domingo, 5 de maio de 2024

O amor ao próximo, como a salvação, é universal

 

Deus Pai é a fonte primeira do amor. Ama o Filho, comunica-Lhe o amor e envia-O ao nosso encontro; Jesus mostrou aos homens, em palavra e em gesto o amor do Pai; os discípulos de Jesus acompanharam-No, desde a Galileia até Jerusalém, foram testemunhas do seu amor até ao extremo e, transformados em Homens Novos pelo amor de Jesus, são os arautos do amor de Deus no Mundo. Está, ante os nossos olhos, a rede de amor que perpassa a História da Salvação.

primeira leitura (At 10,25-26.34-35.44-48) da Liturgia da Palavra do VI domingo da Páscoa, no Ano B, sustenta que a oferta da salvação de Deus por Jesus Cristo e levada ao Mundo pelos discípulos, tornados apóstolos ou missionários, se destina a todos os homens e mulheres, sem exceção. Para Deus, o decisivo não é a pertença a uma etnia ou a um grupo social, mas a disponibilidade para acolher o amor de Deus e para dar testemunho dele.

O trecho em referência integra uma secção do livro dos Atos dos Apóstolos (cf 9,32-11,18) cujo protagonista é Pedro e que refere a sua atividade missionária no litoral da costa palestiniana, entre Jope e Cesareia Marítima, onde Pedro, qual pregador itinerante, visita diversas comunidades cristãs. O episódio em causa situa-nos em Cesareia Marítima, cidade construída por Herodes, o Grande, no século I a. C., num lugar antigamente designado por “Torre de Estraton”. Era a sede do poder romano na Palestina, pois aí residiam os procuradores romanos da Judeia.

Figura central do episódio é Cornélio, centurião romano, “piedoso e temente a Deus”. Pedro estava em Jope, um pouco mais a sul, hospedado em casa de Simão, o curtidor. Convidado por Cornélio, vai Cesareia, à casa do centurião e, encontrando-o reunido com diversos familiares e amigos, anuncia-lhes Jesus. Esta atitude petrina gerou polémica na comunidade cristã primitiva, particularmente entre os cristãos de Jerusalém. Para os primeiros cristãos, oriundos do judaísmo, não era claro que os pagãos entrassem na comunidade cristã. O pagão era ser impuro, em casa de quem o bom judeu estava proibido de entrar, para não se contaminar.

Todavia, para Lucas, é evidente que Deus quer oferecer a salvação aos pagãos. Para deixar isso claro, põe Deus a dirigir a trama: é Deus que, numa visão, pede a Cornélio que mande chamar Pedro; e é Deus que arrebata Pedro em êxtase e lhe sugere que vá ao encontro de Cornélio, sem ficar contaminado pelo contacto com o pagão. A decisão de Pedro de apresentar Jesus a uma família pagã será, pouco depois, aprovada pela Igreja de Jerusalém.

O episódio tem especial importância para a expansão da Igreja. Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade de Jesus. A sua conversão marca uma viragem decisiva na proclamação do Evangelho que, a partir de agora, se abre aos pagãos.

Depois de descrever a receção de Pedro em casa de Cornélio, Lucas põe na boca de Pedro um discurso – de que o trecho em referência é um pequeno extrato – onde ecoa o kérigma primitivo (primeiro anúncio, que proclama as verdades fundamentais sobre Jesus). No discurso, Pedro anuncia Jesus, a sua atividade (“andou de lugar em lugar fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele”), a sua morte e ressurreição e a dimensão salvífica da sua ação. É o anúncio de que Jesus encarregou os primeiros discípulos de testemunharem a todo o Mundo.

O texto acentua o facto de a mensagem da salvação se destinar a todas as nações, sem distinção de pessoas, de raças ou de povos. Pedro reconhece que “Deus não faz aceção de pessoas; em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável”. Por isso, este anúncio tem chegar a todos os cantos da Terra, pois a salvação de Deus é para todos os homens e mulheres.

Depois do anúncio, acontece a efusão do Espírito “sobre quantos ouviam a Palavra”, sem distinção de judeus ou pagãos. O resultado do dom do Espírito é descrito com os elementos do relato do Pentecostes: todos “falavam línguas” e “glorificavam a Deus”. É a confirmação de que Deus oferece a salvação a todos os homens, sem distinguir raças, culturas ou nações. Pedro concluindo o que se impõe, batiza Cornélio e toda a sua família.

Os cristãos oriundos do Judaísmo e marcados pela sua mentalidade consideravam que a salvação era, sobretudo, um dom de Deus para os Judeus; os pagãos poderiam ter acesso à salvação, desde que se convertessem ao Judaísmo, aceitassem a Lei de Moisés e a circuncisão. Porém, o Espírito Santo, derramado sobre Cornélio e a sua família, mostra que a salvação não é património ou monopólio dos Judeus ou dos cristãos oriundos do Judaísmo, mas dom oferecido a todos os que têm o coração aberto a Deus.

