quinta-feira, 30 de maio de 2024

“A Eucaristia é o coração e o cume da vida da Igreja”

 

Em quinta-feira da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (ou do “Corpus Christi”), celebramos o mistério eucarístico. A Eucaristia, como ensina o Catecismo da Igreja Católica (CIC, 1407), “é o coração e o cume da vida da Igreja, pois, nela, Cristo associa a sua Igreja e todos os seus membros ao seu próprio sacrifício de louvor e de ação de graças oferecido ao Pai, uma vez por todas, na cruz; por este sacrifício, derrama as graças da salvação sobre o seu corpo, que é a Igreja”.

Esta solenidade replica, já fora do Tempo Pascal, a instituição da Eucaristia por Jesus, antes da sua entrega nas mãos dos malfeitores, agora já sem o espectro do luto e da austeridade que a quadra impunha. A origem desta celebração fora do tempo remonta ao século XIII, à Bélgica, mais precisamente a Liège, em que o bispo diocesano atendeu ao pedido da Beata Juliana de Retìne, a freira que queria celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo fora da Semana Santa, pois, em 1208, teve uma visão mística em que uma lua branca aparecia com uma sombra num dos lados – imagem que representava a Igreja coeva, sem uma solenidade em honra do Santíssimo Sacramento.

No entanto, a extensão da solenidade a toda a Igreja é atribuída ao Papa Urbano IV, pela bula “Transiturus”, de 11 de agosto de 1264, um ano após o milagre eucarístico de Bolsena. Um sacerdote da Boémia, em peregrinação a Roma, durante a celebração da Missa, na fração da hóstia consagrada, duvidou da presença real de Cristo. Em resposta, algumas gotas de sangue saíram da hóstia, manchando o corporal de linho branco, ainda hoje conservado na Catedral de Orvieto.

O trecho evangélico que a Igreja nos oferece hoje (Mc 14,12-16-22-26) ajuda a refletir sobre a centralidade deste mistério do dom do Amor, por excelência, que Deus nos faz, ao dar-nos o seu Corpo e Sangue. Jesus envia os discípulos a preparar o lugar onde vão comer a Páscoa. O primeiro aspeto a sublinhar é o da preparação: para nos aproximarmos da Eucaristia e para vivermos a Páscoa, o primeiro aspeto é prepararmo-nos: preparam-se coisas importantes. Uma festa, um aniversário, um casamento são coisas a que damos importância e para as quais nos preparamos. Todavia, muitas vezes, chegamos à Missa com pressa, distraídos por mil coisas e mil pensamentos que nos enchem a cabeça e mal reparamos no milagre que acontece ante os nossos olhos. Por vezes, bastaria chegar cinco minutos mais cedo, para darmos ao cérebro o tempo fisiológico para se “desligar” e entrar no ambiente propício à oração.

Depois de os levar para o cenáculo, Jesus opera o milagre diante dos discípulos com as palavras da Consagração: “Isto é o meu corpo”, “Este é o cálice do meu sangue”. A partir desse momento, o Senhor inicia uma nova forma de estar presente na História. No Sacramento do seu Amor, está connosco todos os dias, “até ao fim do Mundo”. É consolador pensar que o Senhor está perto de nós, sempre que o queremos. O mesmo Jesus que, há dois mil anos, andou pela terra a evangelizar, a consolar, a fazer milagres, a ressuscitar os mortos, a curar as feridas dos corações aflitos, está hoje presente em todos os tabernáculos do Mundo. Temos um tesouro imenso nas igrejas, de que, muitas vezes, nos esquecemos. O pastorinho de Fátima, S. Francisco Marto, passava horas a fazer companhia ao “Jesus escondido”. Jesus está ali, no sacrário, e não há nada que Ele deseje mais do que a nossa companhia, não porque precise de nós, mas porque sabe que somos nós que precisamos dele. Está ali de mãos abertas, cheio de graças para nos dar, antes de mais o dom da sua amizade e da sua consolação, o único que preenche o nosso coração. E nós, ante este apelo do Senhor para não o deixarmos sozinho, onde é que nos colocamos?

Em primeira leitura (Ex 24,3-8), temos o ensejo de refletir que o ser humano sente a necessidade de validar com um gesto os compromissos que assume. Em algumas tribos africanas, o pacto é ratificado de forma simples: os dois contraentes pegam num longo fio de erva, partem-no e cada um lança para trás das costas o pedaço que tem na mão. Assim, declaram o empenhamento recíproco a lançar para longe de si qualquer divisão, divergência ou conflito.

Na Antiguidade, eram solenes e complicados os ritos com que os soberanos sancionavam a aliança com os vassalos. A Bíblia refere alguns, utilizados também pelos Israelitas. O mais recorrente consistia em dividir um vitelo em duas partes e fazer passar os contratantes pelo meio delas, declarando estarem prontos a sofrer a sorte do animal, caso quebrassem o pacto. É a este rito que faz referência a aliança estipulada por Deus com Abraão, sendo de notar que, naquela ocasião, foi apenas o Senhor que passou, numa chama ardente, entre os animais divididos.

