quinta-feira, 28 de julho de 2022

O Sínodo da Alemanha e a situação perplexa da Igreja Católica

A Igreja Católica está em caminho sinodal com vista à celebração de um Sínodo no Vaticano em 2023 e à implementação de um estilo sinodal consistente na Igreja. E a Igreja Católica que vive na Alemanha está a fazer, desde 2019, o seu percurso autónomo (como devia ser em toda a parte), que levanta polémica, tendo merecido uma intervenção, não assinada, da Santa Sé, a que o presidente da Conferência Episcopal Alemã respondeu entre o esclarecedor e o desabrido.

Se é fundamental, no processo sinodal, a dinâmica livre e respeitosa da escuta, a rejeição liminar do sentir católico alemão é precipitada e contrária à paciência da escuta ditada pelo Papa.    

Aqueles cristãos movem a sua reflexão pela seguinte paráfrase do conteúdo constante da Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual), n.º 1: a alegria e a esperança, a dor e o medo das pessoas de hoje são a alegria e a esperança, a dor e o medo dos discípulos e das discípulas de Cristo. E deparam-se com o défice de credibilidade da Igreja. Com efeito, se as instituições religiosas violam os normativos basilares da sociedade em que estão inseridas, embatem em existenciais problemas sociais; e, se tais normas podem interpretar-se como variantes dos princípios fundamentais, as instituições religiosas têm um problema existencial: a sua credibilidade rompe-se em evidentes e estruturais autocontradições. E perdem, não os adversários, mas os apoiantes. É o que ocorrer na Igreja Católica na Alemanha, e não só.

A modernidade, além da história de progressos, tem a história de colapsos totalitários, produzindo banhos de sangue inéditos, mas tirou consequências dessa história, e as sociedades conhecem os efeitos de aprendizagem antitotalitários: democratização, separação de poderes, sistemas de controlo e contrapeso, orientação direitos humanos, fortalecimento da sociedade civil, Estado de direito. Ora, a Igreja Católica caiu na ilusão de que não precisava de adotar tais parâmetros, porque não esteve envolvida nos colapsos do totalitarismo e se sente protegida dos abusos de poder graças à assistência de Deus e à própria superioridade moral. Assim, esta Igreja carece de mecanismos internos de perceção, crítica e correção, bem como dos mecanismos usuais na sociedade para combater os abusos.

Desde a Reforma, a Igreja Católica viveu fortes perdas de relevância e humilhações: o surgimento de Igrejas cristãs independentes; a sociedade burguesa que se formou à margem da religião; as religiões políticas do século XIX; e a individualização religiosa atual.

Até ao  Vaticano II, reagiu com a estratégia da “inclusão mediante exclusão”. Porém, o Concílio gerou uma mudança teológica e espiritual fundamental baseada na vontade salvífica universal de Deus e na despedida do platonismo de perspetiva central para passar ao pluralismo ligado aos acontecimentos – que práticas pós-conciliares atacaram, sobretudo no direito canónico. Por isso, entrámos numa era de autonomia religiosa com uma forma social disfuncional da Igreja de formação constantiniana, quando o mundo atual é um mundo secular em que Deus não é necessário e em que falta religião, mas em que a fé precisa de intervir.

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Neste contexto, a Arquidiocese de Berlim chegou ao Katholikentag (encontro alemão organizado pelos leigos da Igreja Católica) com o lema “Compartilhar o sorvete – Compartilhar a vida”, servido pelas questões: “Se a nossa fé fosse um sorvete, que sabor teria? Qual a sua essência? Que ingrediente não pode faltar?”. Contudo, há um equívoco: a vida nem sempre é deliciosa e a morte não lhe dá sabor. Por isso, abre espaço para a pergunta: “O que nos falta na vida? Onde falta sabor? Onde está o espaço na Igreja para as perguntas últimas, existenciais?” E não vale a pena a pressa em abordar questões da ressurreição ou da teodiceia.