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segunda leitura (1Jo 4,7-10) confirma que Deus é a origem do amor (“Deus é amor”) e que foi d’Ele que partiu a corrente de amor que nos atingiu, em Jesus e por Jesus. Transformados por esse amor, aproximamo-nos de Deus, conhecemos Deus e tornarmo-nos filhos de Deus.

A Primeira Carta de João é uma instrução destinada a Igrejas da Ásia Menor nascidas em contexto joânico. Combate as doutrinas heréticas de seitas pré-gnósticas que, pelo final do século I, lançavam a confusão nas comunidades cristãs; e define os princípios fundamentais da vida cristã autêntica. Neste contexto, uma das questões controversas e a que o hagiógrafo dá importância fundamental é a questão do amor ao próximo. Os pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé reside na vida de comunhão com Deus e negligenciavam as realidades do Mundo. Pensavam que se podia descobrir a luz e estar perto de Deus, odiando o próximo. Ora, amor ao próximo é exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele, se não se deixa contagiar e embeber pelo amor.

O trecho em apreço pertence à terceira parte da carta. Aí, o autor estabelece como critério da vida cristã autêntica a relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. É nessa dupla dimensão que os cristãos encontram a sua identidade.

Há um “dogma” fundamental que se impõe com irresistível força e que marca a existência cristã: a certeza de que “Deus é amor”. Assim, a caraterística mais marcante do ser de Deus é o amor e a atividade mais específica de Deus é amar. A prova de que Deus é amor é o facto de Ele ter enviado o seu único Filho ao encontro dos homens para lhes dar a Vida. Jesus Cristo, o Filho de Deus que incarnou na História humana, cumprindo o plano do Pai, mostrou, em gestos de cura e de cuidado, o amor de Deus pelos homens, sobretudo pelos mais pobres, pelos excluídos, pelos marginalizados. Lutou até à morte para libertar os homens da opressão, do egoísmo, do sofrimento; caminhou para a cruz e entregou a vida até à última gota de sangue; enfrentou o sepulcro e venceu a morte. Toda a sua vida garante o imenso amor de Deus para connosco.

Além disso, Deus não esperou que O amássemos para nos amar; amou-nos, quando estávamos longe d’Ele, amou-nos apesar do nosso pecado, das nossas escolhas erradas, da nossa indiferença, das nossas revoltas. Deus amou-nos quando não o merecíamos. O amor de Deus é incondicional, gratuito, desinteressado, que não exige nada em troca; é amor que purifica, reabilita e salva.

Os discípulos de Jesus conhecem bem o amor de Deus. Veem-no em Jesus, na sua vida, nas suas palavras, nos seus gestos, na sua morte. Batizados em Cristo, tornamo-nos filhos amados do Deus que ama sem medida. Agora, é a Vida de Deus que circula em nós. E, se Deus é amor, o amor circula em nós, enche-nos o coração e transparece nos gestos concretos de amor aos irmãos. Para os que nasceram de Deus, há uma forma de viver: amar os irmãos com o amor incondicional e gratuito que carateriza Deus. Caso contrário, não somos cristãos.

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No Evangelho (Jo 15,9-17) Jesus, em tempo de despedida, deixa aos discípulos o mandamento fundamental: “Amai-vos como Eu vos amei.”

O trecho em causa dá sequência ao do V domingo da Páscoa. Na alegoria da videira e dos ramos, os discípulos são instados a “permanecer em Jesus”; esse “permanecer em Jesus” concretiza-se agora no “permanecer no amor”: os discípulos devem manter-se unidos a Jesus pelo vínculo do amor. A relação do Pai com Jesus é o modelo da relação que Jesus quer manter com os discípulos. O Pai amou Jesus e demonstrou-Lhe sempre o seu amor; e Jesus correspondeu ao amor do Pai, cumprindo os seus mandamentos. Assim, Jesus amou os discípulos e mostrou-lhes sempre o seu amor; e os discípulos devem corresponder ao amor de Jesus, cumprindo os seus mandamentos.

Os mandamentos do Pai que Jesus cumpriu com total e fiel obediência configuram a observância do desígnio de salvação de Deus para os homens, que confiou a Jesus. Jesus, em obediência ao Pai, veio ao encontro dos homens e caminhou com eles; libertou-os da opressão da Lei e de tudo o que os tinha prisioneiros das trevas; livrou-os do sofrimento e da doença; salvou-os do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do comodismo; ensinou-os a escolher a justiça, a verdade, a liberdade; abriu-lhes os olhos para caminharem na luz; ensinou-os a viver no amor, a servir, a dar a vida para que todos tenham Vida. O Pai, fonte de amor, mandou o Filho salvar os homens de tudo o que lhes roubava a Vida; e o Filho, amando os homens até ao extremo, deu a vida para que os homens tivessem a Vida em abundância.

