domingo, 31 de julho de 2022

Basta a fé em Jesus Cristo para chegar à salvação

 

Na Carta aos Colossenses, Paulo polemiza contra os “doutores” para quem a fé em Cristo deve ser complementada com o conhecimento dos anjos e com certas práticas legalistas e ascéticas. Face à disseminação de tal exigência, alegadamente em nome do Evangelho, o Apóstolo das Gentes ensina aos seus leitores que a fé em Cristo, entendida como adesão à pessoa de Cristo, identificação com Ele e assunção de toda a sua doutrina, basta para chegarmos à salvação.

Neste sentido, o trecho tomado para segunda leitura da liturgia do XVIII domingo do Tempo Comum no Ano C (Cl 3,1-5.9-11) integra a parte moral da carta (cf Col 3,1-4,1), “viver segundo o Evangelho”, onde Paulo tira conclusões práticas do que expôs na primeira parte – Cristo basta para a salvação – e convoca os Colossenses a viverem, no quotidiano, conforme a vida nova que os identifica com Jesus Cristo, que veio para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância.

A perícopa em referência está dividida em duas partes.

Em primeiro lugar (Cl 3,1-4), surge, como ponto de partida e como base sólida da vida cristã, a união com o Senhor ressuscitado, com quem os cristãos se identificam pelo batismo. Com essa misteriosa identificação com o Senhor que morreu e ressuscitou, os crentes em Cristo morreram para o pecado e renasceram para a vida nova, que deve crescer progressivamente no quotidiano e que se manifestará em plenitude, quando Cristo “aparecer”. Na verdade, a Carta aos Colossenses alimenta nos cristãos a espera da vinda gloriosa de Cristo, como se esta estivesse iminente, quando para ela não há dia nem hora marcados. Não obstante, a Igreja, enquanto peregrina neste mundo, aguarda em jubilosa esperança a vinda de Cristo Salvador, anuncia a sua morte e proclama a sua gloriosa ressurreição.  

Na segunda parte do trecho em apreço (Cl 3,5.9-11), Paulo apresenta as exigências práticas dessa identificação com Cristo ressuscitado. O cristão deve abjurar da imoralidade, da impureza, das paixões, dos maus desejos, da cupidez, enfim, de todos os falsos deuses carnais que enchem a vida do homem velho. E, como o vazio é mau conselheiro, o crente em Jesus Cristo deve encher-se da graça ou, seja, deve revestir-se do Homem Novo, renovando-se continuamente até que nele brilhe a “imagem de Deus”. Quando isto for a realidade, desaparecerá a velharia das diferenças de povo, de raça, de religião; e todos serão iguais, porque são “imagem de Deus”. Foi para isto que Jesus Cristo veio: salvar o mundo, salvando cada pessoa através da criação da comunidade de homens novos que sejam no mundo a “imagem de Deus”. Assim, a identificação com Cristo ressuscitado – que resulta do batismo – é um renascimento contínuo, uma provocação constante, que deve levar-nos a parecer-nos cada vez mais com Deus.

É eloquente a advertência paulina do início da perícopa, que se utiliza muito em contexto pascal: “Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus.
Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra.” É evidente que nem o crente nem a comunidade crente têm “asas” para voar. Por isso, a missão da comunidade que se perfila como identificada com Cristo é andar em saída, peregrinar. E, neste seu peregrinar missionário, deve acompanhar todas as pessoas e a pessoa toda, fazendo que se realize a satisfação dos seus profundos anseios e das suas legítimas aspirações e levando a aderir a Cristo com todas as consequências.

Entretanto, neste peregrinar sinodal (em conjunto e na escuta de Deus e dos seus sinais no mundo), há uma bitola e uma referência. A referência é Jesus Cristo, que nos pôs e deixou em missão, subiu aos céus e está sentado à direita do Pai a interceder por nós, donde nos atrai constantemente para que nos afeiçoemos ao Reino de Deus e o dilatemos. A bitola é o Céu, o Alto, donde nos vem a lucidez e a força para a missão, veiculadas e inculcadas pelo Espírito Santo. Por isso, o Apóstolo exorta a que nos afeiçoemos às coisas do Alto. De facto, peregrinar levando com a poeira ou a lama da terra e gostar disso é absurdo. Porém, é necessário peregrinar na Terra, pelo Reino de Deus, suportando a poeira, a lama, os pedregulhos, as silvas, as feras, mas sempre de olhos postos no céu e na pessoa de Cristo, que Se faz próximo de nós pela sua presença na eucaristia, na assembleia, na pessoa do ministro que serve in persona Christi, na pessoa dos doentes, dos pobres e dos demais atingidos pelas diversas vulnerabilidades.

A advertência paulina é mencionada em contexto pascal. Na verdade, a ressurreição de Cristo mostra a rotunda falência das coisas puramente terrestres. No entanto, a advertência cai que nem uma luva também na contemplação da Ascensão do Senhor e na Assunção da Virgem mãe.

A ressurreição dá-nos o Senhor redivivo, mas o sepulcro ainda preocupa e inspira medo. Porém, a ascensão, a que se acopla necessariamente a descida pentecostal do Espírito Santo, coroa, em definitivo, a caminhada pascal do Senhor. Veio do Céu e para o Céu voltou, sem se desligar daqueles e daquelas que deixou na Terra em militância orante. No caso da assunção de Maria, que só é diferente da ascensão porque a sua “ascensão” é por obra e graça do Filho, evidencia-se a participação da Mãe na totalidade do mistério de Cristo. Ela foi presenteada com a dádiva da conceição imaculada, eleita para mãe do Senhor, o Messias, sem concurso biológico de varão, acompanhou o Senhor no transe do Calvário, onde permaneceu de pé, saboreou a nova da ressurreição, acompanhou, pela oração, silêncio e palavra discreta, os primeiros passos da Igreja nascente e, por fim, sofreu transitoriamente a morte. Liberta da corrupção do túmulo, que não convinha à transcendência do Filho, esplende como protótipo e membro peculiar da Igreja, que se associa à vida quotidiana, à vida pública, à morte, à ressurreição e à assunção de Cristo.

Maria, nas pegadas de Cristo, segue Cristo, o Caminho, e aponta-no-lo para que o Sigamos. Assim, a advertência paulina é bem-vinda em qualquer contexto que possa tomar-se como pascal. É também o caso do nosso batismo, do sacramento da reconciliação, da celebração eucarística e, obviamente, aquando da morte dos nossos familiares e amigos.

Para tanto, convém que, além da advertência aos Colossenses, levemos a peito advertência feita aos Coríntios: “Celebremos a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da perversidade, mas com os pães ázimos da pureza e da verdade” (1Cor 5,8).

2022.07.31 – Louro de Carvalho

Há 25 (só?) pedreiras nacionais à margem da lei e a ameaçar perigo

 

Já lá vão quatro anos sobre o acidente de Borba que, em 2018, levantou forte clamor nacional pela morte de cinco pessoas. E o Governo identificou 25 pedreiras como sendo de risco, por razões ambientais ou de segurança, com trabalhos por fazer, pelo que estão fora da lei e num plano que deveria estar terminado. Ao todo, o país tem 2500 pedreiras, 1426 (57%) licenciadas pelo Estado (as outras, 43%, são licenciadas pelo poder local), das quais, após fiscalização, 191 foram classificadas de risco em 2018. No entanto, 25 não passaram por intervenção significativa.

Sobre a matéria são relevantes as recentes peças jornalísticas do Expresso, do Público e da TSF.

A Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que não revela as pedreiras que ainda não tiveram qualquer intervenção, elucida o que falta fazer: das aludidas 25 pedreiras, oito estão por sinalizar, ou seja, ainda não foram intervencionadas para reduzir riscos de segurança; em sete, o perímetro da área não está vedado; e as outras dez precisam de estudos para implementar “soluções estruturais, reposição de defesas e estabilização de escombreiras”.

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitiu uma “nota para enchimento de vazios de escavação com resíduos”, como confirma o seu diretor, Francisco Teixeira. A solução é encher as covas das pedreiras com “resíduos de demolições em solos contaminados, amianto, material elétrico e ferroso”, entre outros. De facto, é na estabilização e zonas de defesa que está o problema.

A Empresa de Desenvolvimento Mineiro, encarregue da tarefa e sob a tutela do Estado, garante que tem mais um ano para acabar o plano.

Sabe-se que a fiscalização também é escassa. Em abril último, o Público apontava que a DGEG só tem 25 funcionários para fiscalizar as mais de duas mil pedreiras do país, sendo que, destes, nove são colaboradores com contrato de avença. E a Inspeção do Ambiente considerava que a distribuição de técnicos superiores a nível regional pelas pedreiras em situação crítica não é uniforme e recomendava à tutela nova auditoria e reforço de recursos humanos e materiais.

Em 2018, o acidente de Borba expôs a necessidade de apurar a situação real das pedreiras existentes no território continental, a fim de se poder avaliar as necessidades de intervenção.