A aceitação da pessoa secular que não tenha nada a ver com Deus, com a religião ou com a Igreja é a atitude em que o amor de Deus respira, em que os cristãos acreditam que estão colocados com e sem Deus. Aqui é importante sentir, ouvir o que está a faltar e atender à pergunta de Jesus: “O que queres que eu te faça?”. A Igreja dobra a esquina da rua demasiado rápido, sem tempo para atender as pessoas, sobretudo se não são do grupo e se não estão disponíveis para ouvir. Ora, o que está em causa é sair, procurar, estar à espera, acompanhar, nunca desanimando se não temos papel, resposta, questões, se passamos para o segundo plano.

Depois, a Igreja deve ter uma liturgia de serviço às pessoas e à sociedade. Na verdade, a Igreja tem grande riqueza de palavras, de imagens, de ritos. Só falta a abertura desses espaços à questão humana sobre “o que falta” na vida. O que falta à Igreja é a fé e a fidelidade à sua constituição. O seu terreno é o secularismo. Pouco lhe cabe saber quem faz parte da Igreja, mas o que falta.

Esta Igreja já existe nas Cáritas, nas escolas católicas, no ensino religioso, nas ordens religiosas. Só é preciso tornar a espiritualidade frutífera para os problemas do mundo; e parar ativamente para fortalecer e avaliar a própria liderança. Portanto, é inútil lamentar a falta de aceitação, o que sabe a glorificação do absolutismo, do sistema de governo patriarcal. O que interessa é ter uma gestão profissional e eficaz, com vista à reta formação na fé.

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A 21 de julho, a Santa Sé interveio no Caminho Sinodal com uma declaração no sentido de que, “para proteger a liberdade do Povo de Deus e o ministério episcopal, parece necessário especificar que o Caminho sinodal na Alemanha não tem poder para obrigar bispos e fiéis a assumirem novas formas de governo e novas abordagens de doutrina e moral e “não seria lícito iniciar nas dioceses, antes de um acordo no âmbito de toda a Igreja, novas estruturas oficiais ou doutrinas, que seriam uma ferida à comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da Igreja”.

A declaração continua citando palavras do Papa na Carta ao Povo de Deus que está a caminho na Alemanha: “A Igreja universal vive nas e das Igrejas particulares, assim como as Igrejas particulares vivem e florescem na e da Igreja universal; e, se se encontram separadas de todo o corpo eclesial, enfraquecem-se, apodrecem e morrem. Daí a necessidade de manter sempre viva e eficaz a comunhão com todo o corpo da Igreja”. Por isso, a Santa Sé espera “que as propostas do Caminho das Igrejas particulares na Alemanha confluam no caminho sinodal que a Igreja inteira está a percorrer, para um enriquecimento recíproco e um testemunho daquela unidade com a qual o corpo da Igreja manifesta sua fidelidade a Cristo Senhor”.

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No mesmo dia em que a Sala de Imprensa vaticana emitiu a sua nota, não assinada, os presidentes do Caminho Sinodal – Dr. Irme Stetter-Karp, presidente do Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e o bispo Georg Bätzing, bispo de Limburg e presidente da Conferência Episcopal Alemã – responderam à Santa Sé com uma declaração.

Mostram-se satisfeitos por a Santa Sé reiterar os compromissos assumidos nos Estatutos e no Regulamento interno antes do início do Caminho Sinodal 2019, instrumentos onde fica evidente que qualquer resolução da Assembleia sinodal “não terá, por si mesma, efeito legal”, razão por que o poder da Conferência Episcopal e de cada bispo de adotar normas jurídicas e exercer o seu magistério no quadro das suas competências respetivas “não será afetado por aquelas resoluções”. Esclarecem que as resoluções cuja matéria dependa de regulamentação eclesiástica universal serão transmitidas à Santa Sé, acompanhadas com a votação que for registada no sínodo, como previsto e acordado com a Santa Sé. E prosseguem, vincando que é seu dever expor claramente as mudanças que julgam necessárias e que os problemas e questões que enumeram são semelhantes em todo o mundo e prometendo não se cansarem de sublinhar que a Igreja na Alemanha não seguirá um caminho especial alemão.

A Igreja alemã afirma aceitar e desejar o “enriquecimento mútuo” que advém da comunicação entre as Igrejas locais e a Igreja Universal – aspeto enfatizado pela declaração de Roma – e que pretende ampliar o diálogo com a Cúria romana. Mas anota que o Caminho Sinodal resultou do estudo sobre o “abuso sexual de menores por sacerdotes, diáconos e religiosos na área da responsabilidade da Conferência Episcopal Alemã” e que os bispos e ZdK estão a percorrer juntos este caminho, “seguros do apoio e cooperação ativa do povo de Deus peregrino”.

