Em quinta-feira
da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (ou do “Corpus Christi”), celebramos
o mistério eucarístico. A Eucaristia, como ensina o Catecismo da Igreja
Católica (CIC, 1407), “é o coração e o cume da vida da Igreja, pois, nela,
Cristo associa a sua Igreja e todos os seus membros ao seu próprio sacrifício
de louvor e de ação de graças oferecido ao Pai, uma vez por todas, na cruz; por
este sacrifício, derrama as graças da salvação sobre o seu corpo, que é a
Igreja”.
Esta solenidade
replica, já fora do Tempo Pascal, a instituição da Eucaristia por Jesus, antes
da sua entrega nas mãos dos malfeitores, agora já sem o espectro do luto e da
austeridade que a quadra impunha. A origem desta celebração fora do tempo
remonta ao século XIII, à Bélgica, mais precisamente a Liège, em que o bispo diocesano
atendeu ao pedido da Beata Juliana de Retìne, a freira que queria celebrar o
Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo fora da Semana Santa, pois, em 1208,
teve uma visão mística em que uma lua branca aparecia com uma sombra num dos
lados – imagem que representava a Igreja coeva, sem uma solenidade em honra do
Santíssimo Sacramento.
No entanto, a
extensão da solenidade a toda a Igreja é atribuída ao Papa Urbano IV, pela bula
“Transiturus”, de 11 de agosto de 1264, um ano após o milagre eucarístico de
Bolsena. Um sacerdote da Boémia, em peregrinação a Roma, durante a celebração
da Missa, na fração da hóstia consagrada, duvidou da presença real de Cristo.
Em resposta, algumas gotas de sangue saíram da hóstia, manchando o corporal de
linho branco, ainda hoje conservado na Catedral de Orvieto.
O trecho
evangélico que a Igreja nos oferece hoje (Mc 14,12-16-22-26)
ajuda a refletir sobre a centralidade deste mistério do dom do Amor, por
excelência, que Deus nos faz, ao dar-nos o seu Corpo e Sangue. Jesus envia os discípulos
a preparar o lugar onde vão comer a Páscoa. O primeiro aspeto a sublinhar é o
da preparação: para nos aproximarmos da Eucaristia e para vivermos a Páscoa, o
primeiro aspeto é prepararmo-nos: preparam-se coisas importantes. Uma festa, um
aniversário, um casamento são coisas a que damos importância e para as quais
nos preparamos. Todavia, muitas vezes, chegamos à Missa com pressa, distraídos
por mil coisas e mil pensamentos que nos enchem a cabeça e mal reparamos no
milagre que acontece ante os nossos olhos. Por vezes, bastaria chegar cinco
minutos mais cedo, para darmos ao cérebro o tempo fisiológico para se “desligar”
e entrar no ambiente propício à oração.
Depois de os
levar para o cenáculo, Jesus opera o milagre diante dos discípulos com as palavras
da Consagração: “Isto é o meu corpo”, “Este é o cálice do meu sangue”. A partir
desse momento, o Senhor inicia uma nova forma de estar presente na História. No
Sacramento do seu Amor, está connosco todos os dias, “até ao fim do Mundo”. É consolador
pensar que o Senhor está perto de nós, sempre que o queremos. O mesmo Jesus que,
há dois mil anos, andou pela terra a evangelizar, a consolar, a fazer milagres,
a ressuscitar os mortos, a curar as feridas dos corações aflitos, está hoje
presente em todos os tabernáculos do Mundo. Temos um tesouro imenso nas igrejas,
de que, muitas vezes, nos esquecemos. O pastorinho de Fátima, S. Francisco
Marto, passava horas a fazer companhia ao “Jesus escondido”. Jesus está ali, no
sacrário, e não há nada que Ele deseje mais do que a nossa companhia, não
porque precise de nós, mas porque sabe que somos nós que precisamos dele. Está
ali de mãos abertas, cheio de graças para nos dar, antes de mais o dom da sua
amizade e da sua consolação, o único que preenche o nosso coração. E nós, ante
este apelo do Senhor para não o deixarmos sozinho, onde é que nos colocamos?
Em primeira
leitura (Ex 24,3-8),
temos o ensejo de refletir que o ser humano sente a necessidade de validar com um gesto os
compromissos que assume. Em algumas tribos africanas, o pacto é ratificado de forma
simples: os dois contraentes pegam num longo fio de erva, partem-no e cada um
lança para trás das costas o pedaço que tem na mão. Assim, declaram o
empenhamento recíproco a lançar para longe de si qualquer divisão, divergência
ou conflito.
Na Antiguidade, eram solenes e complicados
os ritos com que os soberanos sancionavam a aliança com os vassalos. A Bíblia
refere alguns, utilizados também pelos Israelitas. O mais recorrente consistia
em dividir um vitelo em duas partes e fazer passar os contratantes pelo meio
delas, declarando estarem prontos a sofrer a sorte do animal, caso quebrassem o
pacto. É a este rito que faz referência a aliança estipulada por Deus com
Abraão, sendo de notar que, naquela ocasião, foi apenas o Senhor que passou,
numa chama ardente, entre os animais divididos.