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“Enormes buracos, equipamento abandonado, contaminação de solos, aluimentos para linhas de água, caminhos tragados pela exploração e compra de pedreiras abandonadas para ganhar direitos de exploração e poder depositar resíduos perigosos” – é, segundo o Expresso, o retrato do país em pedreiras dos tipos 1 e 2 (sob a fiscalização da DGEG), com áreas de exploração que variam entre os cinco e os 25 hectares, e das classes 3 e 4 (pouco mais de mil, de licenciamento municipal), e muitas por registar, como refere Pedro Santos, dirigente da associação ambientalista Quercus, as quais têm menos de cinco hectares e não podem escavar além dos 10 metros.

Segundo as associações que o representam, o setor emprega 15 mil pessoas, movimenta mil milhões de euros – €400 milhões em exportações . Olhando o país de lés a lés, as pedreiras vêm à tona. E o Expresso constitui o guia oportuno, de que se respigam os dados mais pertinentes.

Explora-se o mármore, do Alandroal a Sousel, em centenas de pedreiras trabalhadas a profundidades até 120 metros. A rocha é cortada com fio diamantado e os blocos são amontoados antes de serem içados por enormes gruas. Ao longo das estradas do Norte Alentejano, em área de riscos sísmicos, há muitas pedreiras a céu aberto, abandonadas, que apresentam fundas crateras e sem qualquer plano para recuperar o passivo ambiental. Erguem-se enormes e ferrugentos guindastes e sucedem-se os amontoados de pedra. As pedreiras, desativadas e ao abandono, mostram “que a lei não está a ser cumprida” e estão na berma das estradas, quando, por lei, teriam de estar a 30 metros das mesmas.

O valor da pedra, a economia e o emprego levam a exploração ao limite e facilmente se encontram pedreiras separadas por uma dezena de metros, quando a lei impõe distâncias três vezes superiores à profundidade da escavação. Impõe-se, pois, um novo reordenamento, eliminando estradas, juntando pedreiras contíguas e aumentando assim a área de exploração.

No Parque Natural das serras de Aire e Candeeiros, centenas de pedreiras e máquinas extraem calcário, acabando o pó dos trabalhos por tingir de branco a floresta. As pedreiras, qual buraco na serra decorado por uma barraca coberta a zinco para operar as serras que cortam pedra, ganharam área de exploração, deixando crateras por tapar, e aos problemas de segurança juntam a “poluição nos locais onde se muda o óleo das máquinas, lixiviados e gasóleos”.

Em 2007, a área foi alvo de um estudo que permitiu a legalização e, em 2011, o regulamento do Parque Natural foi alterado para permitir a ampliação de pedreiras, “se fossem requalificadas explorações abandonadas”. O dirigente da Quercus, referenciado supra, sustenta que “seria um bom princípio, se fosse cumprido”, e dá o exemplo de São Bento e Cabeça das Pombas, pedreiras tapadas e com coberto vegetal em recuperação, mas que são “exceções”. Hoje, compram-se antigas pedreiras para aumentar a exploração e permanece o passivo ambiental. Assim, o negócio impede o equilíbrio entre a subsistência das pessoas e a exploração.

Em Louriçal (Pombal), Gil Martins aponta Casal da Rola e Casais do Porto, onde houve prospeção para nova pedreira, duas dezenas de sondagens, para exploração da sílica.

A Norte, dito “coração do granito”, a população travou a reativação da pedreira de Fiais da Telha, em Carregal do Sal. Um dos ativistas contra a retoma, vincou que, sem esperar licença, “a empresa estava a iniciar a exploração, quando a população interveio”, mas a autarquia não emitiu licença. No concelho de Moimenta da Beira, há exploração ilegal de granito amarelo, trazido da serra da Nave para alimentar o trabalho de pedreiros. Ali o granito é abundante e é no concelho que está o líder ibérico na exploração e transformação, a Polimagra, que explora e transforma a pedra “de acordo com as regras e alto valor acrescentado”, como frisa Paulo Figueiredo, presidente da autarquia, o qual reconhece que, “depois de Borba, os industriais aprenderam a lição”, pois não tem havido acidentes “nem novos licenciamentos” e há “medidas coercivas para quem não cumpra critérios ambientais”. Por outro lado, o autarca observa que os “proveitos são fabulosos e os industriais podem aplicar algum dinheiro na recuperação da natureza”.

Em Vila Chã, no concelho de Esposende, a câmara municipal travou a exploração em Monte da Cerca. A pedreira esventrou a floresta e “foi embargada”, confirma o vereador Guilherme Emílio.

No Douro, as pedreiras não cumprem regulamentos, funcionam desde 1940, foram licenciadas em 2007 e, em 2018, incluídas nas 191 identificadas em si­tuação de risco.

No Parque Arqueológico do Coa, as explorações de xisto são, com a Câmara Municipal de Foz Coa, os maiores empregadores. Há medo de falar no assunto. Um deputado municipal denuncia que “ainda não houve qualquer intervenção ou fiscalização” e outro conta que “parte das pedreiras desabou e caiu ao rio”, pelo que, em Canada do Inferno, se veem as escombreiras a escassos metros da água e das gravuras rupestres. Além disso, como alerta outro deputado municipal, é visível a falta de vedações, a exploração a céu aberto, o desmonte feito com explosivos, pedra transformada no local; e foram unidas duas pedreiras, eliminando um caminho municipal. E Pedro Santos, da Quercus, salienta que, há 40 anos, para reduzir o passivo ambiental, se criou um novo problema: fez-se o enchimento das pedreiras com detritos, um negócio “atrativo e perigoso”.

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Já passaram mais de dois anos e a nova legislação (com 95 artigos) para regulamentar a exploração das pedreiras não saiu dos bastidores. A Lei está na forja desde 2020 e passou por duas consultas públicas, mas o novo regime jurídico continua em tramitação, deixando inquieto o setor.

Em entrevista da Vida do Dinheiro, da TSF e do Dinheiro Vivo, Miguel Goulão, presidente da Associação Portuguesa da Indústria dos Recursos Minerais (Assimagra) – que representa cerca de 80% do setor da pedra portuguesa e reúne 235 empresas que atuam nas atividades da extração, transformação, máquinas, equipamentos e tecnologia, de norte a sul do país – defende que as pedreiras precisam “de apoio e de decisão” e de alargamento dos limites das zonas de proteção, mas que devem ser “defendidos os direitos adquiridos”.

Por enquanto, o setor é regulado pelo Decreto-Lei n.º 270/2001, de 6 de outubro, com a redação que lhe deu o Decreto-Lei n.º 340/2007, de 12 de outubro, em conjugação com os Decretos-Leis n.º 31/2013, de 22 de fevereiro, n.º 165/2014, de 5 de novembro, n.º 54/2015, de 22 de junho, n.º 152-B/2017, de 11 de dezembro. Acresce a Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2019, de 5 de março, que aprova o Plano de Intervenção nas Pedreiras em Situação Crítica.

Ora, é preciso atualizar a legislação e torná-la menos dispersa, acautelando o cenário de guerra.

Entretanto, Miguel Goulão refere que as regras são as da visão europeia de cada vez se restringir mais a exploração de recursos. Com efeito, há teses na Europa que demonstram que o caminho trilhado até aqui não tem sido o necessário para que a Europa possa ser mais competitiva na sua indústria. Diz que, para se produzir, é preciso aceder aos recursos, criar e manter emprego e compreender que “os recursos minerais fazem parte da nossa vida”, o que, muitas vezes, pela dinâmica que as sociedades têm, não é percetível à maioria das pessoas.

Há recursos e são necessários. Importa explorá-los com racionalidade, sem a obsessão do lucro, mas com mais amizade ao ambiente e aos ecossistemas.

2022.07.30 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de julho de 2022

Os contornos da peregrinação penitencial de Francisco no Canadá

 

O Bispo de Roma empreendeu, de 24 a 30 de julho, uma visita ao Canadá que designou de peregrinação penitencial. Obviamente, a viagem foi agendada a convite da Conferência Episcopal e das autoridades políticas, sendo o intuito do Pontífice animar a fé da Igreja que pulsa naquela grande nação e reiterar, no âmbito da peregrinação penitencial, o reconhecimento dos erros e atropelos de teóricos e operacionais da Igreja Católica na relação com os povos autóctones.

A Conferência Episcopal do Canadá mostrou-se satisfeita com os objetivos e com o decurso da visita papal. Também parece que as comunidades indígenas ficaram satisfeitas, talvez porque os encontros que decorreram, há quatro meses, no Vaticano, lhes fizeram perceber qual é o genuíno propósito de Francisco e o atual sentir da Igreja sobre o que se passou – facto que não foi obnubilado pela lufa-lufa do cumprimento da agenda da visita.

Entretanto, alguns observadores consideram insuficiente a postura do Pontífice. Com efeito, reconheceu que a incursão histórica dos povos colonizadores, em que pontificou a Igreja e os seus missionários, lhes retirou a língua nativa, anulou a cultura, as tradições e as formas de viver e de trabalhar e a visão do mundo. Porém, não reconheceu que tenha havido genocídio, nem se dispôs a reformular a doutrina da descoberta. De modo similar julgam a postura de Francisco sobre o que se passou nas escolas residenciais orientadas pela Igreja durante mais de um século, já não no tempo das Descobertas europeias, mas em tempo novo marcado pelas doutrinas iluministas.        