Manifesta a determinação de contribuir para o processo sinodal da Igreja universal, aberto pelo Papa: “Sempre insistimos que queremos ativamente dar corpo a este processo através do nosso trabalho”. E, reiterando a importância da “comunicação direta com as autoridades romanas”, manifesta “irritação” por essa comunicação direta não ter acontecido até agora, pois esse seria “o lugar adequado para realizar os esclarecimentos necessários”.

Lamenta que a presidência sinodal não tenha sido convidada para uma discussão, pois, em seu entender, “uma igreja sinodal é algo diferente”. E, numa clara alusão ao facto de a posição do Vaticano ter assumido a forma de um comunicado de imprensa, vinca: “Isto também se aplica à forma de comunicação atual, que nos espanta. Quando se publicam declarações que não são assinadas, não se mostra um bom estilo de comunicação no interior da Igreja.”

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Já a 16 de abril deste ano, o presidente da Conferência Episcopal Alemã, declarou que o Caminho Sinodal do país não levará ao cisma, como sustentam os críticos (mais de 80 bispos), defendendo o processo como resposta aos abusos na Igreja. É a tentativa da Igreja na Alemanha de confrontar as causas sistémicas do abuso e do encobrimento que causaram sofrimento incalculável a tantas pessoas na e pela Igreja. O Caminho Sinodal reúne leigos alemães e bispos católicos para discutir quatro grandes temas: como é exercido o poder na Igreja; moralidade sexual; sacerdócio; e papel das mulheres. No início, os bispos alemães disseram que as deliberações seriam vinculativas para a Igreja alemã, levando a intervenção do Vaticano, que rejeitou tais alegações.

Em votações preliminares e provisórias, na sessão de fevereiro passado, a proposta da bênção de casais do mesmo sexo obteve 161 votos a favor e 34 contra; a reavaliação da doutrina sobre a homossexualidade mereceu 174 votos contra 22 e a ordenação presbiteral das mulheres foi apoiada por 174 delegados, tendo 30 votado contra. Isto fez soar as campainhas em vários setores, julgando que, a concretizarem-se tais decisões, se estaria a desenhar um cenário de cisma.

O bispo Bätzing respondeu às preocupações do arcebispo Áquila de que os abusos na Igreja dificultaram o seu testemunho e esclareceu que o Caminho Sinodal é “a nossa tentativa de tornar possível novamente uma proclamação credível da Boa Nova”.

A recente carta aberta dos bispos e teólogos aludiu à carta de preocupação do arcebispo Áquila, de maio de 2021, sobre o Caminho Sinodal, em que observou que a assembleia sinodal alemã está certa em expressar angústia por escândalos e encobrimentos de abuso sexual do clero, que geraram “uma verdadeira crise de credibilidade para a Igreja”. Porém, deve haver consequências do escândalo de abuso para as estruturas da Igreja, segundo Bätzing, que vê na carta aberta embelezamentos eufemísticos que não ajudam e acusações surpreendentes, sem justificação consistente, pois os temores sobre o Caminho Sinodal da Igreja Católica na Alemanha “não são corretos”. Este caminho de forma nenhuma mina a autoridade da Igreja, incluindo a do Papa.

Bätzing diz que pôde “falar várias vezes com o Santo Padre sobre o caminho sinodal” e que o Papa, na carta ao povo de Deus peregrino na Alemanha, de junho de 2019, pediu que a Igreja na Alemanha percorresse o caminho como uma busca de uma resposta corajosa à situação atual e como um caminho espiritual, pedindo a orientação do Espírito Santo”. Ora, como não há aprovação definitiva sobre o poder na Igreja, o ministério presbiteral, o papel da mulher e a vida afetiva e sexual (áreas problemáticas do Sínodo alemão) a declaração da Santa Sé é tida como aviso, medida cautelar ou travão, o que parece precipitado e contrário à abertura de Francisco.

2022.07.27 – Louro de Carvalho 

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