Da ação de Jesus nasceu o Homem Novo, livre do egoísmo, capaz de estabelecer novas relações com os outros homens e com Deus. Os discípulos, fruto da obra de Jesus, formam a comunidade de homens livres, que acolhem e assimilam a salvação que o Pai lhes ofereceu em Jesus. Nasceram do amor do Pai, amor presente na ação, nos gestos, nas palavras de Jesus.

Agora, os discípulos, nascidos da ação salvadora e libertadora de Jesus, estão vinculados a Jesus. Devem, pois, cumprir os mandamentos de Jesus, como Ele cumpriu os mandamentos do Pai.

Como Jesus, os discípulos devem ser testemunhas da salvação de Deus e levar a libertação aos irmãos. Devem amar, até ao dom total de si mesmos. Se o fizerem, estarão em relação com Jesus, relação que será fonte permanente de Vida verdadeira.

Assim, a indicação que Jesus deixa aos discípulos, o seu mandamento, é que vivam no amor (“é este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei”). Jesus amou totalmente, até ao dom da vida. Os discípulos devem viver como Jesus viveu: devem amar-se uns aos outros com o amor que é serviço, doação total, entrega radical. Do amor nasce a comunidade do Reino, a comunidade do Mundo novo, que testemunha, pelo amor, a salvação de Deus. Deus faz-Se presente no Mundo e age para libertar os homens pelo amor desinteressado, gratuito, total, que tem a marca de Jesus e que os discípulos devem testemunhar.

A comunidade de Jesus e dos discípulos é a comunidade dos amigos de Jesus. A relação que Jesus tem com os membros da comunidade não é relação de senhor e de servos, mas de amigos, pois o amor pôs Jesus e os discípulos no mesmo plano. Jesus continua a ser o centro do grupo, mas não se põe acima do grupo. Ele é e será sempre o companheiro dos discípulos. Une-os a lealdade e o afeto dos amigos, que cooperam todos numa tarefa comum. Têm a mesma missão (testemunhar, pelo amor, a salvação de Deus) e são responsáveis por que a missão se concretize. Não são servos a soldo de senhor, mas amigos que, voluntariamente e cheios de alegria e de entusiasmo, cooperam numa tarefa que lhes traz alegria infinita.

Entre esses amigos, há total comunicação e confiança (o servo não conhece os planos do senhor, mas o amigo partilha com o outro amigo os seus projetos. Aos amigos, Jesus comunicou-lhes o desígnio de salvação que o Pai tem para os seres humanos e a forma de realizar esse desígnio: o amor, entrega, o dom da vida. Jesus revela Deus aos amigos, não com teorias sobre Deus, mas mostrando, com a sua pessoa e atividade, que o Pai é amor e que trabalha em prol do homem.

Os discípulos são os eleitos de Jesus, os que Ele escolheu, chamou e enviou ao Mundo a dar fruto. Isso não quer dizer que Jesus chame uns e rejeite outros, mas que a iniciativa não é dos discípulos e que a sua aproximação à comunidade do Reino é uma resposta ao desafio que Jesus apresenta.

O objetivo desse chamamento é a missão (“escolhi-vos e destinei-vos para que vades e deis fruto”). Jesus não quer uma comunidade fechada, isolada, autorreferencial, mas uma comunidade que vá ao encontro do Mundo, que prossiga a sua obra, que testemunhe o amor, que leve a todos os homens a salvação de Deus. O resultado da ação dos discípulos será o nascimento do Homem Novo – isto é, de homens adultos, livres, responsáveis, animados pelo Espírito, que reproduzem os gestos de amor de Jesus no Mundo. Assim, concretizar-se-á o plano salvador de Deus. Esse fruto deve permanecer, isto é, deve tornar-se realidade efetivamente presente no Mundo, para transformar o Mundo e a vida dos homens. Quanto mais forte for a intensidade do vínculo que une os discípulos a Jesus, mais frutos nascerão da ação dos discípulos.

Os discípulos não estão sós. O amor do Pai e a união com Jesus sustentarão os discípulos que se empenham em realizar o projeto de salvar o Homem.

O texto termina com nova referência ao mandamento: “Amai-vos uns aos outros.” O amor partilhado é a condição para estar vinculado a Jesus e para dar fruto. Assim, Jesus está ao lado dos discípulos; e essa presença impulsiona a comunidade e sustenta-a na ação em prol do homem.

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Graças ao amor inefável e universal de Deus, há que responder ao apelo do salmista (Sl 98):

“Cantai ao Senhor um cântico novo pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação, revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira, exultai de alegria e cantai.”

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É a felicidade no seu melhor!

2024.05.05 – Louro de Carvalho

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