Logo no dia 25, o Santo Padre teve um encontro com as populações indígenas das first nations, dos métis e dos inuit, em que indicou o propósito de “exprimir, pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação, manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”. Referiu que viveram no território, durante milhares de anos, “com estilos de vida que respeitaram a própria terra, herdada das gerações passadas e guardada para as futuras”, como “um dom do Criador que há de ser partilhado com os outros e amado na harmonia com tudo o que existe, numa interconexão vital de todos os seres vivos”, aprendendo a “nutrir um sentido de família e de comunidade” e a desenvolver “laços sólidos entre as gerações, honrando os idosos e cuidando dos pequeninos”.

Porém, a memória faz ecoar no coração do Bispo de Roma “um grito de dor, um brado sufocado” que o acompanhou nestes meses, repassando o drama sofrido por muitos, pelas famílias, pelas comunidades “sobre as tribulações sofridas nas escolas residenciais”. E o Pontifice vincou: “Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram nas escolas residenciais impressiona-nos, indigna-nos e entristece-nos, mas é necessário”.

Mais disse que “é necessário recordar como as políticas de assimilação e alforria, que incluíam o sistema das escolas residenciais, foram devastadoras para as pessoas destas terras”. Na verdade, os colonizadores europeus depararam com “a grande oportunidade de desenvolver um encontro fecundo entre culturas, tradições e espiritualidades”, o que, em grande parte, não aconteceu. Antes, “as políticas de assimilação acabaram por marginalizar sistematicamente os povos indígenas”; as línguas e as culturas nativas “também através do sistema das escolas residenciais, foram denegridas e suprimidas”; as crianças “foram submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e espirituais” e “foram levadas das suas casas quando eram pequeninas” – o que “afetou indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos”.

Ao mesmo tempo, Francisco, enveredando pelo caminho da reparação possível e da reconciliação, reconhece que pedir perdão não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida. E, tendo em conta que, apesar de haver também muita caridade cristã ao longo da História no Canadá e de ter havido “não poucos casos exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas ligadas às escolas residenciais foram catastróficas”, frisou que “a fé cristã diz-nos que se tratou dum erro devastador, incompatível com o Evangelho de Jesus Cristo”, o que tem de levar à reorientação da prática da fé.  

No mesmo dia, no encontro com as populações indígenas e com os membros da comunidade paroquial, o ilustre visitante de cadeira de rodas confessou-se como “amigo e peregrino”, reconheceu que, na Igreja, se juntam, muitas vezes, a cizânia e o trigo e desabafou que lhe custa pensar que “os católicos tenham contribuído para as políticas de assimilação e alforria que transmitiam um sentido de inferioridade, despojando comunidades e pessoas das suas identidades culturais e espirituais, cortando as suas raízes e alimentando atitudes preconceituosas e discriminatórias, e que isso tenha sido feito também em nome duma educação que se supunha cristã”, quando “a educação deve partir sempre do respeito e da promoção dos talentos que já existem nas pessoas”. Depois, abordou o tema da reconciliação como marca essencial da Igreja e, na linha da resposta à idiossincrasia de cada povo, como a capacidade de  “fazer que Cristo anime o centro mesmo de toda a cultura”. E deixou claro, com a imagem bíblica da tenda em que Deus habitava quando o povo de Israel caminhava pelo deserto, que o Deus da proximidade caminha sempre connosco.

E, no dia 27, no encontro com as Autoridades civis, com os Representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático, falou das folhas da acerácea (que figura na bandeira como símbolo do país), que “absorvem ar poluído e restituem oxigénio, convidam a maravilhar-nos com a beleza da criação e a deixar-nos atrair pelos saudáveis valores presentes nas culturas indígenas”, que “servem de inspiração para todos nós e podem contribuir para sanar o hábito nocivo de explorar”, de “explorar a criação, as relações, o tempo, e de regular a atividade humana apenas com base na utilidade e no lucro”.  

Com efeito, antes de os colonos chegarem ao Canadá, as populações nativas extraíam das folhas da acerácea a seiva com que faziam xaropes nutrientes, o que leva a pensar na sua laboriosidade, sempre atentas à salvaguarda a terra e do meio-ambiente, fiéis à visão harmoniosa da criação, que ensina o homem a amar o Criador, a viver em simbiose com os outros seres vivos e a colocar-se à escuta de Deus, das pessoas e da natureza. Temos, disse o Papa, enorme necessidade “de nos ouvir uns aos outros e dialogar, para nos afastarmos do individualismo dominante, dos juízos precipitados, da crescente agressividade, da tentação de dividir o mundo em bons e maus”. 

Por outro lado, a frondosidade da acerácea lembra-nos a multiplicidade e a diversidade de culturas, a respeitar e a desenvolver. Porém, como avança o Papa, “estes ensinamentos vitais foram violentamente combatidos no passado”, sobretudo “nas políticas de assimilação e alforria, incluindo o sistema escolar residencial, que prejudicou muitas famílias indígenas, minando a sua língua, cultura e visão de mundo”. E, “naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais”. Por isso, Francisco, juntamente com os Bispos do país, renova o pedido de perdão “pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas”, pois crentes houve e há que “se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

E, se a fé cristã desempenhou papel essencial na modelação dos ideais mais elevados do Canadá, que se caraterizam pelo desejo de construir um país melhor para todo o seu povo, urge o empenho conjunto na realização do que todos compartilham: promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de cura e reconciliação entre elas e os não indígenas do país – o que se reflete no empenho em responder adequadamente aos apelos da Comissão em prol da Verdade e da Reconciliação, bem como na solicitude em reconhecer os direitos dos povos indígenas.

Por seu turno, a Santa Sé e as comunidades católicas locais nutrem o desejo concreto de promover as culturas indígenas, com caminhos espirituais específicos e adequados, que incluam a atenção às suas tradições culturais, costumes, línguas e processos educativos, no espírito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, bem como renovam a relação entre a Igreja e as populações indígenas do Canadá, relação marcada por um amor que deu excelentes frutos e – infelizmente – por feridas que “nos estamos esforçando por compreender e sanar”. 

Por fim, no voo de retorno do Canadá, Francisco falou da viagem e do velho e novo colonialismo.

Partir do princípio de que os colonizados são inferiores – disse o Bispo de Roma – é problema de todos colonialismos. As colonizações ideológicas de hoje têm o mesmo esquema. Quem não entra na rota do colonizador é inferior. E vai mais longe, ao dizer que alguns consideravam esses povos não apenas inferiores, mas se perguntavam se tinham uma alma. Quando São João Paulo II foi à África, para a porta onde os escravos embarcavam deu um sinal para que entendêssemos o drama criminoso: as pessoas eram jogadas no navio em condições desastrosas e tornavam-se escravas na América. É certo que havia vozes que falavam claro, como Bartolomeo de las Casas e Pedro Claver, por exemplo, mas eram a minoria. A consciência da igualdade humana veio lentamente – rememora o Papa, que se permitiu dizer que, no subconsciente, a ideia subsiste na atitude de reduzir a cultura dos outros à nossa. É algo que vem do nosso modo de vida desenvolvido, que nos leva, às vezes, a perder os valores que os outros têm. Por exemplo: os povos indígenas têm um grande valor que é o valor da harmonia com a Criação e, pelo menos, alguns espelham-no na expressão “viver bem”, que não significa, como entendemos os ocidentais, viver bem ou viver a dolce vita, mas “custodiar a harmonia”, o grande valor dos povos originais.

Vincando que reduzimos tudo “à cabeça”, Francisco elogia a personalidade dos povos originais, que se sabe expressar em três línguas: a da cabeça, a do coração e a das mãos. E diz que os povos indígenas têm essa capacidade poética.

Sobre a doutrina da Descoberta, sustenta que é injusta, mas usada também hoje, embora com luvas de seda. E mencionou o caso de bispos de alguns países lhe disseram que, nos seus países, quando se pede crédito a uma organização internacional, são impostas condições, mesmo condições legislativas, colonialistas.

Voltando à colonização da América – por Ingleses, Franceses, Espanhóis, Portugueses, sempre houve esse perigo: somos superiores e esses povos não contam, o que é grave. É por isso que temos de voltar e sanear o que foi feito de errado, sabendo que o colonialismo existe ainda. Por exemplo, no caso do Rohingya, em Mianmar: não têm direito à cidadania, são considerados de um nível inferior.

E, em relação à não referência explícita ao genocídio, o Santo Padre reconhece que não usou o termo, mas enfatiza que descreveu o fenómeno e pediu perdão por este “trabalho” que é genocida. E condenou: “tirar as crianças, mudar a cultura, mudar as mentes, mudar as tradições, mudar uma raça – digamos – uma cultura inteira”.