A Aliança
nova, agora inaugurada por Cristo, é diferente: não há vitelo, mas o Corpo de
Cristo entregue por nós e o seu Sangue derramado pela multidão, ou seja, por todas as pessoas.
Em segunda
leitura (Heb 9,11-15), anotamos que expiar o pecado significa, na aceção comum, descontar a culpa,
sofrendo o castigo. Nas religiões pagãs, a expiação fazia-se mediante
sacrifícios e ofertas que tinham como finalidade aplacar a divindade ofendida.
Na Bíblia, a expiação tem outro significado. Não pretende acalmar
Deus irado, nem punir a pessoa pelo mal que fez, mas agir sobre o que
interrompeu a relação entre eles. Este modo diferente de entender a expiação
deriva de um modo diferente de conhecer Deus e o pecado. O Deus de Israel não
se volta contra o seu povo, mesmo se este foi infiel. Antes quer que se
converta, que regresse à vida; e, por isso, pede-lhe uma mudança nos
pensamentos, nas atitudes e nas ações.
Lendo a primeira parte do
trecho evangélico, apercebemo-nos de que se aproxima um momento dramático. Jesus
e os discípulos movem-se com circunspeção, porque estão em perigo, por causa do
ódio e das ameaças dos sumos-sacerdotes. Estão em Betânia e, para celebrarem a
ceia pascal, devem ir a Jerusalém, o lugar onde se pode comer o cordeiro. Há um
sinal de reconhecimento, combinado por Jesus com o proprietário de uma casa,
situada na parte alta da cidade, onde residem os ricos. E este sinal particular
acentua ainda o ar de mistério que envolve a cena. Dois discípulos precedem o
grupo para prepararem a ceia, no piso mais elevado da casa, uma sala ampla, já
pronta para a refeição. Para compreender a mensagem que o evangelista quer transmitir é
preciso ir para lá do que parece um relato estenográfico.
O primeiro pormenor a evidenciar
é que a iniciativa de celebrar a Páscoa não parte de Jesus, mas dos discípulos.
São eles que querem celebrar a libertação do Egito, a partir da qual teve
início a sua História. Não imaginam o que irá acontecer, nessa noite, durante o
jantar: como representantes das doze tribos de Israel, serão implicados na nova
Páscoa. O outro pormenor é o facto de a pessoa encarregada de acompanhar
os discípulos à sala do banquete ser um servo, que desempenha um serviço
reservado às mulheres. Não é detalhe banal, mas o sinal da mudança das relações
sociais. É a perceção desta mudança a guiar os discípulos ao lugar da festa, a
festa que Jesus está para iniciar. Na sala do banquete entra quem sabe ver as
pessoas de modo diferente, quem se deixa guiar pelos sinais surpreendentes de
Cristo: os ricos fazem-se pobres; os grandes tornam-se pequenos; os homens
assumem os serviços humildes até aí impostos às mulheres.
Também é importante a cuidadosa
descrição da sala: espaçosa, porque se destina a acolher muitas pessoas;
situada no alto, como o monte de onde ecoava a palavra do Senhor; e mobilada
com divãs, porque quem entra, mesmo se pobre, miserável ou escravo, adquire a
liberdade. Estes pormenores referem-se, de modo evidente, à santa Ceia
celebrada nas comunidades cristãs.
A Eucaristia não é para o
indivíduo, só para permitir a cada um encontrar pessoalmente Cristo, para
favorecer o fervor individual ou alguma forma de isolacionismo espiritual. A
Eucaristia é o alimento da pessoa e da comunidade, é o pão partido e partilhado
entre os irmãos, porque é a comunidade o sinal da Humanidade nova, nascida da
ressurreição de Jesus Cristo.
A porta da grande sala, que se
encontra no alto, está sempre escancarada, para que todas as pessoas possam
entrar. O banquete do reino de Deus, anunciado pelos profetas, está preparado “para
todos os povos”, todos devem ser acolhidos, ninguém está excluído do amor de
Deus. Para Deus, não há pessoas puras e pessoas impuras, gente digna e gente
indigna; diante da Eucaristia, todos estão no mesmo plano, são pecadores,
indignos, mas convidados a entrar em comunhão com Cristo.
A fé da Igreja na presença do seu Senhor ressuscitado no
mistério da Eucaristia remonta à origem da comunidade cristã. São Paulo
transmite o que recebeu da tradição – a narração mais escrita antiga da
Eucaristia –, cerca de 25 anos após a morte de Jesus. A Igreja nunca abandonou
esta centralidade. E o Evangelho de Marcos dá-nos um relato semelhante da
instituição da Eucaristia.
Em meados do século XIII, numa época em que se comungava
muito pouco e onde se levantavam dúvidas sobre a presença real de Jesus na
hóstia consagrada, depois da celebração da Eucaristia, a Igreja respondeu, não
com longos discursos, mas com um ato: Jesus está verdadeiramente presente,
mesmo depois da missa. E para provar esta fé, criou-se o hábito de organizar
procissões com a hóstia consagrada pelas ruas, fora das igrejas.
