segunda-feira, 20 de maio de 2024

SCML precisa de misericórdia e de justiça

 

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) precisa de misericórdia, pois tem por missão o desenvolvimento da ação social, nomeadamente no concelho de Lisboa, e o auxílio aos que mais precisam, e precisa de justiça, pelo desaforo da sua administração ao longo dos anos.

Depois de auditorias remetidas ao Tribunal de Contas (TdC) e o Ministério Público (MP), a mesa foi exonerada pela tutela com troca de “galhardetes” nada adequados a governantes e a gestores públicos. A seguir, a requerimento da Iniciativa Liberal (IL), foram ouvidas, na comissão parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, personalidades que integravam a mesa ora exonerada (que não esteve em funções, durante um ano) e a anterior – em que as acusações mútuas constituíram um espetáculo, a todos os títulos dispensável, para não dizer vergonhoso.        

Agora, o gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social admite ter “dúvida” sobre se deve enviar o relatório final da auditoria aos negócios internacionais SCML à comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, da Assembleia da República (AR), por estar em curso “um processo de averiguações no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Em ofício enviado à Comissão de Acesso dos Documentos Administrativos (CADA), o gabinete de Maria do Rosário Palma Ramalho justifica a dúvida pelo facto de se encontrar em curso “um processo de averiguações no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), sobre matéria versada no pretendido relatório”.

É também referido que Francisco Pessoa e Costa, ex-administrador da SCML, pediu acesso das conclusões da auditoria, alegando “ter interesse direto e pessoal” naquele documento. A SCML e Pessoa e Costa estão em “guerra”, desde que aquele dirigente foi destituído do cargo, por justa causa, em novembro de 2023, não tendo aceitado a decisão e pedindo uma indemnização de aproximadamente 300 mil euros. Por sua vez, a SCML exige ao ex-administrador perto de 61 milhões de euros, por danos patrimoniais e não patrimoniais.

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Nos últimos anos, está em causa a criação da Santa Casa Global para a internacionalização dos jogos, uma ação fracassada que representa um prejuízo de dezenas de milhões de euros, a que se seguiu a alegada incapacidade da nova mesa de atacar o mal pela raiz, não havendo um plano de reestruturação, mas tendo havido diretiva de emergência e normas de conduta para futuro. 

Todavia, as aventuras da provedoria da SCML não são apenas de agora. Esteve para investir 200 milhões de euros para entrar na então Caixa Económica Montepio Geral. O negócio era acarinhado pelo governo e permitia resolver o problema financeiro do banco e do acionista (a Associação Mutualista Montepio), num alegado projeto de economia social. Porém, o discurso junto da opinião pública para vender a operação não convenceu os que alertavam para os riscos, e, face à oposição, investiu apenas um valor simbólico de 75 mil euros, no final de 2018. As contas mostram que a SCML tinha recursos para assumir o investimento da dimensão inicialmente pensada, o que não quer dizer que fosse um bom negócio.  Os jogos sociais captaram mais de 700 milhões, em 2018, sendo cerca de um terço desse total receita da SCML, que gere ainda uma valioso património imobiliário.

O Montepio não foi a única má jogada da instituição. Posicionou-se como a principal interessada na compra do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), que enfrentava um quadro de fragilidade financeira. Em 2016, após a queda do Grupo Espírito Santo (GES), a SCML fez parceria com a Fundação Ricardo Espírito Santo para o restauro do património desta e passou a ser a sua principal financiadora. E, em 2018, deu a mão à Raríssimas, associação que ajuda crianças com doenças raras, caída em desgraça, após as irregularidades e desvios da fundadora. 

A SCML acumulava lucros e chegou a haver excesso de liquidez por investir. Ao mesmo tempo, a estrutura foi crescendo, com mais trabalhadores e, sobretudo, com mais cargos de chefia (muitas chefias sem chefiados). Porém, também foi marcada pela pandemia de covid-19. 

Pelos estatutos e pela lei, a SCML tem as seguintes fontes de receita: heranças, doações; lucros da exploração de jogos; produto de vendas de bens e serviços; comparticipações ou taxas pagas por utentes; ganhos com gestão de património; prémios prescritos; e doações do Estado.

