domingo, 26 de maio de 2024

Contínua ofensiva de Israel à Palestina deixa inseguro o povo judeu

 

 

Lily Greenberg Call, judia americana que exercia funções na Administração Biden, tornou-se a primeira figura de nomeação política a demitir-se, em aberta discordância da política norte-americana relativamente a Gaza. À comunicação social contou como foi o seu processo interior e releva como os valores do judaísmo, em que cresceu, foram vitais para a sua decisão.

Tendo colaborado nas campanhas presidenciais de Kamala Harris e de Joe Biden, passou a exercer funções de secretária especial no gabinete de Deb Haaland, secretária do Interior dos Estados Unidos (EUA).

Oriunda de uma família que escapou à perseguição antissemita, na Europa, encontrou refúgio nos EUA, acreditou que a Administração Biden, entre outros valores, trabalharia por “um planeta saudável” e por “direitos iguais para todas as pessoas” e sentiu-se inspirada por Deb Haaland, pelo seu histórico de princípios na defesa de causas progressistas e pelo seu papel como mulher indígena a liderar um departamento que provocara danos às comunidades indígenas, com o potencial que isso tem para reparações, para reconciliação e para cura.

Porém, não pode, em sã consciência, continuar a representar aquela administração, devido ao desastroso e contínuo apoio do presidente Biden ao genocídio de Israel em Gaza. Com efeito, ao longo dos últimos oito meses, tem-se interrogado, muitas vezes, sobre qual “o sentido de ter poder, se não o usamos para impedir crimes contra a Humanidade”.

Educada que foi na comunidade judaica, nos EUA e em Israel, a que se mantém ligada, tendo vivido e aprendido Hebraico e Árabe em Israel, onde tem familiares e amigos, incluindo nas forças armadas, algumas das quais perderam entes queridos no ataque do Hamas, a 7 de outubro, diz-se “aterrorizada com o aumento do antissemitismo em todo o Mundo”. Apesar disso e talvez por isso, Lily contrapõe, na carta de demissão, divulgada na rede digital X: “No entanto, estou segura de que a resposta a esta questão não é punir, coletivamente, milhões de Palestinianos inocentes, através da deslocação, da fome e da limpeza étnica. A ofensiva contínua de Israel contra os Palestinianos não mantém o povo judeu seguro – em Israel nem nos Estados Unidos. O que aprendi com a minha tradição judaica é que cada vida é preciosa. Que somos obrigados a defender aqueles que enfrentam violência e opressão e a questionar a autoridade, face à injustiça.”

A demissionária aponta as mais de 35 mil pessoas que Israel matou em Gaza, incluindo 15 mil crianças; e os bombardeamentos feitos pelos militares israelitas sobre infraestruturas médicas, tendo sitiado um hospital, deixado valas comuns para trás, destruindo todas as universidades de Gaza, atacando jornalistas e trabalhadores humanitários.  E escreve: “Todas estas [ações] são violações do direito internacional, nenhuma das quais seria possível sem as armas americanas, e nenhuma delas foi condenada pelo presidente Biden. O presidente tem o poder de exigir um cessar-fogo duradouro, de parar de enviar armas a Israel e de condicionar a ajuda. Os Estados Unidos quase não usaram nenhuma influência, ao longo dos últimos oito meses, para responsabilizar Israel; muito pelo contrário, permitimos e legitimamos as ações de Israel com vetos às resoluções da ONU [Organização das Nações Unidas], destinadas a responsabilizar Israel. O presidente Biden tem o sangue de pessoas inocentes nas mãos.”

Escreveu a carta de demissão a 15 de maio, dia da Nakba, que recorda a destruição da sociedade e da pátria palestiniana, em 1948, e a expulsão da maioria do povo palestiniano, para a formação do Estado de Israel. Para ela, a Nakba e a Shoah (termo hebraico para Holocausto) significam a mesma coisa: catástrofe. Por isso, a jovem rejeita a premissa de que a salvação de um povo deve resultar da destruição de outro povo. E diz mais: “Qualquer sistema que exija a subjugação de um grupo em detrimento de outro não é apenas injusto, mas também inseguro. A segurança judaica não pode vir – e não virá – pondo em causa a liberdade palestiniana. Fazer dos judeus a face da máquina de guerra americana torna-nos menos seguros.”

A repercussão da carta de demissão, que ecoou nos media norte-americanos, foi tema de capa no Washington Post. E, numa entrevista ao canal digital Demcracy Now, Lily Greenberg Call, faz a relação entre a decisão de romper com a Administração Biden e de dar sinal público disso e a sua vivência como membro da religião judaica. Interrogada sobre isso, recordou os cerca de 20 anos de educação judaica, o estudo dos textos religiosos e os valores referenciais que adquiriu. O Judaísmo tem a ideia de pikuach nefesh (salvar uma vida), que substitui qualquer outro mandamento. Cada um pode quebrar qualquer mandamento, se isso salvar uma vida. Com efeito, “salvar uma vida é salvar o Mundo inteiro”. Há também a ideia de b’tselem elohim (cada pessoa é feita à imagem de Deus). Por outro lado, o Judaísmo está impregnado de um êthos orientado para a justiça. Assim, ao defender os Palestinianos e exigindo a sua liberdade, sente-se a viver o seu judaísmo, na essência daquilo em que foi criada.

Refere que, na sua juventude, defender Israel era, para si, “o caminho para proteger os Judeus do antissemitismo”. Todavia, especialmente nos últimos oito anos, houve coisas que a fizeram ir mudando de posição. A primeira foi que o seu Mundo se expandiu. Conheceu Palestinianos americanos. Trabalhou com refugiados Sírios palestinianos na Grécia. Viu com os próprios olhos injustiças que os Palestinianos enfrentam em Israel-Palestina, como os postos de controlo, o sistema de apartheid. Estudando Árabe, teve contacto com a cultura e com a vida palestiniana.

Ao mesmo tempo, a coligação de pessoas pró-Israel a que pertencia, há anos, a AIPAC – American Israel Public Affairs Committee, começou a mover-se para a direita, com a chegada de Trump ao poder e com o governo israelita a deslocar-se para a direita. Face a tais mudanças, começou a ver as pessoas com quem passou anos a fazer a defesa pró-Israel, em particular os cristãos evangélicos, a apoiar Trump, fascistas de direita nos EUA e pessoas que se alinhavam com os brancos supremacistas e antissemitas. Começou, então, a perceber que talvez essas pessoas não estivessem ali porque investiram nos Judeus e na segurança judaica.

Assim, começou a perceber que lhe tinham contado uma mentira, que o status quo é insustentável, e que não é apenas devastador para os Palestinianos, sendo que o 7 de outubro deixou muito claro que não mantém os Israelitas seguros. Ora, se quisermos, realmente, criar um futuro próspero para os Israelitas, para os Palestinianos, para os Judeus, para as comunidades com que nos preocupamos, na América, “algo tem de mudar”.

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A Amnistia Internacional Portugal (AIP) lançou, 14 de maio, nova campanha pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza, desafiando as pessoas a escreverem cartas aos deputados/as eleitos/as pelo seu círculo eleitoral, “exigindo-lhes que trabalhem a uma só voz por um cessar-fogo imediato por todas as partes, a fim de libertar os reféns e de pôr termo ao sofrimento e mortes de civis”.

A carta a enviar pode ser encontrada no site da AIP.  Ao preencher o formulário, com a indicação do distrito onde se exerce o direito de voto, a carta é automaticamente enviada aos respetivos/as deputados/as desse distrito. “O apelo é simples: para que se empenhem e atuem enquanto deputado/a da Nação, desenvolvendo todos os esforços no Parlamento, junto do governo da República Portuguesa, e por todos os meios ao seu dispor, com fim a alcançar um cessar-fogo duradouro na Faixa de Gaza”, pode ler-se na missiva.

O cessar-fogo tem sido apelo constante da AIP – e esta campanha reforça-o. Segundo Pedro Neto, diretor executivo da AIP, pela evidência de destruição, pelos números de feridos e de mortos que se somam, pela ajuda humanitária a conta-gotas e pela escassez de comida e de material médico, sabe-se que a via para a paz se faz pelo cessar-fogo. Não há outro atalho. Por isso, a AI quer envolver todas as pessoas, incentivando-as a escrever aos deputados/as dos vários círculos eleitorais, desafiando-os/as a tornarem este apelo parte integrante do seu trabalho e conversações.

A AIP alerta que, “de acordo com a Classificação Integrada das Fases de Segurança Alimentar e Nutricional, a situação de fome que vivem as pessoas na Faixa de Gaza atingiu a maior proporção alguma vez registada numa população em crise de segurança alimentar. “Há meses que as famílias bebem água que não é potável, passando também dias seguidos sem comida. O sistema de saúde entrou em colapso total, devido a surtos de doenças e ferimentos graves provocados pelos constantes bombardeamentos. A severa desnutrição, a desidratação e outras doenças relacionadas têm também provocado mortes. Em março, as Nações Unidas também divulgaram que, no Norte da Faixa de Gaza, uma em cada seis crianças com menos de dois anos sofria de subnutrição aguda. Sem um cessar-fogo e caso o acesso humanitário continue a ser interdito pelas autoridades israelitas, seguir-se-ão mais mortes por fome e doença”, sublinha o comunicado da AIP.

A AIP partilhou o testemunho de um trabalhador da Organização na Faixa de Gaza, que detalha esta realidade: “Pela primeira vez, em seis meses, foi autorizada a entrada de frango congelado em Rafah. Sentimo-nos felizes pelas crianças, mas também mal conseguimos conter as lágrimas: será que conseguimos imaginar que comer frango congelado se tornou um sonho para elas?”

Este trabalhador abordava também a falta de opção para os civis palestinianos que estavam a ser pressionados para abandonar Rafah, sob a iminência de uma operação terrestre em grande escala por parte de Israel: “Como toda a gente em Rafah, estamos aterrorizados com qualquer invasão terrestre israelita. Para onde é que vamos a seguir? Outra deslocação? Mas não há nenhum sítio na Faixa de Gaza que tenha sido poupado à destruição […]. Rafah – a Leste e a Oeste – está cheia de pessoas deslocadas internamente, nem sequer se pode lá colocar outra tenda. […] Para onde é que se vai quando não há nenhum sítio seguro?”

Sobre a situação em Rafah, a AI frisa que todos os Estados devem pressionar Israel a suspender, imediatamente, as operações terrestres na região e a garantir o acesso, sem restrições, à ajuda humanitária, em conformidade com as suas obrigações de prevenir o genocídio, tal como reiterado, a 28 de março pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), com sede em Haia. Enfim, a AIP propõe que a carta aos deputados vinque: “Esta é a hora de as armas se silenciarem.”

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Também 20 organizações fizeram declaração conjunta, subscrita e divulgada, a 15 de maio, pela AI, a criticar a inação dos líderes mundiais face à invasão israelita de Rafah. A declaração apela à ação dos países terceiros para porem termo às violações do Direito Internacional Humanitário em Gaza e responsabiliza os EUA pelo fornecimento de armas aos Israelitas, apelando a que estes usem a sua capacidade de influência, para acabar a operação militar em Rafah.

O único resultado da invasão terrestre em Rafah é o aumento do sofrimento humano. As pessoas estão a ser empurradas à força para as sobrelotadas chamadas zonas humanitárias, onde muitas pessoas não encontram abrigo. Há que exercer a máxima pressão sobre Israel e sobre a comunidade internacional para que ponham fim às repetidas deslocações forçadas da população de Gaza. É importante garantir a reabertura da passagem de Rafah, a única salvação para mais de dois milhões de pessoas vulneráveis.

Segundo Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo em França, a invasão militar israelita de Rafah fez recuar o socorro, em outubro, quando teve de interromper quase todas as suas operações. A equipa teve de fugir de Rafah e não sabe para onde ir. Teve de encerrar as duas clínicas que tinha aberto no local, onde tratou cerca de 500 pessoas por dia. Está, agora, a montar novo campo médico no local para onde as pessoas fugiram, mas isso vai demorar alguns dias. As pessoas ficam sem acesso a cuidados de saúde. Israel tem de ser impedido de entrar em Rafah ou Gaza enfrentará uma catástrofe humanitária ainda maior. A inação de países terceiros revela falta de preocupação com a população civil exausta, o que é inaceitável.

“Devem ser tomadas medidas imediatas para evitar mais sofrimento”, vinca Florence Rigal.

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Entretanto, o TIJ, cujas decisões são vinculativas, a 24 de maio, ordenou que Israel suspenda, imediatamente, “a ofensiva militar, bem como qualquer outra ação”, em Rafah, “que possa infligir ao grupo palestiniano, em Gaza, condições de vida suscetíveis de provocar a sua destruição física total ou parcial”. E deve apresentar relatório, no prazo de 90 dias, sobre as medidas decididas.

Israel diz que vai cumprir, mas o cessar-fogo não está em vigor.

2024.05.25 – Louro de Carvalho

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