A Aliança nova, agora inaugurada por Cristo, é diferente: não há vitelo, mas o Corpo de Cristo entregue por nós e o seu Sangue derramado pela multidão, ou seja, por todas as pessoas.

Em segunda leitura (Heb 9,11-15), anotamos que expiar o pecado significa, na aceção comum, descontar a culpa, sofrendo o castigo. Nas religiões pagãs, a expiação fazia-se mediante sacrifícios e ofertas que tinham como finalidade aplacar a divindade ofendida. Na Bíblia, a expiação tem outro significado. Não pretende acalmar Deus irado, nem punir a pessoa pelo mal que fez, mas agir sobre o que interrompeu a relação entre eles. Este modo diferente de entender a expiação deriva de um modo diferente de conhecer Deus e o pecado. O Deus de Israel não se volta contra o seu povo, mesmo se este foi infiel. Antes quer que se converta, que regresse à vida; e, por isso, pede-lhe uma mudança nos pensamentos, nas atitudes e nas ações.

Lendo a primeira parte do trecho evangélico, apercebemo-nos de que se aproxima um momento dramático. Jesus e os discípulos movem-se com circunspeção, porque estão em perigo, por causa do ódio e das ameaças dos sumos-sacerdotes. Estão em Betânia e, para celebrarem a ceia pascal, devem ir a Jerusalém, o lugar onde se pode comer o cordeiro. Há um sinal de reconhecimento, combinado por Jesus com o proprietário de uma casa, situada na parte alta da cidade, onde residem os ricos. E este sinal particular acentua ainda o ar de mistério que envolve a cena. Dois discípulos precedem o grupo para prepararem a ceia, no piso mais elevado da casa, uma sala ampla, já pronta para a refeição. Para compreender a mensagem que o evangelista quer transmitir é preciso ir para lá do que parece um relato estenográfico.

O primeiro pormenor a evidenciar é que a iniciativa de celebrar a Páscoa não parte de Jesus, mas dos discípulos. São eles que querem celebrar a libertação do Egito, a partir da qual teve início a sua História. Não imaginam o que irá acontecer, nessa noite, durante o jantar: como representantes das doze tribos de Israel, serão implicados na nova Páscoa. O outro pormenor é o facto de a pessoa encarregada de acompanhar os discípulos à sala do banquete ser um servo, que desempenha um serviço reservado às mulheres. Não é detalhe banal, mas o sinal da mudança das relações sociais. É a perceção desta mudança a guiar os discípulos ao lugar da festa, a festa que Jesus está para iniciar. Na sala do banquete entra quem sabe ver as pessoas de modo diferente, quem se deixa guiar pelos sinais surpreendentes de Cristo: os ricos fazem-se pobres; os grandes tornam-se pequenos; os homens assumem os serviços humildes até aí impostos às mulheres.

Também é importante a cuidadosa descrição da sala: espaçosa, porque se destina a acolher muitas pessoas; situada no alto, como o monte de onde ecoava a palavra do Senhor; e mobilada com divãs, porque quem entra, mesmo se pobre, miserável ou escravo, adquire a liberdade. Estes pormenores referem-se, de modo evidente, à santa Ceia celebrada nas comunidades cristãs.

A Eucaristia não é para o indivíduo, só para permitir a cada um encontrar pessoalmente Cristo, para favorecer o fervor individual ou alguma forma de isolacionismo espiritual. A Eucaristia é o alimento da pessoa e da comunidade, é o pão partido e partilhado entre os irmãos, porque é a comunidade o sinal da Humanidade nova, nascida da ressurreição de Jesus Cristo.

A porta da grande sala, que se encontra no alto, está sempre escancarada, para que todas as pessoas possam entrar. O banquete do reino de Deus, anunciado pelos profetas, está preparado “para todos os povos”, todos devem ser acolhidos, ninguém está excluído do amor de Deus. Para Deus, não há pessoas puras e pessoas impuras, gente digna e gente indigna; diante da Eucaristia, todos estão no mesmo plano, são pecadores, indignos, mas convidados a entrar em comunhão com Cristo.

A fé da Igreja na presença do seu Senhor ressuscitado no mistério da Eucaristia remonta à origem da comunidade cristã. São Paulo transmite o que recebeu da tradição – a narração mais escrita antiga da Eucaristia –, cerca de 25 anos após a morte de Jesus. A Igreja nunca abandonou esta centralidade. E o Evangelho de Marcos dá-nos um relato semelhante da instituição da Eucaristia.

Em meados do século XIII, numa época em que se comungava muito pouco e onde se levantavam dúvidas sobre a presença real de Jesus na hóstia consagrada, depois da celebração da Eucaristia, a Igreja respondeu, não com longos discursos, mas com um ato: Jesus está verdadeiramente presente, mesmo depois da missa. E para provar esta fé, criou-se o hábito de organizar procissões com a hóstia consagrada pelas ruas, fora das igrejas.

