e por Jesus. Transformados por esse amor,
aproximamo-nos de Deus, conhecemos Deus e tornarmo-nos filhos de Deus.
A Primeira Carta de João é uma instrução
destinada a Igrejas da Ásia Menor nascidas em contexto joânico. Combate as
doutrinas heréticas de seitas pré-gnósticas que, pelo final do século I,
lançavam a confusão nas comunidades cristãs; e define os princípios
fundamentais da vida cristã autêntica. Neste contexto, uma das questões controversas
e a que o hagiógrafo dá importância fundamental é a questão do amor ao próximo.
Os pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé reside na vida de comunhão com
Deus e negligenciavam as realidades do Mundo. Pensavam que se podia descobrir a
luz e estar perto de Deus, odiando o próximo. Ora, amor ao próximo é exigência
central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer
que está em comunhão com Ele, se não se deixa contagiar e embeber pelo amor.
O trecho em apreço pertence à terceira parte da
carta. Aí, o autor estabelece como critério da vida cristã autêntica a relação
entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. É nessa dupla dimensão que os cristãos
encontram a sua identidade.
Há um “dogma” fundamental que se impõe com irresistível
força e que marca a existência cristã: a certeza de que “Deus é amor”. Assim, a
caraterística mais marcante do ser de Deus é o amor e a atividade mais
específica de Deus é amar. A prova de que Deus é amor é o facto de Ele ter
enviado o seu único Filho ao encontro dos homens para lhes dar a Vida. Jesus
Cristo, o Filho de Deus que incarnou na História humana, cumprindo o plano do
Pai, mostrou, em gestos de cura e de cuidado, o amor de Deus pelos homens,
sobretudo pelos mais pobres, pelos excluídos, pelos marginalizados. Lutou até à
morte para libertar os homens da opressão, do egoísmo, do sofrimento; caminhou
para a cruz e entregou a vida até à última gota de sangue; enfrentou o sepulcro
e venceu a morte. Toda a sua vida garante o imenso amor de Deus para connosco.
Além disso, Deus não esperou que O amássemos
para nos amar; amou-nos, quando estávamos longe d’Ele, amou-nos apesar do nosso
pecado, das nossas escolhas erradas, da nossa indiferença, das nossas revoltas.
Deus amou-nos quando não o merecíamos. O amor de Deus é incondicional,
gratuito, desinteressado, que não exige nada em troca; é amor que purifica,
reabilita e salva.
Os discípulos de Jesus conhecem bem o amor de
Deus. Veem-no em Jesus, na sua vida, nas suas palavras, nos seus gestos, na sua
morte. Batizados em Cristo, tornamo-nos filhos amados do Deus que ama sem medida.
Agora, é a Vida de Deus que circula em nós. E, se Deus é amor, o amor circula
em nós, enche-nos o coração e transparece nos gestos concretos de amor aos
irmãos. Para os que nasceram de Deus, há uma forma de viver: amar os irmãos com
o amor incondicional e gratuito que carateriza Deus. Caso contrário, não somos
cristãos.
***
No Evangelho (Jo 15,9-17) Jesus, em tempo de despedida, deixa
aos discípulos o mandamento fundamental: “Amai-vos como Eu vos amei.”
O trecho em causa dá sequência ao do V domingo
da Páscoa. Na alegoria da videira e dos ramos, os discípulos são instados a
“permanecer em Jesus”; esse “permanecer em Jesus” concretiza-se agora no
“permanecer no amor”: os discípulos devem manter-se unidos a Jesus pelo vínculo
do amor. A relação do Pai com Jesus é o modelo da relação que Jesus quer manter
com os discípulos. O Pai amou Jesus e demonstrou-Lhe sempre o seu amor; e Jesus
correspondeu ao amor do Pai, cumprindo os seus mandamentos. Assim, Jesus amou
os discípulos e mostrou-lhes sempre o seu amor; e os discípulos devem
corresponder ao amor de Jesus, cumprindo os seus mandamentos.
Os mandamentos do Pai que Jesus cumpriu com
total e fiel obediência configuram a observância do desígnio de salvação de
Deus para os homens, que confiou a Jesus. Jesus, em obediência ao Pai, veio ao
encontro dos homens e caminhou com eles; libertou-os da opressão da Lei e de
tudo o que os tinha prisioneiros das trevas; livrou-os do sofrimento e da
doença; salvou-os do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do comodismo;
ensinou-os a escolher a justiça, a verdade, a liberdade; abriu-lhes os olhos
para caminharem na luz; ensinou-os a viver no amor, a servir, a dar a vida para
que todos tenham Vida. O Pai, fonte de amor, mandou o Filho salvar os homens de
tudo o que lhes roubava a Vida; e o Filho, amando os homens até ao extremo, deu
a vida para que os homens tivessem a Vida em abundância.