***

Não se pode exigir do Papa que meça tudo pela mesma bitola e desdiga de todo o trabalho de missionação. Não se pode negar a História, embora haja tentativas de a reescrever segundo óticas duvidosas. Os erros não são apenas da Igreja. Esta é responsável pela inspiração e cobertura dadas a uma atitude invasiva e desumana e do oportunismo dos crentes, do que deve pedir perdão e proceder à reorientação. Contudo, os outros devem fazer a parte deles (houve muitos interesses à mistura). Por outro lado, Francisco não pode obnubilar a missão da Igreja e a sua obra. Enfim, de joelhos ante Deus, mas de pé diante dos homens, sem sobranceria, mas sem rastejamentos.      

2022.07.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Acordo Rússia-Ucrânia é bom, mas não resolve crise cerealífera

 

 

A 22 de julho, a Rússia e a Ucrânia, com mediação da Turquia e das Nações Unidas (ONU), assinaram um acordo – válido por 120 vias, mas renovável – sobre a exportação de cereais, através dos portos do Mar Negro, para que esta base alimentar volte aos mercados mundiais – acordo em que não acreditavam os analistas nem os líderes mundiais, porque decorre a guerra e é nula a confiança entre as partes.

O objetivo é garantir a passagem de cereais e de outros bens essenciais, entre os quais o óleo de girassol, de três portos ucranianos, incluindo Odessa, mesmo com a guerra em várias partes do país, bem como a passagem segura de produtos fertilizantes produzidos na Rússia, essenciais para garantia de maior rendimento e de maiores e melhores colheitas.

A Ucrânia, um dos maiores exportadores mundiais de trigo, milho e óleo de girassol, teve as suas exportações suspensas, durante meses, após a invasão russa, embora com exceções criadas em articulação com países limítrofes. A ONU avisara que a guerra agravava a desnutrição e atirava para a fome milhões de pessoas, antecipando os seus altos representantes que os primeiros embarques de cereais pudessem começar logo no dia 23, com a esperança de atingir os níveis de exportação pré-guerra dos três portos ucranianos – uma taxa de cinco milhões de toneladas por mês – dentro de semanas, de modo que o transporte de milhões de toneladas a partir de portos do Mar Negro mitigue a crise alimentar mundial. Porém, em Kiev, continua o ceticismo sobre as intenções da Rússia, embora Mykhailo Podolyak, conselheiro do presidente da Ucrânia, tenha afirmado que o país confia na ONU e na Turquia para acompanhar o cumprimento do acordo.

Uma coligação de funcionários turcos, ucranianos e da ONU monitoriza o carregamento de cereais em embarcações que partirão dos referidos portos e se deslocarão por uma rota pré-planeada através do Mar Negro, minado por forças ucranianas e russas, sem que se possa descartar a hipótese de acidente, como um navio com alimentos atingir uma mina ou um navio russo disparar, por engano, contra uma embarcação com cereais. Contudo, se Russos e Ucranianos quiserem que o acordo funcione, têm as necessárias habilidades profissionais para minimizar os riscos de um desastre não intencional. Navios ucranianos guiam os navios que transportam os cereais, para que naveguem pelas áreas minadas ao longo da costa, usando um mapa, fornecido pela parte ucraniana, com os canais seguros sinalizados. As embarcações cruzam o Mar Negro rumo ao estreito de Bósforo, monitorizadas por um centro de coordenação conjunta em Istambul, com representantes da ONU, da Ucrânia, da Rússia e da Turquia. Os navios que entram na Ucrânia são inspecionados sob a supervisão do mesmo centro de coordenação, para garantir que não carregam armas ou equipamento utilizáveis ​​para atacar o lado ucraniano.

Entretanto, alguns analistas admitem que isto pode constituir uma espécie de “cavalo de Troia”. Com efeito, pode ser impedida a entrada de algumas embarcações nos portos e, apesar das oportunidades, há riscos para os donos dos barcos, ainda que com seguro, acontecendo que nem sempre as tripulações aceitam entrar num país onde decorre uma guerra em larga escala. Por outro lado, embora possa não ser problema garantir a segurança da caravana de embarcações, ao menos do ângulo técnico, pode a Rússia encontrar outra forma de travar as exportações ucranianas, com mais bombardeamentos, arruinando as infraestruturas portuárias de exportação da Ucrânia, para não violar formalmente o acordo, mas impedindo as exportações agrícolas.

É certo que as duas partes firmaram o compromisso de não realizar ataques a qualquer um dos navios comerciais ou a portos envolvidos na exportação de cereais e fertilizantes e que estão presentes nos portos responsáveis da ONU e da Turquia para demarcarem as áreas protegidas pelo acordo. Porém, altos funcionários da ONU disseram, antes da assinatura do acordo, que a retirada de minas da costa da ucraniana não era opção viável e as autoridades ucranianas aduziram que a remoção de minas defensivas do litoral aumentaria a vulnerabilidade a ataques russos. No entanto, o texto final do acordo contém diretrizes para potencial operação de eliminação de minas, a fim de a rota marítima dos navios ser segura, e prevê uma potencial embarcação de busca e salvamento no Mar Negro.  

Em todo o caso, como não foi negociado nenhum cessar-fogo, as embarcações que não sejam alvo de ataques navegam em zona de guerra, pelo que ataques perto dos navios ou nos portos que utilizam podem colocar o acordo em risco. Além disso, é possível a quebra de confiança ou o desacordo entre inspetores e funcionários da coordenação conjunta. E o papel da ONU e da Turquia é mediar essas divergências no local e fazer cumprir o acordo.

Alguns analistas apontam que um dos riscos para Ucrânia e para o mundo é o incumprimento russo, lembrando que a Rússia assinou muitos acordos com a Ucrânia e violou-os várias vezes (alguns países fizeram o mesmo com a Rússia). O mais notório é o acordo de Budapeste, em 1994, de garantia da segurança e da integridade territorial da Ucrânia. E frisam que Vladimir Putin, presidente russo e Sergey Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros afirmaram que “reabrir os portos fortalece a Ucrânia, o que não é do interesse da Rússia”.

No entanto, crê-se que não haverá navios da Marinha russa nas águas dos portos ucranianos, nem inspeções do lado russo dentro das fronteiras ucranianas, pois os turcos assumem o controlo e a Rússia assume obrigações, não com a Ucrânia, mas com a ONU e a Turquia. Além disso, não são apenas as autoridades ocidentais que esperam que a Rússia cumpra o acordo. Também muitos amigos de Moscovo, em África e no Médio Oriente, ficarão furiosos, se o acordo falhar. Assim, a Rússia mostrará que leva a sério o acordo, mas levantará questões sobre a implementação e acusará a Ucrânia de contrabando de armas a bordo dos navios com alimentos, se achar que isso servirá a sua causa junto da opinião pública. No fundo, o acordo interessa-lhe.

O acordo permite libertar, para o mundo, até 50 milhões de toneladas de cereais, quando os stocks estão baixos, o que livrará da fome dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Porém, é de considerar que outros fatores – como a seca, sobretudo em África, mas também em muitos países da Europa e do resto do mundo – estão a elevar os preços dos alimentos, independentemente dos acontecimentos na Ucrânia. Por isso, o acordo resolverá apenas parte do problema. Mesmo assim, é um significativo passo, pois os mercados mundiais já começaram a reagir: os preços, em geral, estão a diminuir, pois os mercados mundiais acreditam no acordo e acham que é exequível.

As exportações darão à Ucrânia dinheiro, emprego, desenvolvimento e capacidade de procurar novas oportunidades. Com o mar desbloqueado, a vida voltará aos portos ucranianos, a Odessa. Muitos retomarão o emprego. Parecendo que se trata apenas de cereais, é um começo importante.

***

Porém, enquanto a frente diplomática fala em avanços no escoamento dos cereais, a realidade é outra. Passados oito dias, inda não saíram dos portos e há agricultores sem dinheiro para rações dos animais. Portugal, à semelhança de muitos outros países, cuja dependência das importações de cereais tem aumentado nos últimos tempos e cuja debilidade das colheitas se espera neste ano, debate-se com o persistente fenómeno da seca severa e, em muitas zonas, extrema, mercê das alterações climáticas, que provocam aquecimento global, aumento do nível das águas oceânicas e liquefação de glaciares, e propiciam ambiente mais favorável à deflagração e alastramento de incêndios florestais, de que resulta a pulverização e a erosão de terras, a rarefação da vegetação e a crassa escassez de água. Por isso, esperava-se que o predito acordo resultasse.

Porém, graças à dificuldade no acesso aos alimentos, designadamente às rações à base de milho importado, bem como à falta de água em muitas explorações nacionais, nem sequer para dar de beber aos animais, há agricultores criadores de gado que se estão a desfazer dos animais: mandam-nos abater ou vendem-nos, com perdas de rendimento, antes do tempo normal. O secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais (IACA), Jaime Piçarra, sustenta que os preços dos cereais continuam muitíssimo dependentes da guerra, a que se junta ainda a relação euro/dólar, com a moeda europeia a enfraquecer, o que, “se é bom para as exportações, penaliza as importações”. E recorda: “Temos ainda a crise energética e a pressão sobre os biocombustíveis. Continuamos com instabilidade e volatilidade, e assim é mais difícil assegurar coberturas [de fornecimento de alimentos] a médio e longo prazo.”

