A Igreja
Católica está em caminho sinodal com vista à celebração de um Sínodo no
Vaticano em 2023 e à implementação de um estilo sinodal consistente na Igreja.
E a Igreja Católica que vive na Alemanha está a fazer, desde 2019, o seu
percurso autónomo (como devia ser em toda a parte), que levanta polémica, tendo
merecido uma intervenção, não assinada, da Santa Sé, a que o presidente da
Conferência Episcopal Alemã respondeu entre o esclarecedor e o desabrido.
Se é
fundamental, no processo sinodal, a dinâmica livre e respeitosa da escuta, a
rejeição liminar do sentir católico alemão é precipitada e contrária à
paciência da escuta ditada pelo Papa.
Aqueles
cristãos movem a sua reflexão pela seguinte paráfrase do conteúdo constante da Gaudium et Spes (Constituição Pastoral
sobre a Igreja no mundo atual), n.º 1: a alegria e a esperança, a dor e o medo
das pessoas de hoje são a alegria e a esperança, a dor e o medo dos discípulos
e das discípulas de Cristo. E
deparam-se com o défice de credibilidade da Igreja. Com efeito, se as instituições
religiosas violam os normativos basilares da sociedade em que estão inseridas,
embatem em existenciais problemas sociais; e, se tais normas podem interpretar-se
como variantes dos princípios fundamentais, as instituições religiosas têm um
problema existencial: a sua credibilidade rompe-se em evidentes e estruturais autocontradições.
E perdem, não os adversários, mas os apoiantes. É o que ocorrer na Igreja Católica na Alemanha, e não só.
A
modernidade, além da história de progressos, tem a história de colapsos
totalitários, produzindo banhos de sangue inéditos, mas tirou consequências
dessa história, e as sociedades conhecem os efeitos de aprendizagem antitotalitários: democratização,
separação de poderes, sistemas de controlo e contrapeso, orientação direitos
humanos, fortalecimento da sociedade civil, Estado de direito. Ora, a Igreja
Católica caiu na ilusão de que não precisava de adotar tais parâmetros, porque
não esteve envolvida nos colapsos do totalitarismo e se sente
protegida dos abusos de poder graças à assistência de Deus e à própria
superioridade moral. Assim, esta Igreja carece
de mecanismos internos de perceção, crítica e correção, bem como dos mecanismos
usuais na sociedade para combater os abusos.
Desde
a Reforma, a Igreja Católica viveu fortes
perdas de relevância e humilhações: o surgimento de Igrejas cristãs
independentes; a sociedade burguesa que se formou à margem da religião; as
religiões políticas do século XIX; e a individualização religiosa atual.
Até ao
Vaticano II, reagiu com a estratégia da “inclusão mediante exclusão”. Porém, o
Concílio gerou uma mudança teológica e espiritual fundamental baseada na
vontade salvífica universal de Deus e na despedida do platonismo de perspetiva
central para passar ao pluralismo ligado aos acontecimentos – que práticas pós-conciliares
atacaram, sobretudo no direito canónico. Por isso, entrámos numa era de autonomia religiosa com uma forma
social disfuncional da Igreja de formação constantiniana, quando o mundo atual
é um mundo secular em que Deus não é necessário e em que falta religião, mas em
que a fé precisa de intervir.
***
Neste
contexto, a Arquidiocese de
Berlim chegou ao Katholikentag
(encontro alemão organizado pelos leigos da Igreja Católica) com o lema “Compartilhar o
sorvete – Compartilhar a vida”, servido
pelas questões: “Se a nossa fé fosse um sorvete, que sabor teria? Qual a sua
essência? Que ingrediente não pode faltar?”. Contudo, há um equívoco: a vida nem
sempre é deliciosa e a morte não lhe dá sabor. Por isso, abre espaço para a
pergunta: “O que nos falta na vida? Onde falta sabor? Onde está o espaço na
Igreja para as perguntas últimas, existenciais?” E não vale a pena a pressa em
abordar questões da ressurreição ou da teodiceia.