Da ação de Jesus nasceu o Homem Novo, livre do
egoísmo, capaz de estabelecer novas relações com os outros homens e com Deus.
Os discípulos, fruto da obra de Jesus, formam a comunidade de homens livres,
que acolhem e assimilam a salvação que o Pai lhes ofereceu em Jesus. Nasceram
do amor do Pai, amor presente na ação, nos gestos, nas palavras de Jesus.
Agora, os discípulos, nascidos da ação
salvadora e libertadora de Jesus, estão vinculados a Jesus. Devem, pois,
cumprir os mandamentos de Jesus, como Ele cumpriu os mandamentos do Pai.
Como Jesus, os discípulos devem ser testemunhas
da salvação de Deus e levar a libertação aos irmãos. Devem amar, até ao dom
total de si mesmos. Se o fizerem, estarão em relação com Jesus, relação que
será fonte permanente de Vida verdadeira.
Assim, a indicação que Jesus deixa aos
discípulos, o seu mandamento, é que vivam no amor (“é este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei”). Jesus amou totalmente, até ao
dom da vida. Os discípulos devem viver como Jesus viveu: devem amar-se uns aos
outros com o amor que é serviço, doação total, entrega radical. Do amor nasce a
comunidade do Reino, a comunidade do Mundo novo, que testemunha, pelo amor, a
salvação de Deus. Deus faz-Se presente no Mundo e age para libertar os homens
pelo amor desinteressado, gratuito, total, que tem a marca de Jesus e que os
discípulos devem testemunhar.
A comunidade de Jesus e dos discípulos é a
comunidade dos amigos de Jesus. A relação que Jesus tem com os membros da comunidade
não é relação de senhor e de servos, mas de amigos, pois o amor pôs Jesus e os
discípulos no mesmo plano. Jesus continua a ser o centro do grupo, mas não se
põe acima do grupo. Ele é e será sempre o companheiro dos discípulos. Une-os a lealdade
e o afeto dos amigos, que cooperam todos numa tarefa comum. Têm a mesma missão
(testemunhar, pelo amor, a salvação de Deus) e são responsáveis por que a missão
se concretize. Não são servos a soldo de senhor, mas amigos que,
voluntariamente e cheios de alegria e de entusiasmo, cooperam numa tarefa que
lhes traz alegria infinita.
Entre esses amigos, há total comunicação e
confiança (o servo não conhece os planos do senhor, mas o amigo partilha com o
outro amigo os seus projetos. Aos amigos, Jesus comunicou-lhes o desígnio de
salvação que o Pai tem para os seres humanos e a forma de realizar esse
desígnio: o amor, entrega, o dom da vida. Jesus revela Deus aos amigos, não com
teorias sobre Deus, mas mostrando, com a sua pessoa e atividade, que o Pai é
amor e que trabalha em prol do homem.
Os discípulos são os eleitos de Jesus, os que
Ele escolheu, chamou e enviou ao Mundo a dar fruto. Isso não quer dizer que
Jesus chame uns e rejeite outros, mas que a iniciativa não é dos discípulos e
que a sua aproximação à comunidade do Reino é uma resposta ao desafio que Jesus
apresenta.
O objetivo desse chamamento é a missão
(“escolhi-vos e destinei-vos para que vades e deis fruto”). Jesus não quer uma
comunidade fechada, isolada, autorreferencial, mas uma comunidade que vá ao
encontro do Mundo, que prossiga a sua obra, que testemunhe o amor, que leve a
todos os homens a salvação de Deus. O resultado da ação dos discípulos será o
nascimento do Homem Novo – isto é, de homens adultos, livres, responsáveis,
animados pelo Espírito, que reproduzem os gestos de amor de Jesus no Mundo.
Assim, concretizar-se-á o plano salvador de Deus. Esse fruto deve permanecer, isto
é, deve tornar-se realidade efetivamente presente no Mundo, para transformar o
Mundo e a vida dos homens. Quanto mais forte for a intensidade do vínculo que
une os discípulos a Jesus, mais frutos nascerão da ação dos discípulos.
Os discípulos não estão sós. O amor do Pai e a
união com Jesus sustentarão os discípulos que se empenham em realizar o projeto
de salvar o Homem.
O texto termina com nova referência ao
mandamento: “Amai-vos uns aos outros.” O amor partilhado é a condição para
estar vinculado a Jesus e para dar fruto. Assim, Jesus está ao lado dos discípulos;
e essa presença impulsiona a comunidade e sustenta-a na ação em prol do homem.
***
Graças ao amor
inefável e universal de Deus, há que responder ao apelo do salmista (Sl 98):
***
É a felicidade no seu melhor!
2024.05.05 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário