Lily Greenberg Call, judia americana que exercia funções na Administração
Biden, tornou-se a primeira figura de nomeação política a demitir-se, em aberta
discordância da política norte-americana relativamente a Gaza. À comunicação
social contou como foi o seu processo interior e releva como os valores do
judaísmo, em que cresceu, foram vitais para a sua decisão.
Tendo colaborado nas campanhas presidenciais de Kamala Harris e de Joe
Biden, passou a exercer funções de secretária especial no gabinete de Deb
Haaland, secretária do Interior dos Estados Unidos (EUA).
Oriunda de uma família que escapou à perseguição antissemita, na Europa,
encontrou refúgio nos EUA, acreditou que a Administração Biden, entre outros
valores, trabalharia por “um planeta saudável” e por “direitos iguais para todas
as pessoas” e sentiu-se inspirada por Deb Haaland, pelo seu histórico de
princípios na defesa de causas progressistas e pelo seu papel como mulher
indígena a liderar um departamento que provocara danos às comunidades
indígenas, com o potencial que isso tem para reparações, para reconciliação e para
cura.
Porém, não pode, em sã consciência, continuar a representar aquela
administração, devido ao desastroso e contínuo apoio do presidente Biden ao
genocídio de Israel em Gaza. Com efeito, ao longo dos últimos oito meses, tem-se
interrogado, muitas vezes, sobre qual “o sentido de ter poder, se não o usamos
para impedir crimes contra a Humanidade”.
Educada que foi na comunidade judaica, nos EUA e em Israel, a que se mantém
ligada, tendo vivido e aprendido Hebraico e Árabe em Israel, onde tem
familiares e amigos, incluindo nas forças armadas, algumas das quais perderam
entes queridos no ataque do Hamas, a 7 de outubro, diz-se “aterrorizada com o
aumento do antissemitismo em todo o Mundo”. Apesar disso e talvez por isso,
Lily contrapõe, na carta de demissão, divulgada na rede digital X: “No entanto, estou segura de que a
resposta a esta questão não é punir, coletivamente, milhões de Palestinianos
inocentes, através da deslocação, da fome e da limpeza étnica. A ofensiva
contínua de Israel contra os Palestinianos não mantém o povo judeu seguro – em
Israel nem nos Estados Unidos. O que aprendi com a minha tradição judaica é que
cada vida é preciosa. Que somos obrigados a defender aqueles que enfrentam
violência e opressão e a questionar a autoridade, face à injustiça.”
A demissionária aponta as mais de 35 mil pessoas que Israel matou em Gaza,
incluindo 15 mil crianças; e os bombardeamentos feitos pelos militares
israelitas sobre infraestruturas médicas, tendo sitiado um hospital, deixado
valas comuns para trás, destruindo todas as universidades de Gaza, atacando
jornalistas e trabalhadores humanitários. E escreve: “Todas estas [ações]
são violações do direito internacional, nenhuma das quais seria possível sem as
armas americanas, e nenhuma delas foi condenada pelo presidente Biden. O presidente
tem o poder de exigir um cessar-fogo duradouro, de parar de enviar armas a
Israel e de condicionar a ajuda. Os Estados Unidos quase não usaram nenhuma
influência, ao longo dos últimos oito meses, para responsabilizar Israel; muito
pelo contrário, permitimos e legitimamos as ações de Israel com vetos às resoluções
da ONU [Organização das Nações Unidas], destinadas a responsabilizar Israel. O
presidente Biden tem o sangue de pessoas inocentes nas mãos.”
Escreveu a carta de demissão a 15 de maio, dia da Nakba, que recorda a
destruição da sociedade e da pátria palestiniana, em 1948, e a expulsão da
maioria do povo palestiniano, para a formação do Estado de Israel. Para ela, a
Nakba e a Shoah (termo hebraico para Holocausto) significam a mesma coisa:
catástrofe. Por isso, a jovem rejeita a premissa de que a salvação de um povo
deve resultar da destruição de outro povo. E diz mais: “Qualquer sistema que
exija a subjugação de um grupo em detrimento de outro não é apenas injusto, mas
também inseguro. A segurança judaica não pode vir – e não virá – pondo em causa
a liberdade palestiniana. Fazer dos judeus a face da máquina de guerra americana
torna-nos menos seguros.”
A repercussão da carta de demissão, que ecoou nos media norte-americanos,
foi tema de capa no Washington Post.