O principal rendimento é a exploração dos jogos sociais, atribuída pelo Estado, sem tempo definido e em regime de exclusividade. O peso dos jogos nas receitas totais tem vindo a crescer. Ainda no campo dos jogos – contabilizado como receita autónoma – surgem os prémios caducados, por não serem reclamados no prazo de três meses e que revertem a favor da SCML.

Fatia importante das doações chega sob a forma de património imobiliário (um dos seus principais ativos). Por exemplo, em 2017, o empresário e colecionador de arte Francisco Capelo (antigo sócio de Joe Berardo) doou uma coleção de obras avaliada em sete milhões de euros. Como contrapartida de algumas heranças, a SCLM assume a obrigação de assegurar a conservação dos jazigos, para o qual fez uma provisão para encargos perpétuos.

Segundo o quadro legal, a SCML tem de distribuir uma parcela de 3,5% das receitas dos jogos pelas entidades que foram objeto das apostas e que é repartido pelos clubes ou pelos praticantes, conforme o caso, e pela federação ou liga que organize o evento. Entre as modalidades beneficiárias, estão os desportos fortes em Portugal, mas não só. Em 2017 e 2018, foram registados cerca de 1,4 milhões de euros para o Hóquei no Gelo e para o Futebol Americano.

Todavia, a principal atividade da Santa Casa é a ação social que presta a vários grupos vulneráveis, por vezes em complemento ou em substituição do Estado. Idosos, crianças, jovens, deficientes e doentes, são os principais destinatários das medidas de ação social que incluem o pagamento de subsídios beneficiários. A SCML tem equipamentos com oferta para estes grupos, mas também dá apoios domiciliários. Na segunda linha de despesas surge a saúde, setor no qual a Santa Casa é proprietária de quatro instituições: o Hospital Ortopédico Sant’Ana, na Parede, a Escola Superior e o Centro de Reabilitação de Alcoitão e a unidade de cuidados integrados Maria José Nogueira Pinto, em Cascais. De acordo com as contas disponíveis, todas estas instituições apresentaram prejuízos, em 2019, e dependem financeiramente da Santa Casa.

Em 2015, a gestão de Santana Lopes pagou 14,8 milhões de euros ao Ministério da Defesa pelas instalações do antigo Hospital Militar da Estrela, uma área de 16 mil metros quadrados numa zona nobre de Lisboa, para relançar, com a gestão da SCML, os cuidados de saúde em algumas valências, incluindo cuidados continuados, consultas externas e medicina de reabilitação.

Em 2020, a então futura Unidade de Cuidados Continuados Integrados Rainha Dona Leonor (Complexo Hospital da Estrela) encontrava-se em fase adiantada de obra e previa-se que a primeira fase (que contempla 91 camas) ficasse concluída no segundo semestre, já contando com o normal processo de instalação dos equipamentos e licenciamentos. Numa segunda fase, estava prevista a unidade de cuidados continuados integrados pediátricos e, numa terceira fase, estava contemplada a unidade de cuidados continuados integrados dedicada a doentes com demência.

Em 2018, a SCML devolveu, com juros, os cortes salariais impostos aos funcionários com vínculo público, no quadro das medidas de austeridade adotadas no Estado, em 2011 e 2012. Foram distribuídos 3,2 milhões de euros por 1100 colaboradores. Ainda que tal devolução tenha sido justificada por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), o conselho de auditoria aconselhava, no parecer às contas de 2018, uma auditoria interna ao procedimento das “ablações remuneratórias”, para verificar a sua regularidade e integralidade.

A SCML é pessoa coletiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, segundo os estatutos aprovados em dezembro de 2008. A tutela é exercida pelo membro do governo responsável pela Segurança Social, que define orientações de gestão, assegura a fiscalização da atividade e assume o papel determinante na nomeação dos órgãos sociais. O provedor é nomeado por despacho conjunto do primeiro-ministro e do ministro da Segurança Social. O seu vencimento é fixado pelo governo com base no aplicável aos gestores públicos. O mandato é de três anos, renováveis. O conselho de administração executivo é a “mesa”, liderada pelo provedor e composta por mais seis membros, um vice-provedor e cinco vogais, nomeados pelo ministro da tutela, ouvido o provedor. E a História recente revela a lógica do Bloco Central para lugares de poder.