A aceitação
da pessoa secular que não tenha nada a ver com Deus, com a religião ou com a
Igreja é a atitude em que o amor de Deus respira, em que os cristãos acreditam
que estão colocados com e sem Deus. Aqui é importante sentir, ouvir o que está a
faltar e atender à pergunta de Jesus: “O que queres que eu te faça?”. A Igreja
dobra a esquina da rua demasiado rápido, sem tempo para atender as pessoas,
sobretudo se não são do grupo e se não estão disponíveis para ouvir. Ora, o que
está em causa é sair, procurar, estar à espera, acompanhar, nunca desanimando
se não temos papel, resposta, questões, se passamos para o segundo plano.
Depois, a Igreja deve ter uma liturgia de serviço às pessoas e à
sociedade. Na verdade, a Igreja tem
grande riqueza de palavras, de imagens, de ritos. Só falta a abertura desses
espaços à questão humana sobre “o que falta” na vida. O que falta à Igreja é a fé
e a fidelidade à
sua constituição. O seu
terreno é o secularismo. Pouco lhe cabe saber quem faz parte da Igreja, mas o
que falta.
Esta Igreja
já existe nas Cáritas, nas escolas católicas, no ensino religioso, nas
ordens religiosas. Só é preciso tornar a espiritualidade frutífera para os
problemas do mundo; e parar ativamente para fortalecer e avaliar a própria
liderança. Portanto, é inútil lamentar a falta de aceitação, o que sabe a
glorificação do absolutismo, do sistema de governo patriarcal. O que interessa é
ter uma gestão profissional e eficaz, com vista à reta formação na fé.
***
A 21 de julho,
a Santa Sé interveio no Caminho Sinodal
com uma declaração no sentido de que, “para proteger a liberdade do Povo de
Deus e o ministério episcopal, parece necessário especificar que o Caminho sinodal na Alemanha não tem
poder para obrigar bispos e fiéis a assumirem novas formas de governo e novas
abordagens de doutrina e moral e “não seria lícito iniciar nas dioceses, antes
de um acordo no âmbito de toda a Igreja, novas estruturas oficiais ou
doutrinas, que seriam uma ferida à comunhão eclesial e uma ameaça à unidade da
Igreja”.
A declaração
continua citando palavras do Papa na Carta ao Povo de Deus que está a caminho
na Alemanha: “A Igreja universal vive nas e das Igrejas particulares, assim
como as Igrejas particulares vivem e florescem na e da Igreja universal; e, se
se encontram separadas de todo o corpo eclesial, enfraquecem-se, apodrecem e
morrem. Daí a necessidade de manter sempre viva e eficaz a comunhão com todo o
corpo da Igreja”. Por isso, a Santa Sé espera “que as propostas do Caminho das
Igrejas particulares na Alemanha confluam no caminho sinodal que a Igreja
inteira está a percorrer, para um enriquecimento recíproco e um testemunho
daquela unidade com a qual o corpo da Igreja manifesta sua fidelidade a Cristo
Senhor”.
***
No
mesmo dia em que a Sala de Imprensa vaticana emitiu a sua nota, não assinada, os
presidentes do Caminho Sinodal – Dr.
Irme Stetter-Karp, presidente do Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e o
bispo Georg Bätzing, bispo de Limburg e presidente da Conferência Episcopal
Alemã – responderam à Santa Sé com uma declaração.
Mostram-se
satisfeitos por a Santa Sé reiterar os compromissos assumidos nos Estatutos e no
Regulamento interno antes do início do Caminho
Sinodal 2019, instrumentos onde fica evidente que qualquer resolução da
Assembleia sinodal “não terá, por si mesma, efeito legal”, razão por que o
poder da Conferência Episcopal e de cada bispo de adotar normas jurídicas e
exercer o seu magistério no quadro das suas competências respetivas “não será
afetado por aquelas resoluções”. Esclarecem que as resoluções cuja matéria
dependa de regulamentação eclesiástica universal serão transmitidas à Santa Sé,
acompanhadas com a votação que for registada no sínodo, como previsto e
acordado com a Santa Sé. E prosseguem, vincando que é seu dever expor
claramente as mudanças que julgam necessárias e que os problemas e questões que
enumeram são semelhantes em todo o mundo e prometendo não se cansarem de sublinhar
que a Igreja na Alemanha não seguirá um caminho especial alemão.
A
Igreja alemã afirma aceitar e desejar o “enriquecimento mútuo” que advém da
comunicação entre as Igrejas locais e a Igreja Universal – aspeto enfatizado
pela declaração de Roma – e que pretende ampliar o diálogo com a Cúria romana.
