A Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa (SCML) precisa de misericórdia, pois tem por missão o
desenvolvimento da ação social, nomeadamente no concelho de Lisboa, e o auxílio
aos que mais precisam, e precisa de justiça, pelo desaforo da sua administração
ao longo dos anos.
Depois de
auditorias remetidas ao Tribunal de Contas (TdC) e o Ministério Público (MP), a
mesa foi exonerada pela tutela com troca de “galhardetes” nada adequados a
governantes e a gestores públicos. A seguir, a requerimento da Iniciativa
Liberal (IL), foram ouvidas, na comissão parlamentar de Trabalho, Segurança
Social e Inclusão, personalidades que integravam a mesa ora exonerada (que não
esteve em funções, durante um ano) e a anterior – em que as acusações mútuas
constituíram um espetáculo, a todos os títulos dispensável, para não dizer
vergonhoso.
Agora, o
gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social admite ter
“dúvida” sobre se deve enviar o relatório final da auditoria aos negócios
internacionais SCML à comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, da Assembleia
da República (AR), por estar em curso “um processo de averiguações no Departamento
Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Em ofício enviado à Comissão de
Acesso dos Documentos Administrativos (CADA), o gabinete de Maria do Rosário
Palma Ramalho justifica a dúvida pelo facto de se encontrar em curso “um
processo de averiguações no Departamento Central de Investigação e Ação Penal
(DCIAP), sobre matéria versada no pretendido relatório”.
É também
referido que Francisco Pessoa e Costa, ex-administrador da SCML, pediu acesso
das conclusões da auditoria, alegando “ter interesse direto e pessoal” naquele
documento. A SCML e Pessoa e Costa estão em “guerra”, desde que aquele dirigente
foi destituído do cargo, por justa causa, em novembro de 2023, não tendo
aceitado a decisão e pedindo uma indemnização de aproximadamente 300 mil euros.
Por sua vez, a SCML exige ao ex-administrador perto de 61 milhões de euros, por
danos patrimoniais e não patrimoniais.
***
Nos últimos
anos, está em causa a criação da Santa Casa Global para a internacionalização
dos jogos, uma ação fracassada que representa um prejuízo de dezenas de milhões
de euros, a que se seguiu a alegada incapacidade da nova mesa de atacar o mal
pela raiz, não havendo um plano de reestruturação, mas tendo havido diretiva de
emergência e normas de conduta para futuro.
Todavia, as
aventuras da provedoria da
SCML não são apenas de agora. Esteve para investir 200 milhões de euros para
entrar na então Caixa Económica Montepio Geral.
O negócio era acarinhado pelo governo e permitia resolver o problema financeiro
do banco e do acionista (a Associação Mutualista Montepio), num alegado projeto
de economia social. Porém, o discurso junto da opinião pública para vender a
operação não convenceu os que alertavam para os
riscos, e, face à oposição, investiu apenas um valor simbólico de 75 mil euros,
no final de 2018. As contas mostram que a SCML tinha recursos para assumir o investimento da dimensão inicialmente pensada, o que não
quer dizer que fosse um bom negócio. Os jogos sociais captaram mais de
700 milhões, em 2018, sendo cerca de um terço desse total receita da SCML, que
gere ainda uma valioso património imobiliário.
O
Montepio não foi a única má jogada da instituição. Posicionou-se como a
principal interessada na compra do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP),
que enfrentava um quadro de fragilidade financeira. Em 2016, após a queda do
Grupo Espírito Santo (GES), a SCML fez parceria com a Fundação Ricardo Espírito
Santo para o restauro do património desta e passou a ser a sua principal
financiadora. E, em 2018, deu a mão à Raríssimas, associação que ajuda crianças
com doenças raras, caída em desgraça, após as irregularidades e desvios da
fundadora.
A
SCML acumulava lucros e chegou a haver excesso de liquidez por investir. Ao
mesmo tempo, a estrutura foi crescendo, com mais trabalhadores e, sobretudo,
com mais cargos de chefia (muitas chefias sem chefiados). Porém, também foi
marcada pela pandemia de covid-19.
Pelos
estatutos e pela lei, a SCML tem as seguintes fontes de receita: heranças, doações;
lucros da exploração de jogos; produto de vendas de bens e serviços;
comparticipações ou taxas pagas por
utentes; ganhos com gestão de património; prémios prescritos;
e doações do Estado.