Tudo indica, segundo alguns especialistas, que a pressão sobre os preços está para continuar e, mesmo que a Rússia respeite os acordos e comecem a ser retirados dos portos ucranianos os cerca de 25 milhões de toneladas de cereais, será uma operação logística não realizável numa semana nem num mês. Mais: trata-se de assegurar o escoamento dos cereais do ano passado que estão nos silos portuários, pois os cereais semeados este ano, ainda antes da guerra, irão ter uma fraca produtividade. De facto, os agricultores ucranianos, antes da invasão russa, já vinham a sentir o encarecimento dos fatores de produção. E, com a guerra, estão sem acesso a combustíveis, a máquinas, a fitofármacos e a toda a gama de químicos que normalmente são utilizados nas sementeiras. Em resultado de tudo isto, é esperada uma colheita bastante abaixo das expectativas iniciais, como confirmam por vários agricultores de países vizinhos da Ucrânia.

Entretanto, Sergey Lavrov continua em estado de negação, e no dia 27, em visita a Adis Abeba, capital da Etiópia, afirmando que o seu país não é responsável pelo aumento do preço dos alimentos na sequência da invasão da Ucrânia, rejeitou a “crise alimentar”. E acusou os Estados Unidos da América (EUA) e os países europeus de terem aumentado os preços por fomentarem políticas irresponsáveis ou mesmo acumulado alimentos durante a pandemia de covid-19.

A pari, a Marinha ucraniana afirma que os três portos daquele país designados para proceder às exportações de cereais “retomaram o trabalho”, embora estejam a ser feitos esforços para garantir a segurança dos corredores de passagem. Os EUA fizeram saber que, se a Rússia não permitir o escoamento dos cereais por via marítima, estarão disponíveis a pôr em marcha um ‘plano B’, por via terrestre, embora não tenham apresentado os pormenores. A União Europeia (UE), onde o trigo representa mais de 50% dos cereais cultivados, prevê atingir, em 2022 e 2023, uma exportação recorde na ordem dos 40 milhões de toneladas de cereais. Apesar disso, está a encorajar os Estados-membros a aumentarem as suas produções. E Portugal, que produz 18% dos cereais que consome, quer aumentar os números até ao dobro, a avaliar pelo anúncio de incentivos pelo Governo, através de um plano estratégico para a produção de cereais. É, pois, de aguardar pelos investimentos na inovação e no desenvolvimento tecnológico, melhorar a qualidade dos nossos solos e a disponibilidade de água, visando cereais regados.

Se assim for, podemos a crise será, de facto, uma oportunidade. Porém, será o Governo português capaz das diligências adequadas para que seja reduzida ao mínimo a crise em Portugal, limitando a escassez dos cereais e das forragens, travando a escalada de preços, reforçando as virtualidades do tecido empresarial e robustecendo o setor social e solidário? Ou teremos de concluir pela quase inanidade do Programa Portugal 2020, do ambicioso Programa Portugal 2030 e do corrente Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)?

2022.07.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Ondas de calor marinhas duplicam desde 1980 e lesam a biodiversidade

 

As excecionais ondas de calor que, em resultado das alterações climáticas que envolvem o planeta – mercê do aquecimento global, que provoca a liquefação de icebergues e glaciares e faz subir o nível das águas oceânicas – criam incómodo a todas as pessoas, nomeadamente nas que não dispõem de condições habitacionais e de deslocação climatizadas, dificulta o desempenho dos trabalhadores (a quem podem causar a morte), põe em risco as pessoas mais vulneráveis (doentes, idosos e crianças), torna quase impossível a vida nas cidades (Que o digam os chineses do sudeste e do noroeste!) e nos mais diversos recantos dos países de clima continental e tropical.  

Muitas pessoas se têm visto abraços com as ondas de calor, as quais têm provocado avarias em diversos equipamentos, excesso de utilização do ar condicionado), picos de doença e mortes. Entretanto, a novidade dos últimos dias, como defenderam especialistas à Agência France-Press (AFP), uma onda de calor “excecional” está a afetar os países do Mediterrâneo ocidental com temperaturas à superfície terrestre cinco graus acima da média. Sustentam os peritos que as temperaturas consistentemente mais quentes do que o normal nesta região do globo representam uma poderosa ameaça para todo o ecossistema marinho.

Sobre o percurso desta “enorme onda de calor”, disse a oceanógrafa Karina von Schuckmann que terá começado “em maior no mar da Ligúria” (entre a Córsega e a Itália) e se estendeu até ao mar Jónico (entre o sul de Itália e a Grécia).

Apesar de as temperaturas da água mais quentes serem mais agradáveis, sobretudo no quadro do turismo, os investigadores advertem que “o aquecimento dos oceanos tem impacto em todo o ecossistema”, pelo que importa estarmos cientes das possíveis consequências para a fauna e flora locais e da ocorrência de fenómenos climáticos extremos que podem originar catástrofes naturais.

Von Schuckmann afirmou que as temperaturas invulgarmente quentes podem também causar uma “migração irreversível” de algumas espécies e “mortes em massa” de outras.

Segundo dados da ONU, estas ondas de calor, que têm vindo a aumentar, duplicaram desde 1980.

Um estudo recém-publicado na revista Global Change Biology, que avalia, com abrangência inédita, o fenómeno, conclui que, as ondas de calor marinhas (OCMs) no mar Mediterrâneo, raras até há poucas décadas, têm sido frequentes nos últimos anos, afetando, a cada verão, várias regiões do Mediterrâneo e causando episódios de mortalidade nas comunidades marinhas, como as esponjas (Filo Porifera) e os corais (Anthozoa), pois a sucessão frequente das ondas de calor não permite a recuperação das comunidades destes poríferos (que vivem exclusivamente no ambiente aquático e apresentam o corpo repleto de poros) e destes cnidários (animais diblásticos – possuem dois folhetos germinativos), segundo refere Jean Baptiste Ledoux, ecólogo molecular francês, do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto, que contribuiu para o trabalho liderado por Joaquim Garrabou, investigador do Instituto de Ciências do Mar (Barcelona), e do Conselho Superior de Investigações Científicas de Espanha.

A investigação, que originou o estudo, reuniu trabalho de dezenas de cientistas de 11 países e instituições (de Marrocos à Turquia, passando por França, Itália, Croácia, Arábia Saudita, entre outros), incluindo Portugal, verificou a transformação deste fenómeno extraordinário em norma.      

O objetivo era retratar a gravidade das ondas de calor no Mediterrâneo ao longo do tempo e avaliar os impactos daquele calor na biodiversidade submarina que vive junto ao leito. Para tanto, a equipa avaliou as temperaturas do Mediterrâneo entre 2015 e 2019, especificamente nos meses de junho a novembro, quando a temperatura da água aumenta devido ao calor do verão. E, além das temperaturas de superfície do mar, medidas por satélite, mediu a temperatura até 45 metros de profundidade, em sete locais específicos em regiões costeiras da Espanha e da França.

Assim, obteve um perfil de temperaturas à superfície e em profundidade e avaliou a existência de OCMs, inferindo que estamos ante uma onda de calor marinha (OCM) quando a temperatura da água excede um limite superior de temperatura, matematicamente especificado, durante mais de cinco dias consecutivos.

Daí estabeleceu o número de dias cumulativos de ondas de calor num determinado lugar, a determinada profundidade, em determinado ano. Ao longo dos cinco anos, as ondas de calor afetaram 90% da bacia mediterrânea, atingindo temperaturas superiores a 26 graus Celsius (26ºC).

Por outro lado, monitorizou a saúde das comunidades bentónicas (que vivem junto ao leito marinho), até à profundidade de 45 metros, em 142 lugares ao longo da zona costeira do Mediterrâneo (e de algumas ilhas), nos cinco anos de referência. Só uma parcela das localizações foi monitorizada durante aquele período de tempo, mas a abrangência permitiu obter um retrato profundo da situação no Mediterrâneo.

Os trabalhos feitos no passado sobre o impacto da temperatura do mar nas comunidades marinhas eram limitados a nível do tempo e a da localização. Agora, como explica Ledoux, “em vez de termos uma ideia pontual do que se passa, obtivemos uma ideia geral”. A análise biológica abrangeu o nível das espécies – corais, esponjas, macroalgas, equinodermes e plantas – e o nível das comunidades que vivem em prados marinhos e em ecossistemas coralígenos, compostos por corais, esponjas e algas. Estas comunidades coralígenas constroem um habitat colorido, podendo albergar mais de 1600 espécies. Por isso, o trabalho oferece, no dizer do investigador, “uma perspetiva geral, quer a nível geográfico, quer a nível dos animais e das algas”.