E, numa entrevista ao canal digital Demcracy
Now, Lily Greenberg Call, faz a relação entre a decisão de romper com a
Administração Biden e de dar sinal público disso e a sua vivência como membro
da religião judaica. Interrogada sobre isso, recordou os cerca de 20 anos de educação
judaica, o estudo dos textos religiosos e os valores referenciais que adquiriu.
O Judaísmo tem a ideia de pikuach nefesh (salvar
uma vida), que substitui qualquer outro mandamento. Cada um pode quebrar
qualquer mandamento, se isso salvar uma vida. Com efeito, “salvar uma vida é
salvar o Mundo inteiro”. Há também a ideia de b’tselem elohim (cada
pessoa é feita à imagem de Deus). Por outro lado, o Judaísmo está impregnado de
um êthos orientado para a justiça. Assim, ao defender
os Palestinianos e exigindo a sua liberdade, sente-se a viver o seu judaísmo,
na essência daquilo em que foi criada.
Refere que, na sua juventude, defender Israel era, para si, “o caminho para
proteger os Judeus do antissemitismo”. Todavia, especialmente nos últimos oito
anos, houve coisas que a fizeram ir mudando de posição. A primeira foi que o
seu Mundo se expandiu. Conheceu Palestinianos americanos. Trabalhou com refugiados
Sírios palestinianos na Grécia. Viu com os próprios olhos injustiças que os Palestinianos
enfrentam em Israel-Palestina, como os postos de controlo, o sistema
de apartheid. Estudando Árabe, teve contacto com a cultura
e com a vida palestiniana.
Ao mesmo tempo, a coligação de pessoas pró-Israel a que pertencia, há anos,
a AIPAC – American Israel Public Affairs Committee, começou a mover-se para a
direita, com a chegada de Trump ao poder e com o governo israelita a
deslocar-se para a direita. Face a tais mudanças, começou a ver as pessoas com
quem passou anos a fazer a defesa pró-Israel, em particular os cristãos evangélicos,
a apoiar Trump, fascistas de direita nos EUA e pessoas que se alinhavam com os
brancos supremacistas e antissemitas. Começou, então, a perceber que talvez
essas pessoas não estivessem ali porque investiram nos Judeus e na segurança
judaica.
Assim, começou a perceber que lhe tinham contado uma mentira, que o status quo é insustentável, e que não é apenas
devastador para os Palestinianos, sendo que o 7 de outubro deixou muito claro
que não mantém os Israelitas seguros. Ora, se quisermos, realmente, criar um
futuro próspero para os Israelitas, para os Palestinianos, para os Judeus, para
as comunidades com que nos preocupamos, na América, “algo tem de mudar”.
***
A Amnistia Internacional Portugal (AIP) lançou, 14 de
maio, nova campanha pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza, desafiando as pessoas a
escreverem cartas aos deputados/as eleitos/as pelo seu círculo eleitoral,
“exigindo-lhes que trabalhem a uma só voz por um cessar-fogo imediato por todas
as partes, a fim de libertar os reféns e de pôr termo ao sofrimento e mortes de
civis”.
A carta a enviar pode ser encontrada no site da AIP. Ao preencher o
formulário, com a indicação do distrito onde se exerce o direito de voto, a carta
é automaticamente enviada aos respetivos/as deputados/as desse distrito. “O
apelo é simples: para que se empenhem e atuem enquanto deputado/a da Nação,
desenvolvendo todos os esforços no Parlamento, junto do governo da República
Portuguesa, e por todos os meios ao seu dispor, com fim a alcançar um
cessar-fogo duradouro na Faixa de Gaza”, pode ler-se na missiva.
O cessar-fogo tem sido apelo constante da AIP – e esta
campanha reforça-o. Segundo Pedro Neto, diretor executivo da AIP, pela
evidência de destruição, pelos números de feridos e de mortos que se somam,
pela ajuda humanitária a conta-gotas e pela escassez de comida e de material
médico, sabe-se que a via para a paz se faz pelo cessar-fogo. Não há outro
atalho. Por isso, a AI quer envolver todas as pessoas, incentivando-as a
escrever aos deputados/as dos vários círculos eleitorais, desafiando-os/as a
tornarem este apelo parte integrante do seu trabalho e conversações.
A AIP alerta que, “de acordo com a Classificação
Integrada das Fases de Segurança Alimentar e Nutricional, a situação de fome
que vivem as pessoas na Faixa de Gaza atingiu a maior proporção alguma vez
registada numa população em crise de segurança alimentar. “Há meses que as
famílias bebem água que não é potável, passando também dias seguidos sem comida.