Hoje, não é raro encontrar católicos que põem em dúvida esta
permanência da presença Jesus no pão eucarístico. As palavras de Jesus
esclarecem-nos: “Isto é o meu Corpo… Este cálice é a nova Aliança no meu sangue”.
Estas afirmações de Jesus, em Quinta-feira Santa, não dependiam nem da fé, nem
da compreensão dos apóstolos. É Jesus que Se compromete, que dá o pão como seu
corpo, o cálice de vinho como cálice da nova Aliança no seu sangue. Só Ele pode
ter influência neste pão e neste vinho. Hoje, é o sacerdote ordenado que
pronuncia as palavras de Jesus, mas não é ele que lhes dá sentido e realidade.
É sempre Jesus ressuscitado que se compromete, como na noite de Quinta-feira Santa.
O sacerdote e toda a comunidade com ele são convidados a aderir, na fé, a esta
ação de Jesus. Mas não têm o poder de retirar a eficácia das palavras que não
lhes pertencem. A Igreja tem razão em celebrar esta permanência da presença de
Jesus. Que esta seja para nós fonte de maravilhamento e de ação de graças.
Não basta acreditar. Na verdade, como a lei biológica da
nossa condição humana determina que é preciso comer para viver, também a nossa
vida espiritual exige ser alimentada e cuidada, para crescer e ser fecunda.
Jesus revela todo o seu amor pelos homens e o seu desejo de os saciar com o
verdadeiro alimento: a sua própria vida, o seu corpo entregue como Pão da Vida,
o seu sangue derramado como Sangue da Aliança. Assim, comungar é ser alimentado
pela vida de Jesus, enriquecido pelas suas próprias forças, ser capaz do seu
amor. Do mesmo modo que comemos para viver, comungamos na Eucaristia para vivermos
como discípulos de Jesus.
A Eucaristia é verdadeiramente “vital” para nós? Se não o
for, um período de jejum eucarístico, um tempo de retiro espiritual para lhe
descobrir o sentido, podem ajudar a reencontrar a grandeza deste sacramento. Se
assim for, procuremos rezar por aqueles que são privados da Eucaristia e
sofrem, e peçamos ao Senhor para lhes dar de novo a graça do seu amor.
***
Em suma, há dez coisas que todo
cristão deveria saber em relação a este grande milagre:
1. Jesus, reunido com os apóstolos durante a Última Ceia, instituiu o
sacramento da Eucaristia: “Tomai e comei; isto é meu corpo…” Assim, fez com que
os apóstolos participassem do seu sacerdócio e mandou que fizessem o mesmo em
memória dele.
2. A palavra Eucaristia, derivada do termo grego “eucharistía”, significa “ação de
graças” e aplica-se a este sacramento, porque o Senhor deu graças ao Pai,
quando a instituiu, e porque o Santo Sacrifício da Missa é a melhor forma de dar
graças a Deus pela sua bondade.
3. O Concílio de Trento define: “No Santíssimo Sacramento da Eucaristia
está contido, verdadeira, real e substancialmente, o Corpo e Sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo, junto a sua Alma e Divindade. Em realidade Cristo se faz
presente integralmente.”
4. Na Santa Missa, os bispos e os presbíteros transformam, realmente, o
pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, durante a consagração.
5. Comungar é receber Cristo sacramentado na Eucaristia. A Igreja manda
comungar, pelo menos, uma vez ao ano, em estado de graça, e recomenda a
comunhão frequente. É muito importante receber a Primeira Comunhão quando a
pessoa chega ao uso da razão, com a devida preparação.
6. O jejum eucarístico consiste em deixar de comer qualquer alimento ou
bebida, ao menos uma hora, antes da Sagrada Comunhão, exceto água e remédios.
Os doentes e os seus cuidadores podem comungar, mesmo tenham tomado algo na
hora imediatamente antes.
7. Quem comunga em pecado mortal comete pecado grave de sacrilégio. Quem
deseja comungar e está em pecado mortal não pode receber a Comunhão, sem antes
receber o sacramento da Penitência (Confissão ou Reconciliação), pois, para
comungar, não basta o ato de contrição, exceto na impossibilidade da confissão,
mas com a intenção de se confessar logo que possível.
8. Frequentar a Santa Missa é ato de amor a Deus, que
deve brotar, naturalmente, de cada cristão; e é obrigação guardar os domingos e
festas religiosas de preceito, salvo quando se está impedido por causa grave.
9. A Eucaristia no Sacrário é sinal pelo qual o Senhor está
constantemente presente no meio do seu povo e é alimento espiritual para doentes
e moribundos. Devemos dar sempre o nosso agradecimento, adoração e devoção à
real presença de Cristo no Santíssimo Sacramento.
10. A Solenidade de Corpus Christi celebra-se na quinta-feira subsequente
à Solenidade da Santíssima Trindade. Porém, dioceses onde não é feriado
celebram-na no domingo posterior.
***
Laus Deo!
2024.05.30 – Louro de Carvalho
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