Mas anota que o Caminho Sinodal
resultou do estudo sobre o “abuso sexual de menores por sacerdotes, diáconos e
religiosos na área da responsabilidade da Conferência Episcopal Alemã” e que os
bispos e ZdK estão a percorrer juntos este caminho, “seguros do apoio e
cooperação ativa do povo de Deus peregrino”.
Manifesta
a determinação de contribuir para o processo sinodal da Igreja universal,
aberto pelo Papa: “Sempre insistimos que queremos ativamente dar corpo a este
processo através do nosso trabalho”. E, reiterando a importância da
“comunicação direta com as autoridades romanas”, manifesta “irritação” por essa
comunicação direta não ter acontecido até agora, pois esse seria “o lugar
adequado para realizar os esclarecimentos necessários”.
Lamenta
que a presidência sinodal não tenha sido convidada para uma discussão, pois, em
seu entender, “uma igreja sinodal é algo diferente”. E, numa clara alusão ao
facto de a posição do Vaticano ter assumido a forma de um comunicado de imprensa,
vinca: “Isto também se aplica à forma de comunicação atual, que nos espanta.
Quando se publicam declarações que não são assinadas, não se mostra um bom
estilo de comunicação no interior da Igreja.”
***
Já a 16 de abril deste ano, o presidente
da Conferência Episcopal Alemã, declarou que o Caminho Sinodal do país não levará ao cisma, como sustentam os
críticos (mais de 80 bispos), defendendo o processo como resposta aos abusos
na Igreja. É a tentativa da Igreja na Alemanha de confrontar as causas
sistémicas do abuso e do encobrimento que causaram sofrimento incalculável a
tantas pessoas na e pela Igreja. O Caminho Sinodal
reúne leigos alemães e bispos católicos para discutir quatro grandes temas:
como é exercido o poder na Igreja; moralidade sexual; sacerdócio; e papel das mulheres.
No início, os bispos alemães disseram que as deliberações seriam vinculativas
para a Igreja alemã, levando a intervenção do Vaticano, que
rejeitou tais alegações.
Em votações
preliminares e provisórias, na sessão de fevereiro passado, a proposta da
bênção de casais do mesmo sexo obteve 161 votos a favor e 34 contra; a
reavaliação da doutrina sobre a homossexualidade mereceu 174 votos contra 22 e
a ordenação presbiteral das mulheres foi apoiada por 174 delegados, tendo 30
votado contra. Isto fez soar as campainhas em vários setores, julgando que, a
concretizarem-se tais decisões, se estaria a desenhar um cenário de cisma.
O bispo Bätzing respondeu
às preocupações do arcebispo Áquila de que os abusos
na Igreja dificultaram o seu testemunho e esclareceu que o Caminho Sinodal é “a nossa tentativa de tornar possível novamente
uma proclamação credível da Boa Nova”.
A recente carta aberta dos bispos e
teólogos aludiu à carta de preocupação do arcebispo Áquila, de
maio de 2021, sobre o Caminho Sinodal,
em que observou que a assembleia sinodal alemã está certa em expressar angústia
por escândalos e encobrimentos de abuso sexual do clero, que geraram “uma
verdadeira crise de credibilidade para a Igreja”. Porém, deve haver
consequências do escândalo de abuso para as estruturas da Igreja, segundo Bätzing, que vê na
carta aberta embelezamentos eufemísticos que não ajudam e acusações
surpreendentes, sem justificação consistente, pois os temores sobre o Caminho Sinodal da Igreja
Católica na Alemanha “não são corretos”. Este caminho de forma
nenhuma mina a autoridade da Igreja, incluindo a do Papa.
Bätzing diz que pôde “falar várias vezes com
o Santo Padre sobre o caminho sinodal” e que o Papa, na carta ao povo de Deus
peregrino na Alemanha, de junho de 2019, pediu que a
Igreja na Alemanha percorresse o caminho como uma busca de uma resposta
corajosa à situação atual e como um caminho espiritual, pedindo a orientação
do Espírito Santo”.
Ora, como não há aprovação definitiva sobre o
poder na Igreja, o ministério presbiteral, o papel da mulher e a vida afetiva e
sexual (áreas problemáticas do Sínodo alemão) a declaração da Santa Sé é tida
como aviso, medida cautelar ou travão, o que parece precipitado e contrário à
abertura de Francisco.
2022.07.27 – Louro de Carvalho
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