Em cada um dos cinco anos em referência, foram afetados pelas ondas de calor 23 grupos taxonómicos e há grande probabilidade de desaparecerem até uma certa profundidade, pois as ondas de calor estão a causar com frequência fenómenos de mortalidade.

Os resultados não são animadores, uma vez que muitas espécies de corais e de esponjas têm um crescimento anual lento (de milímetros ou de centímetros), pelo que tais espécies, após um evento de mortalidade, necessitam de 10 a 20 anos para recuperar; e, se aqueles fenómenos extremos se repetem em poucos anos, não há tempo. Depois, como afirma Ledoux, “os corais e as esponjas são formadores de habitat” e, “quando existem, há outras espécies que aproveitam o espaço formado para o habitarem”, tal como sucede com as árvores da floresta: “quando estas ‘árvores’ desaparecem, o ecossistema muda”.

Porém, os efeitos nefastos causados por estes episódios de calor não se ficam pela fauna e flora marinhas. Provavelmente esta tendência terá impacto nas comunidades humanas costeiras. Por exemplo, pode ser colocado em causa o mergulho submarino para visitar estes ecossistemas, que promove o turismo de regiões e podem ser afetadas pelas ondas de calor as espécies de importância comercial, como a garoupa-preta (Epinephelus marginatus) e o crustáceo Scyllarides latus, que usam aquele habitat como berçário.

Há, no entanto, um foco de esperança no meio deste panorama cinzento. Alguns indivíduos das espécies de corais e de esponjas parecem mais resistentes ao stresse térmico. Por isso, Ledoux está a estudar a espécie de coral gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata), na demanda de caraterísticas genéticas associadas à resistência ao calor.

Ora, se os cientistas conseguirem identificar estes indivíduos resistentes a altas temperaturas, será possível colonizar artificialmente áreas com corais capazes de sobreviver às futuras ondas de calor, formando comunidades duradouras. Porém, o cientista avisa para os limites desta técnica.

Na verdade, como afirma Ledoux, “os trabalhos de restauração de habitats serão sempre muito localizados” e, à escala do Mediterrâneo, não é possível fazê-la, “quer em termos logísticos, quer por causa dos recursos necessários”. Portanto, a única resposta válida “é trabalhar nas causas das ondas de calor marinhas, as alterações climáticas”, defende Jean Baptiste Ledoux. E esta implica o reconhecimento da necessidade de haver uma “resposta política para haver uma diminuição do que causa as alterações climáticas”, ou seja, a emissão dos gases com efeito de estufa.

E o drama não se fica pelo Mediterrâneo. Pode mesmo estender-se aos grandes oceanos.

Por exemplo, diferentes cenários do Coupled Model Intercomparison Project Phase 6 (CMIP6) acusam tendências significativas na frequência, duração e intensidade acumulada para o Atlântico Sul Sudoeste, confirmando que tais eventos se estão a intensificar efetivamente, pelo que levarão a um estado quase permanente no final do século XXI. Foi também observado que o bloqueio atmosférico, mecanismo principal causador de OCMs na região, possivelmente, se irá intensificar no futuro. Isso permite concluir que o aumento da ocorrência de OCMs não é só resultado direto do aquecimento de longo prazo da temperatura de equilíbrio superficial global, mas também da intensificação do mecanismo gerador.

As maiores tendências foram observadas para o futuro próximo (2021-2050) e não para um futuro distante (de 2071-2100). Por isso, é oportuno o alerta em relação às implicações desses eventos nos ecossistemas marinhos e à habilidade do oceano de absolver calor e dióxido de carbono (CO2), enfatizando a urgência da diminuição global na emissão de gases de efeito de estufa.

Dizia, não há muito, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que ou travamos a tempo as alterações climáticas ou embarcamos num suicídio coletivo, que não queremos.

2022.07.28 – Louro de Carvalho  

O Sínodo da Alemanha e a situação perplexa da Igreja Católica

A Igreja Católica está em caminho sinodal com vista à celebração de um Sínodo no Vaticano em 2023 e à implementação de um estilo sinodal consistente na Igreja. E a Igreja Católica que vive na Alemanha está a fazer, desde 2019, o seu percurso autónomo (como devia ser em toda a parte), que levanta polémica, tendo merecido uma intervenção, não assinada, da Santa Sé, a que o presidente da Conferência Episcopal Alemã respondeu entre o esclarecedor e o desabrido.

Se é fundamental, no processo sinodal, a dinâmica livre e respeitosa da escuta, a rejeição liminar do sentir católico alemão é precipitada e contrária à paciência da escuta ditada pelo Papa.    

Aqueles cristãos movem a sua reflexão pela seguinte paráfrase do conteúdo constante da Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual), n.º 1: a alegria e a esperança, a dor e o medo das pessoas de hoje são a alegria e a esperança, a dor e o medo dos discípulos e das discípulas de Cristo. E deparam-se com o défice de credibilidade da Igreja. Com efeito, se as instituições religiosas violam os normativos basilares da sociedade em que estão inseridas, embatem em existenciais problemas sociais; e, se tais normas podem interpretar-se como variantes dos princípios fundamentais, as instituições religiosas têm um problema existencial: a sua credibilidade rompe-se em evidentes e estruturais autocontradições. E perdem, não os adversários, mas os apoiantes. É o que ocorrer na Igreja Católica na Alemanha, e não só.

A modernidade, além da história de progressos, tem a história de colapsos totalitários, produzindo banhos de sangue inéditos, mas tirou consequências dessa história, e as sociedades conhecem os efeitos de aprendizagem antitotalitários: democratização, separação de poderes, sistemas de controlo e contrapeso, orientação direitos humanos, fortalecimento da sociedade civil, Estado de direito. Ora, a Igreja Católica caiu na ilusão de que não precisava de adotar tais parâmetros, porque não esteve envolvida nos colapsos do totalitarismo e se sente protegida dos abusos de poder graças à assistência de Deus e à própria superioridade moral. Assim, esta Igreja carece de mecanismos internos de perceção, crítica e correção, bem como dos mecanismos usuais na sociedade para combater os abusos.

Desde a Reforma, a Igreja Católica viveu fortes perdas de relevância e humilhações: o surgimento de Igrejas cristãs independentes; a sociedade burguesa que se formou à margem da religião; as religiões políticas do século XIX; e a individualização religiosa atual.

Até ao  Vaticano II, reagiu com a estratégia da “inclusão mediante exclusão”. Porém, o Concílio gerou uma mudança teológica e espiritual fundamental baseada na vontade salvífica universal de Deus e na despedida do platonismo de perspetiva central para passar ao pluralismo ligado aos acontecimentos – que práticas pós-conciliares atacaram, sobretudo no direito canónico. Por isso, entrámos numa era de autonomia religiosa com uma forma social disfuncional da Igreja de formação constantiniana, quando o mundo atual é um mundo secular em que Deus não é necessário e em que falta religião, mas em que a fé precisa de intervir.

***

Neste contexto, a Arquidiocese de Berlim chegou ao Katholikentag (encontro alemão organizado pelos leigos da Igreja Católica) com o lema “Compartilhar o sorvete – Compartilhar a vida”, servido pelas questões: “Se a nossa fé fosse um sorvete, que sabor teria? Qual a sua essência? Que ingrediente não pode faltar?”. Contudo, há um equívoco: a vida nem sempre é deliciosa e a morte não lhe dá sabor. Por isso, abre espaço para a pergunta: “O que nos falta na vida? Onde falta sabor? Onde está o espaço na Igreja para as perguntas últimas, existenciais?” E não vale a pena a pressa em abordar questões da ressurreição ou da teodiceia.

A aceitação da pessoa secular que não tenha nada a ver com Deus, com a religião ou com a Igreja é a atitude em que o amor de Deus respira, em que os cristãos acreditam que estão colocados com e sem Deus. Aqui é importante sentir, ouvir o que está a faltar e atender à pergunta de Jesus: “O que queres que eu te faça?”. A Igreja dobra a esquina da rua demasiado rápido, sem tempo para atender as pessoas, sobretudo se não são do grupo e se não estão disponíveis para ouvir. Ora, o que está em causa é sair, procurar, estar à espera, acompanhar, nunca desanimando se não temos papel, resposta, questões, se passamos para o segundo plano.

Depois, a Igreja deve ter uma liturgia de serviço às pessoas e à sociedade. Na verdade, a Igreja tem grande riqueza de palavras, de imagens, de ritos. Só falta a abertura desses espaços à questão humana sobre “o que falta” na vida. O que falta à Igreja é a fé e a fidelidade à sua constituição. O seu terreno é o secularismo. Pouco lhe cabe saber quem faz parte da Igreja, mas o que falta.

Esta Igreja já existe nas Cáritas, nas escolas católicas, no ensino religioso, nas ordens religiosas. Só é preciso tornar a espiritualidade frutífera para os problemas do mundo; e parar ativamente para fortalecer e avaliar a própria liderança. Portanto, é inútil lamentar a falta de aceitação, o que sabe a glorificação do absolutismo, do sistema de governo patriarcal. O que interessa é ter uma gestão profissional e eficaz, com vista à reta formação na fé.