Hoje, não é raro encontrar católicos que põem em dúvida esta permanência da presença Jesus no pão eucarístico. As palavras de Jesus esclarecem-nos: “Isto é o meu Corpo… Este cálice é a nova Aliança no meu sangue”. Estas afirmações de Jesus, em Quinta-feira Santa, não dependiam nem da fé, nem da compreensão dos apóstolos. É Jesus que Se compromete, que dá o pão como seu corpo, o cálice de vinho como cálice da nova Aliança no seu sangue. Só Ele pode ter influência neste pão e neste vinho. Hoje, é o sacerdote ordenado que pronuncia as palavras de Jesus, mas não é ele que lhes dá sentido e realidade. É sempre Jesus ressuscitado que se compromete, como na noite de Quinta-feira Santa. O sacerdote e toda a comunidade com ele são convidados a aderir, na fé, a esta ação de Jesus. Mas não têm o poder de retirar a eficácia das palavras que não lhes pertencem. A Igreja tem razão em celebrar esta permanência da presença de Jesus. Que esta seja para nós fonte de maravilhamento e de ação de graças.

Não basta acreditar. Na verdade, como a lei biológica da nossa condição humana determina que é preciso comer para viver, também a nossa vida espiritual exige ser alimentada e cuidada, para crescer e ser fecunda. Jesus revela todo o seu amor pelos homens e o seu desejo de os saciar com o verdadeiro alimento: a sua própria vida, o seu corpo entregue como Pão da Vida, o seu sangue derramado como Sangue da Aliança. Assim, comungar é ser alimentado pela vida de Jesus, enriquecido pelas suas próprias forças, ser capaz do seu amor. Do mesmo modo que comemos para viver, comungamos na Eucaristia para vivermos como discípulos de Jesus.

A Eucaristia é verdadeiramente “vital” para nós? Se não o for, um período de jejum eucarístico, um tempo de retiro espiritual para lhe descobrir o sentido, podem ajudar a reencontrar a grandeza deste sacramento. Se assim for, procuremos rezar por aqueles que são privados da Eucaristia e sofrem, e peçamos ao Senhor para lhes dar de novo a graça do seu amor.

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Em suma, há dez coisas que todo cristão deveria saber em relação a este grande milagre:

1. Jesus, reunido com os apóstolos durante a Última Ceia, instituiu o sacramento da Eucaristia: “Tomai e comei; isto é meu corpo…” Assim, fez com que os apóstolos participassem do seu sacerdócio e mandou que fizessem o mesmo em memória dele.

2. A palavra Eucaristia, derivada do termo grego “eucharistía”, significa “ação de graças” e aplica-se a este sacramento, porque o Senhor deu graças ao Pai, quando a instituiu, e porque o Santo Sacrifício da Missa é a melhor forma de dar graças a Deus pela sua bondade.

3. O Concílio de Trento define: “No Santíssimo Sacramento da Eucaristia está contido, verdadeira, real e substancialmente, o Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, junto a sua Alma e Divindade. Em realidade Cristo se faz presente integralmente.”

4. Na Santa Missa, os bispos e os presbíteros transformam, realmente, o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo, durante a consagração.

5. Comungar é receber Cristo sacramentado na Eucaristia. A Igreja manda comungar, pelo menos, uma vez ao ano, em estado de graça, e recomenda a comunhão frequente. É muito importante receber a Primeira Comunhão quando a pessoa chega ao uso da razão, com a devida preparação.

6. O jejum eucarístico consiste em deixar de comer qualquer alimento ou bebida, ao menos uma hora, antes da Sagrada Comunhão, exceto água e remédios. Os doentes e os seus cuidadores podem comungar, mesmo tenham tomado algo na hora imediatamente antes.

7. Quem comunga em pecado mortal comete pecado grave de sacrilégio. Quem deseja comungar e está em pecado mortal não pode receber a Comunhão, sem antes receber o sacramento da Penitência (Confissão ou Reconciliação), pois, para comungar, não basta o ato de contrição, exceto na impossibilidade da confissão, mas com a intenção de se confessar logo que possível.

8. Frequentar a Santa Missa é ato de amor a Deus, que deve brotar, naturalmente, de cada cristão; e é obrigação guardar os domingos e festas religiosas de preceito, salvo quando se está impedido por causa grave.

9. A Eucaristia no Sacrário é sinal pelo qual o Senhor está constantemente presente no meio do seu povo e é alimento espiritual para doentes e moribundos. Devemos dar sempre o nosso agradecimento, adoração e devoção à real presença de Cristo no Santíssimo Sacramento.

10. A Solenidade de Corpus Christi celebra-se na quinta-feira subsequente à Solenidade da Santíssima Trindade. Porém, dioceses onde não é feriado celebram-na no domingo posterior.

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Laus Deo!

2024.05.30 – Louro de Carvalho

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