O principal
rendimento é a exploração dos jogos sociais, atribuída pelo Estado, sem tempo
definido e em regime de exclusividade. O peso
dos jogos nas receitas totais tem vindo a crescer. Ainda no campo
dos jogos – contabilizado como receita autónoma – surgem os prémios caducados, por não serem
reclamados no prazo de três meses e que revertem a favor da SCML.
Fatia
importante das doações chega sob a forma de património imobiliário (um dos seus
principais ativos). Por exemplo, em 2017, o empresário e colecionador de arte Francisco Capelo
(antigo sócio de Joe Berardo) doou uma coleção de obras avaliada em sete
milhões de euros. Como contrapartida de algumas heranças, a SCLM assume
a obrigação de assegurar a conservação dos jazigos, para o qual fez uma
provisão para encargos perpétuos.
Segundo o
quadro legal, a SCML tem de distribuir uma parcela de 3,5% das receitas dos
jogos pelas entidades que foram objeto das apostas e que é repartido pelos
clubes ou pelos praticantes, conforme o caso, e pela federação ou liga que
organize o evento. Entre
as modalidades beneficiárias, estão os desportos fortes em Portugal, mas não
só. Em 2017 e 2018, foram registados cerca de 1,4 milhões de euros para o Hóquei no Gelo e para o Futebol Americano.
Todavia, a principal atividade da
Santa Casa é a ação social que presta a vários grupos vulneráveis, por vezes em
complemento ou em substituição do Estado. Idosos, crianças, jovens, deficientes
e doentes, são os principais destinatários das medidas de ação social que incluem
o pagamento de subsídios beneficiários. A SCML tem equipamentos com oferta para
estes grupos, mas também dá apoios domiciliários. Na segunda linha de despesas
surge a saúde, setor no qual a Santa Casa é proprietária de quatro instituições: o Hospital
Ortopédico Sant’Ana, na Parede, a Escola Superior e o Centro de Reabilitação de
Alcoitão e a unidade de cuidados integrados Maria José Nogueira Pinto, em
Cascais. De acordo com as contas disponíveis, todas estas instituições
apresentaram prejuízos, em 2019, e dependem financeiramente da Santa Casa.
Em 2015, a gestão de Santana Lopes pagou 14,8 milhões de euros ao Ministério da Defesa pelas
instalações do antigo Hospital Militar da Estrela, uma área de
16 mil metros quadrados numa zona nobre de Lisboa, para relançar, com a gestão
da SCML, os cuidados de saúde em algumas valências, incluindo cuidados
continuados, consultas externas e medicina de reabilitação.
Em 2020, a então futura Unidade de Cuidados Continuados Integrados Rainha Dona Leonor
(Complexo Hospital da Estrela) encontrava-se em fase adiantada de obra e previa-se
que a primeira fase (que contempla 91 camas) ficasse concluída no segundo
semestre, já contando com o normal processo de instalação dos equipamentos e
licenciamentos. Numa segunda fase, estava prevista a unidade de cuidados
continuados integrados pediátricos e, numa terceira fase, estava contemplada a
unidade de cuidados continuados integrados dedicada a doentes com demência.
Em 2018, a SCML devolveu, com juros, os cortes salariais impostos
aos funcionários com vínculo público, no quadro das medidas de austeridade
adotadas no Estado, em 2011 e 2012. Foram distribuídos 3,2 milhões de euros por
1100 colaboradores. Ainda que tal devolução tenha sido justificada por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
(STA), o conselho de auditoria aconselhava, no parecer às contas de 2018,
uma auditoria interna ao procedimento das
“ablações remuneratórias”, para verificar a sua regularidade e integralidade.
A SCML é pessoa coletiva de direito
privado e de utilidade pública administrativa, segundo os estatutos aprovados
em dezembro de 2008. A tutela é exercida pelo membro do governo responsável
pela Segurança Social, que define orientações
de gestão, assegura a fiscalização da atividade e assume o papel determinante
na nomeação dos órgãos sociais. O provedor é
nomeado por despacho conjunto do primeiro-ministro e do ministro
da Segurança Social. O seu vencimento é fixado pelo governo
com base no aplicável aos gestores públicos. O mandato é de três anos,
renováveis. O conselho de administração executivo é a “mesa”, liderada pelo
provedor e composta por mais seis membros, um vice-provedor e cinco vogais, nomeados
pelo ministro da tutela, ouvido o provedor. E a História recente revela a lógica do Bloco Central para lugares de
poder.