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A 21 de julho, a Santa Sé interveio no Caminho Sinodal com uma declaração no sentido de que, “para proteger a liberdade do Povo de Deus e o ministério episcopal, parece necessário especificar que o Caminho sinodal na Alemanha não tem poder para obrigar bispos e fiéis a assumirem novas formas de governo e novas abordagens de doutrina e moral e “não seria lícito iniciar nas dioceses, antes de um acordo no âmbito de toda a Igreja, novas estruturas oficiais ou doutrinas, que seriam uma ferida à comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da Igreja”.

A declaração continua citando palavras do Papa na Carta ao Povo de Deus que está a caminho na Alemanha: “A Igreja universal vive nas e das Igrejas particulares, assim como as Igrejas particulares vivem e florescem na e da Igreja universal; e, se se encontram separadas de todo o corpo eclesial, enfraquecem-se, apodrecem e morrem. Daí a necessidade de manter sempre viva e eficaz a comunhão com todo o corpo da Igreja”. Por isso, a Santa Sé espera “que as propostas do Caminho das Igrejas particulares na Alemanha confluam no caminho sinodal que a Igreja inteira está a percorrer, para um enriquecimento recíproco e um testemunho daquela unidade com a qual o corpo da Igreja manifesta sua fidelidade a Cristo Senhor”.

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No mesmo dia em que a Sala de Imprensa vaticana emitiu a sua nota, não assinada, os presidentes do Caminho Sinodal – Dr. Irme Stetter-Karp, presidente do Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e o bispo Georg Bätzing, bispo de Limburg e presidente da Conferência Episcopal Alemã – responderam à Santa Sé com uma declaração.

Mostram-se satisfeitos por a Santa Sé reiterar os compromissos assumidos nos Estatutos e no Regulamento interno antes do início do Caminho Sinodal 2019, instrumentos onde fica evidente que qualquer resolução da Assembleia sinodal “não terá, por si mesma, efeito legal”, razão por que o poder da Conferência Episcopal e de cada bispo de adotar normas jurídicas e exercer o seu magistério no quadro das suas competências respetivas “não será afetado por aquelas resoluções”. Esclarecem que as resoluções cuja matéria dependa de regulamentação eclesiástica universal serão transmitidas à Santa Sé, acompanhadas com a votação que for registada no sínodo, como previsto e acordado com a Santa Sé. E prosseguem, vincando que é seu dever expor claramente as mudanças que julgam necessárias e que os problemas e questões que enumeram são semelhantes em todo o mundo e prometendo não se cansarem de sublinhar que a Igreja na Alemanha não seguirá um caminho especial alemão.

A Igreja alemã afirma aceitar e desejar o “enriquecimento mútuo” que advém da comunicação entre as Igrejas locais e a Igreja Universal – aspeto enfatizado pela declaração de Roma – e que pretende ampliar o diálogo com a Cúria romana. Mas anota que o Caminho Sinodal resultou do estudo sobre o “abuso sexual de menores por sacerdotes, diáconos e religiosos na área da responsabilidade da Conferência Episcopal Alemã” e que os bispos e ZdK estão a percorrer juntos este caminho, “seguros do apoio e cooperação ativa do povo de Deus peregrino”.

Manifesta a determinação de contribuir para o processo sinodal da Igreja universal, aberto pelo Papa: “Sempre insistimos que queremos ativamente dar corpo a este processo através do nosso trabalho”. E, reiterando a importância da “comunicação direta com as autoridades romanas”, manifesta “irritação” por essa comunicação direta não ter acontecido até agora, pois esse seria “o lugar adequado para realizar os esclarecimentos necessários”.

Lamenta que a presidência sinodal não tenha sido convidada para uma discussão, pois, em seu entender, “uma igreja sinodal é algo diferente”. E, numa clara alusão ao facto de a posição do Vaticano ter assumido a forma de um comunicado de imprensa, vinca: “Isto também se aplica à forma de comunicação atual, que nos espanta. Quando se publicam declarações que não são assinadas, não se mostra um bom estilo de comunicação no interior da Igreja.”

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Já a 16 de abril deste ano, o presidente da Conferência Episcopal Alemã, declarou que o Caminho Sinodal do país não levará ao cisma, como sustentam os críticos (mais de 80 bispos), defendendo o processo como resposta aos abusos na Igreja. É a tentativa da Igreja na Alemanha de confrontar as causas sistémicas do abuso e do encobrimento que causaram sofrimento incalculável a tantas pessoas na e pela Igreja. O Caminho Sinodal reúne leigos alemães e bispos católicos para discutir quatro grandes temas: como é exercido o poder na Igreja; moralidade sexual; sacerdócio; e papel das mulheres. No início, os bispos alemães disseram que as deliberações seriam vinculativas para a Igreja alemã, levando a intervenção do Vaticano, que rejeitou tais alegações.

Em votações preliminares e provisórias, na sessão de fevereiro passado, a proposta da bênção de casais do mesmo sexo obteve 161 votos a favor e 34 contra; a reavaliação da doutrina sobre a homossexualidade mereceu 174 votos contra 22 e a ordenação presbiteral das mulheres foi apoiada por 174 delegados, tendo 30 votado contra. Isto fez soar as campainhas em vários setores, julgando que, a concretizarem-se tais decisões, se estaria a desenhar um cenário de cisma.

O bispo Bätzing respondeu às preocupações do arcebispo Áquila de que os abusos na Igreja dificultaram o seu testemunho e esclareceu que o Caminho Sinodal é “a nossa tentativa de tornar possível novamente uma proclamação credível da Boa Nova”.

A recente carta aberta dos bispos e teólogos aludiu à carta de preocupação do arcebispo Áquila, de maio de 2021, sobre o Caminho Sinodal, em que observou que a assembleia sinodal alemã está certa em expressar angústia por escândalos e encobrimentos de abuso sexual do clero, que geraram “uma verdadeira crise de credibilidade para a Igreja”. Porém, deve haver consequências do escândalo de abuso para as estruturas da Igreja, segundo Bätzing, que vê na carta aberta embelezamentos eufemísticos que não ajudam e acusações surpreendentes, sem justificação consistente, pois os temores sobre o Caminho Sinodal da Igreja Católica na Alemanha “não são corretos”. Este caminho de forma nenhuma mina a autoridade da Igreja, incluindo a do Papa.

Bätzing diz que pôde “falar várias vezes com o Santo Padre sobre o caminho sinodal” e que o Papa, na carta ao povo de Deus peregrino na Alemanha, de junho de 2019, pediu que a Igreja na Alemanha percorresse o caminho como uma busca de uma resposta corajosa à situação atual e como um caminho espiritual, pedindo a orientação do Espírito Santo”. Ora, como não há aprovação definitiva sobre o poder na Igreja, o ministério presbiteral, o papel da mulher e a vida afetiva e sexual (áreas problemáticas do Sínodo alemão) a declaração da Santa Sé é tida como aviso, medida cautelar ou travão, o que parece precipitado e contrário à abertura de Francisco.

2022.07.27 – Louro de Carvalho 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