O sistema de saúde entrou em colapso total, devido a surtos de doenças e
ferimentos graves provocados pelos constantes bombardeamentos. A severa
desnutrição, a desidratação e outras doenças relacionadas têm também provocado
mortes. Em março, as Nações Unidas também divulgaram que, no Norte da Faixa de
Gaza, uma em cada seis crianças com menos de dois anos sofria de subnutrição
aguda. Sem um cessar-fogo e caso o acesso humanitário continue a ser interdito
pelas autoridades israelitas, seguir-se-ão mais mortes por fome e doença”,
sublinha o comunicado da AIP.
A AIP partilhou o testemunho de um trabalhador da
Organização na Faixa de Gaza, que detalha esta realidade: “Pela primeira
vez, em seis meses, foi autorizada a entrada de frango congelado em Rafah.
Sentimo-nos felizes pelas crianças, mas também mal conseguimos conter as
lágrimas: será que conseguimos imaginar que comer frango congelado se tornou um
sonho para elas?”
Este trabalhador abordava também a falta de opção para
os civis palestinianos que estavam a ser pressionados para abandonar Rafah, sob
a iminência de uma operação terrestre em grande escala por parte de Israel:
“Como toda a gente em Rafah, estamos aterrorizados com qualquer invasão
terrestre israelita. Para onde é que vamos a seguir? Outra deslocação? Mas não
há nenhum sítio na Faixa de Gaza que tenha sido poupado à destruição […]. Rafah
– a Leste e a Oeste – está cheia de pessoas deslocadas internamente, nem sequer
se pode lá colocar outra tenda. […] Para onde é que se vai quando não há nenhum
sítio seguro?”
Sobre a situação em Rafah, a AI frisa que todos os
Estados devem pressionar Israel a suspender, imediatamente, as operações
terrestres na região e a garantir o acesso, sem restrições, à ajuda
humanitária, em conformidade com as suas obrigações de prevenir o genocídio,
tal como reiterado, a 28 de março pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ),
com sede em Haia. Enfim, a AIP propõe que a carta aos deputados vinque: “Esta é
a hora de as armas se silenciarem.”
***
Também 20 organizações fizeram declaração conjunta, subscrita
e divulgada, a 15 de maio, pela AI, a criticar a inação dos líderes mundiais
face à invasão israelita de Rafah. A declaração apela à ação dos países
terceiros para porem termo às violações do Direito Internacional Humanitário em
Gaza e responsabiliza os EUA pelo fornecimento de armas aos Israelitas,
apelando a que estes usem a sua capacidade de influência, para acabar a
operação militar em Rafah.
O único resultado da invasão terrestre em Rafah é o aumento
do sofrimento humano. As pessoas estão a ser empurradas à força para as
sobrelotadas chamadas zonas humanitárias, onde muitas pessoas não encontram
abrigo. Há que exercer a máxima pressão sobre Israel e sobre a comunidade
internacional para que ponham fim às repetidas deslocações forçadas da
população de Gaza. É importante garantir a reabertura da passagem de Rafah, a
única salvação para mais de dois milhões de pessoas vulneráveis.
Segundo Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo em
França, a invasão militar israelita de Rafah fez recuar o socorro, em outubro,
quando teve de interromper quase todas as suas operações. A equipa teve de
fugir de Rafah e não sabe para onde ir. Teve de encerrar as duas clínicas que
tinha aberto no local, onde tratou cerca de 500 pessoas por dia. Está, agora, a
montar novo campo médico no local para onde as pessoas fugiram, mas isso vai
demorar alguns dias. As pessoas ficam sem acesso a cuidados de saúde. Israel
tem de ser impedido de entrar em Rafah ou Gaza enfrentará uma catástrofe
humanitária ainda maior. A inação de países terceiros revela falta de preocupação
com a população civil exausta, o que é inaceitável.
“Devem ser tomadas medidas imediatas para evitar mais
sofrimento”, vinca Florence Rigal.
***
Entretanto, o TIJ, cujas decisões são vinculativas, a 24 de
maio, ordenou que Israel suspenda, imediatamente,
“a ofensiva militar, bem como qualquer outra ação”, em Rafah, “que possa
infligir ao grupo palestiniano, em Gaza, condições de vida suscetíveis de
provocar a sua destruição física total ou parcial”. E deve apresentar
relatório, no prazo de 90 dias, sobre as medidas decididas.
Israel diz que vai cumprir, mas o
cessar-fogo não está em vigor.
2024.05.25 –
Louro de Carvalho
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