A Santa Casa está organizada em cinco
departamentos, liderados por um administrador executivo que é indicado pelo
provedor: Ação Social e Saúde; Qualidade e Inovação; Empreendedorismo e
economia social; Gestão imobiliária e de património; e Jogos.
O governo tem papel preponderante na indicação dos
membros dos órgãos de consulta e de fiscalização. O conselho institucional tem
representantes dos ministérios da Segurança Social, da Saúde, da Economia e da
tutela da administração local. Há um membro escolhido pela Irmandade da
Misericórdia de S. Roque, e três elementos indicados pelo provedor. E cabe-lhe
dar parecer sobre planos de atividades e orçamentos, bem como apresentar recomendações.
As várias tutelas do governo também estão representadas no Conselho de Jogos,
que dá pareceres sobre o plano de atividades e a exploração de jogos e sobre o
relatório e contas desta atividade.
A SCML tem uma História pluricentenária
que a associa à Igreja católica e mantém uma ligação a ela através da Irmandade
da Misericórdia S. Roque. Tem a sede na igreja da S. Roque, onde funciona um
museu com importante espólio de arte sacra. A irmandade é personalidade jurídica
de direito canónico. Cabe-lhe a tutela do “espírito cristão que enforma a ação
da Santa Casa”, que inclui o culto católico nas igrejas da Santa Casa. Esta
entidade é financiada pela Santa Casa com verba a definir pela mesa e deve
apresentar contas anuais.
A SCML é escrutinada a vários
níveis. O órgão de fiscalização interna é o conselho de auditoria, presidido
por um representante do Ministério das Finanças, e inclui um representante do
Ministério da Segurança Social e um revisor oficial de contas indicado pela
tutela. Está ainda sujeita à fiscalização das várias tutelas governamentais das
áreas em que atua. Assim, uma auditoria da Inspeção-Geral da Segurança Social (IGSS)
encontrou irregularidades na contratação pública. Esta auditoria apanhou
a gestão de Santana Lopes e ficou concluída em
2016, mas só foi homologada pela tutela em 2018. Porém, teve por consequência a
condenação de vários antigos gestores, por infrações de natureza sancionatória
por violação das normas de contratação pública, numa sentença proferida,
em 2018, pelo TdC. O então provedor foi sancionado em 10 mil euros e aceitou
pagar, outros contestaram multas que ascenderam a cerca de 28 mil euros.
Entretanto, a SCML adotou um código
de conduta para os fornecedores, cuja aceitação é um requisito obrigatório para
que haja celebração do contrato. E, como desenvolve as atividades de serviço ou
interesse público que lhe sejam solicitadas pelo Estado ou por outras entidades
públicas, tem direito a benefícios fiscais no pagamento de imposto sobre os
lucros e ao nível da tributação sobre imóveis. Porém, é no imposto sobre o
rendimento das pessoas coletivas (IRC) que residem os valores mais avultados.
***
Como as outras instituições, passou o
drama da pandemia, mas, porque persistiu nas aventuras, na sequência da tentativa
de salvar um banco e na recuperação de uma fundação, comprou um hospital e serviços
equivalentes e engrossou o quadro dos colaboradores, os prejuízos vieram ao de
cima. Ora, a receita da SCML (dinheiro público e doações de benfeitores para os
pobres) não pode deixar de se encaminhar para a ação social. Não tem de ser
repartida por departamentos do governo central (vários) ou dos governos das
Regiões Autónomas, nem a SCML tem de substituir a ação social da Câmara
Municipal de Lisboa. Tem de honrar a sua História plurissecular!
Enfim, precisa de voltar à misericórdia,
respondendo a emergências e reperspetivando a ação social sistemática e
estruturante, sem aventuras pírricas. Deve fazer verdadeira economia social,
mas não bancária; ter um quadro suficiente de trabalhadores e pagar-lhes o
justo salário, mas sem os enriquecer ilicitamente. E os maus gestores devem ser
responsabilizados na medida adequada.
2024.05.20 – Louro de Carvalho
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