A Pragmática Linguística como fautora da comunicação humana

 
A partir de 1851, o termo “pragmatismo”, para lá do uso jurídico, designa a corrente filosófica pela qual o valor prático de uma proposição é o critério da sua verdade ou, pelo menos, da sua aceitabilidade. Charles S. Peirce lançou os seus fundamentos ao defender que a ideia que temos de um fenómeno ou de um objeto é a soma das ideias que podemos obter acerca das consequências práticas desse fenómeno ou das ações que podem ser feitas sobre tal objeto.
Sustenta Peirce que, para atingir clareza de apreensão, temos de considerar os efeitos do objeto da nossa conceção, que podem concebivelmente ter consequências práticas, pois a nossa conceção desses efeitos é a totalidade da nossa conceção do objeto. Isto, porque o significado de qualquer ideia que tenhamos em mente só será aquilatado na relação com os efeitos práticos concebíveis inerentes a essa ideia. E pensar que, sob a ideia da totalidade dos efeitos sensíveis concebíveis, há algo mais, uma realidade para lá das aparências, é criar ficção.
Peirce extraiu a máxima pragmatista da sua experiência como cientista de laboratório. Com efeito, para o físico, por exemplo, o significado de conceitos como “peso” ou “dureza” é só o conjunto de efeitos práticos das substâncias que têm tais qualidades.
E o Pragmatismo estende a visão laboratorial a todas as esferas de intervenção humana, inclusive ao uso da linguagem. Na corrente pragmatista da filosofia norte-americana, Peirce distingue três dimensões do signo linguístico, que Charles Morris, em 1938, no processo de semiose (produção e representação de sentidos), denomina de Semântica, Sintática e Pragmática. Se a Semântica concerne à relação dos signos com os objetos para que remetem, a Sintática à relação dos signos entre si e a Pragmática à relação dos signos com os seus interpretantes. Para Morris, na semiose, algo funciona como signo para alguém. E este processo compreende: o veículo sígnico (que age como signo); o designatum (aquilo a que o signo se refere); o interpretante (o efeito sobre alguém pelo qual a coisa é signo para esse alguém); e o intérprete (quem recebe o signo).
É também de observar que os fatores da semiose são relacionais, de modo que só subsistem enquanto se implicam uns aos outros. Só há veículo sígnico se houver um designatum e um interpretante, correspondentes. O mesmo vale para os dois últimos fatores: a existência de um implica a existência dos outros. Por isso, a semiótica não estuda quaisquer objetos específicos, mas todos os objetos, desde que participem num processo de semiose.
A semiose é tridimensional e a esquematização do processo toma a forma de triângulo. E da sua relação triádica extraem-se três tipos de relações diádicas: as relações que os signos estabelecem entre si (Sintaxe); as relações que os signos estabelecem com os objetos (Semântica); e as relações dos signos com os seus intérpretes (Pragmática). Esta arrumação decorre da análise do processo semiósico, em que algo se torna para alguém signo de uma outra coisa, e retoma a divisão medieval do trivium (estudo das vocês) em Gramática, Dialética (Lógica) e Retórica. Peirce foi o primeiro a reinterpretar as velhas artes dicendi como partes da semiótica, sistematizando-as em disciplinas que tratam, respetivamente, da primeiridade, da secundidade e da terceiridade. E subdividiu a semiótica em Gramática Especulativa, com a função de descobrir o que deve ser verdade do representamen usado por qualquer inteligência científica para que receba significação, Lógica Pura, como a ciência do que é necessariamente verdade dos representamina de uma inteligência científica para que possam valer para qualquer objeto, isto é, para que possam ser verdadeiros, e Retórica Pura, com a função de descobrir as leis graças às quais em qualquer inteligência científica um signo dá origem a um outro e em particular um pensamento produz outro pensamento. A Gramática Especulativa trata das condições formais dos símbolos que têm significado; a Lógica, das condições formais de verdade dos símbolos; e a Retórica, das condições formais da força dos símbolos ou do poder de apelar à mente, isto é, da sua referência aos interpretantes (é a Retórica formal). Posteriormente, Morris cobriu, com a divisão da Semiótica em Sintática, Semântica e Pragmática, as diferentes correntes filosóficas dos anos trinta que estudam os signos, sob perspetivas diferentes. A Sintática incorpora os trabalhos do Positivismo lógico, a Semântica os estudos dos empiristas e a Pragmática as investigações do Pragmatismo.
O sentido que um enunciado adquire em função das determinações das pessoas, dos lugares, dos momentos e das razões que levam à sua enunciação é função da sua dimensão pragmática, ou seja, das relações e dos efeitos dos signos sobre os seus intérpretes. Com efeito, determinar a significação de um enunciado é definir o seu valor semântico, ser capaz de apreender aquilo para que remete a sua expressão, em função da língua comum dos interlocutores. Mas compreender as razões da sua enunciação postula a capacidade de o enquadrar numa concreta e singular situação interlocutiva. É isso que torna o discurso relevante, pertinente ou plausível.
Assim, o estudo das relações da linguagem com as situações e com os contextos enunciativos, e os como tais relações são asseguradas, são dos objetos fundamentais e primeiros da Pragmática.
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Mas, nesta, há diversas perspetivas que adquiriram um espaço próprio de concetualização e atualização, nomeadamente as perspetivas indexical, acional e conversacional.
A perspetiva indexical corresponde à relação dos enunciados entre os interlocutores, as situações, os contextos da enunciação e o mundo representado pelos signos. Esta perspetiva assegura o estudo do que deve ser considerado como válido sobre os indicadores que identificam as instâncias enunciativas e os seus referentes, tais como os interlocutores, a realidade referenciada e os quadros espácio-temporais do contexto pertinentes para a determinação do sentido do que é enunciado. Liga-se-lhe uma posição extrinsecalista – de inspiração saussuriana – que restringe o objeto da pragmática da linguagem a uma situação enunciativa exterior à constituição de sentido, não intervindo propriamente como fator do valor semântico dos enunciados.
Neste aspeto, a Pragmática não concerne à teoria da linguagem, mas às condições externas, de índole histórica, psicológica, sociológica e ideológica do discurso, isto é, aos usos individuais que os falantes fazem da linguagem. Converte-se a Língua em discurso e atualiza-se num determinado contexto enunciativo. Entra aqui a dêixis, como o fenómeno de referenciação do ato de enunciação no enunciado pelas marcas pessoais (v. g: eu, tu…), temporais (v. g: agora, já, amanhã…) e espaciais (v. g: aqui, ali…). E ao rol das preocupações linguísticas acrescem as estruturas que manifestam a atitude do locutor face ao que diz e ao conteúdo proposicional do seu enunciado.
A perspetiva acional corresponde ao estudo da linguagem enquanto ação, como realização de atos que intervêm na constituição e na transformação do mundo. Aqui, a Pragmática tenta identificar a natureza, as condições de realização e a validade que os interlocutores efetuam pelos processos de interlocução. A esta perspetiva ligam-se as posições intrinsecalistas. Por um lado, considera-se que a linguagem possui natureza acional, englobando as verificações ou os enunciados assertivos, na forma afirmativa e na negativa, e faz-se depender do processo interlocutivo a constituição das condições de realização dos atos de linguagem. Por outro lado, entende-se que só parte das expressões linguísticas – enunciados performativos (pedidos, ordens, interrogações, declarações, veredictos…) – se presta ao desempenho de ações e que este desempenho está determinado pelo código da Língua. Nesta ótica, focamo-nos no dado significativo de enunciados que realizam determinados atos, de modo a podermos aferir da verdade dum enunciado factual e a verificar se determinado facto existiu ou se uma promessa se cumpriu.
É nesta ótica que há espaço para a distinção entre ato locutório (ato de falta pelo qual se produz um enunciado), ato ilocutório (ato de fala cujo enunciado revela uma intenção do locutor junto do interlocutor) e ato perlocutório (ato de fala que tem efeito no interlocutor, que reage em conformidade). O fulcro está no ato ilocutório que pode apresentar-se como: assertivo ou representativo, se aponta a relação do locutor com a verdade; diretivo, se quer que o interlocutor realize uma ação verbal ou não (ordem, pedido, conselho, sugestão, convite…); compromissivo, se implica uma ação futura do locutor (promessa, ameaça, juramento…); ato expressivo, se evidencia um estado psicológico específico no locutor (queixa, agradecimento, queixa, pedido de desculpa, manifestação de júbilo…) e ato declarativo, se torna existente a situação descrita pelo conteúdo proposicional do enunciado (nomeação, sentença, doação, casamento…).
Por fim, a perspetiva conversacional tem como objeto os processos inferenciais, tais como as implicitações e as pressuposições, que os falantes realizam no decurso dos processos de interlocução, para compreenderem o sentido que os enunciados dão a entender. Só quem se insere na tendência intrinsecalista admite esta perspetiva, referindo-se, várias vezes, ao interacionismo simbólico e utilizando amiúde os quadros concetuais da etnometodologia.
Assim, nesta perspetiva, para que aconteça e se mantenha o diálogo um dos princípios de maior alcance é o Princípio de Cooperação (põe de acordo os interlocutores), subdividido em quatro subprincípios que sustentam as Máximas Conversacionais: máxima de qualidade – tentar que a contribuição seja verdadeira; máxima de quantidade – tornar a contribuição tão informativa como requerido; máxima de relação – ser relevante (Princípio da Pertinência); e máxima de modo – ser claro, afável (Princípio da Cortesia). Desta forma, o Princípio de Cooperação e as Máximas Conversacionais que o concretizam exprimem a cumplicidade que se cria, entre os participantes numa conversa, cumplicidade de que todos os falantes têm consciência. Os princípios concretizados nas Máximas são princípios universais que guiam a interação conversacional. É de não esquecer que algumas destas máximas são infringidas em certas alturas – sobretudo em situações ficcionadas e mediadas e sempre que o locutor tem propósito irónico ou sarcástico –, mas há caraterísticas dos participantes que levam à infração dessas máximas conversacionais.
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É importante o estudo da linguagem (veículo de expressão pensamento e de sentimento e instrumento de comunicação) e da Língua (complexo de signos posto à disposição da comunidade dos falantes), pela descrição das suas diversas realizações ao logo do tempo e do hoje, deixando-se surpreender pelas suas leis internas e observando as normas assumidas pela norma-padrão. Porém, se não formos capazes de operacionalizar, em interação, o uso da Língua em termos da comunicação bilateral, da exposição unilateral, da difusão e do debate multilateral, arriscamo-nos a viver falando num mundo de trogloditas, a suportar monólogos fastidiosos e praticar diálogos de surdos ou de fastídio e conversações em que pontifica o amuo, a ameaça, a agressão ou o inútil delicodoce. E a Língua pode e deve ser um fator de entendimento e de paz.

2022.07.27 – Louro de Carvalho