A Santa Casa está organizada em cinco departamentos, liderados por um administrador executivo que é indicado pelo provedor: Ação Social e Saúde; Qualidade e Inovação; Empreendedorismo e economia social; Gestão imobiliária e de património; e Jogos.

O governo tem papel preponderante na indicação dos membros dos órgãos de consulta e de fiscalização. O conselho institucional tem representantes dos ministérios da Segurança Social, da Saúde, da Economia e da tutela da administração local. Há um membro escolhido pela Irmandade da Misericórdia de S. Roque, e três elementos indicados pelo provedor. E cabe-lhe dar parecer sobre planos de atividades e orçamentos, bem como apresentar recomendações. As várias tutelas do governo também estão representadas no Conselho de Jogos, que dá pareceres sobre o plano de atividades e a exploração de jogos e sobre o relatório e contas desta atividade.

A SCML tem uma História pluricentenária que a associa à Igreja católica e mantém uma ligação a ela através da Irmandade da Misericórdia S. Roque. Tem a sede na igreja da S. Roque, onde funciona um museu com importante espólio de arte sacra. A irmandade é personalidade jurídica de direito canónico. Cabe-lhe a tutela do “espírito cristão que enforma a ação da Santa Casa”, que inclui o culto católico nas igrejas da Santa Casa. Esta entidade é financiada pela Santa Casa com verba a definir pela mesa e deve apresentar contas anuais.

A  SCML é escrutinada a vários níveis. O órgão de fiscalização interna é o conselho de auditoria, presidido por um representante do Ministério das Finanças, e inclui um representante do Ministério da Segurança Social e um revisor oficial de contas indicado pela tutela. Está ainda sujeita à fiscalização das várias tutelas governamentais das áreas em que atua. Assim, uma auditoria da Inspeção-Geral da Segurança Social (IGSS) encontrou irregularidades na contratação pública. Esta auditoria apanhou a gestão de Santana Lopes e ficou concluída em 2016, mas só foi homologada pela tutela em 2018. Porém, teve por consequência a condenação de vários antigos gestores, por infrações de natureza sancionatória por violação das normas de contratação pública, numa sentença proferida, em 2018, pelo TdC. O então provedor foi sancionado em 10 mil euros e aceitou pagar, outros contestaram multas que ascenderam a cerca de 28 mil euros.

Entretanto, a SCML adotou um código de conduta para os fornecedores, cuja aceitação é um requisito obrigatório para que haja celebração do contrato. E, como desenvolve as atividades de serviço ou interesse público que lhe sejam solicitadas pelo Estado ou por outras entidades públicas, tem direito a benefícios fiscais no pagamento de imposto sobre os lucros e ao nível da tributação sobre imóveis. Porém, é no imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) que residem os valores mais avultados.

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Como as outras instituições, passou o drama da pandemia, mas, porque persistiu nas aventuras, na sequência da tentativa de salvar um banco e na recuperação de uma fundação, comprou um hospital e serviços equivalentes e engrossou o quadro dos colaboradores, os prejuízos vieram ao de cima. Ora, a receita da SCML (dinheiro público e doações de benfeitores para os pobres) não pode deixar de se encaminhar para a ação social. Não tem de ser repartida por departamentos do governo central (vários) ou dos governos das Regiões Autónomas, nem a SCML tem de substituir a ação social da Câmara Municipal de Lisboa. Tem de honrar a sua História plurissecular!

Enfim, precisa de voltar à misericórdia, respondendo a emergências e reperspetivando a ação social sistemática e estruturante, sem aventuras pírricas. Deve fazer verdadeira economia social, mas não bancária; ter um quadro suficiente de trabalhadores e pagar-lhes o justo salário, mas sem os enriquecer ilicitamente. E os maus gestores devem ser responsabilizados na medida adequada.  

2024.05.20 – Louro de Carvalho

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