O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) vai
propor, no próximo plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM), “a
criação de um grupo de trabalho para alterar o Estatuto dos Magistrados
Judiciais”, de modo que se “proíba o regresso à magistratura de juízes que
ocupem cargos no governo”. É o corolário de dois discursos solenes, em que o
conselheiro Henrique Araújo, que é, por inerência, presidente do CSM, sustentou
que os juízes que optam por uma carreira política devem ser impedidos de
regressar aos tribunais.
A proposta, a discutir no plenário, tenderá à adoção
de “regras que impeçam o regresso à magistratura judicial de juízes que tenham
exercido funções governativas”, a fim de se garantir o exercício do “direito de
cada cidadão de recorrer a um tribunal independente e imparcial”.
Todavia, ainda não se definiu o conceito de funções
governativas, o que o predito grupo de trabalho terá de fazer. Em princípio, o
conceito inclui ministros, secretários de Estado e membros dos gabinetes
ministeriais (estes últimos não são governantes). E porque não os deputados?
Atualmente, o governo tem dois juízes nestas condições:
Fernando Tainhas, adjunto do chefe de gabinete da ministra da Justiça, e Vítor
Sousa, chefe de gabinete do ministro da Administração Interna. E há um terceiro
magistrado no governo, Jorge Costa, secretário de Estado da Justiça, que é procurador
da República, estando fora da alçada do CSM. Com efeito, o presidente do STJ
refere que a proposta apenas diz respeito aos juízes, pois, em relação aos
procuradores, terá de ser o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) a
decidir. E o conselheiro justifica-se com o facto de a carreira dos juízes ser
diferente da dos procuradores: os juízes são independentes, ao passo que os
procuradores dependem de “uma estrutura hierarquizada”.
Esta proposta, para se concretizar, tem de ser
aprovada pelo plenário do CSM do dia 5 de julho. O plenário do CSM é de 17
elementos. Se a proposta for chumbada, fica tudo como dantes; e, se for
aprovada, a alteração do estatuto terá de passar pelo crivo do Parlamento e o
resultado positivo depende da vontade legislativa que haja sobre a matéria. Araújo
é que não podia ficar parado.
É a primeira vez que uma proposta deste jaez chega ao
CSM. Tanto na abertura do ano judicial como duas semanas depois, numa
conferência da Associação Europeia de Juízes, Henrique Araújo defendeu o fim
“das portas giratórias” entre a justiça e a política. O juiz-conselheiro, que é
presidente do STJ desde maio de 2021, fez desta questão uma das prioridades do
seu mandato, alegadamente “porque a alternância entre a justiça e a política
cria uma ideia de potencial falta de imparcialidade quando há conflitos de
interesses”. E, rejeitando a crítica de estar a pôr um ferrete a quem aceita um
convite para ocupar uma função governativa, argumenta: “Quem vem para o cargo
de juiz tem de aceitar uma limitação dos seus deveres cívicos. Esta é mais uma
limitação – agora, os juízes não podem concorrer a eleições ou pertencer a
partidos –, mas é fundamental. Temos de nos preocupar com o sistema judicial e
não com os nossos interesses pessoais.” Segundo o conselheiro, “o fim das
portas giratórias trará mais independência à justiça”.
Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos
Juízes Portugueses (ASJP), não rejeita “essa possibilidade”, mas preconiza “soluções
intermédias, como um período de nojo de cinco ou mais anos depois de deixar o governo
para poder regressar à magistratura” ou “a obrigatoriedade de uma licença sem vencimento
para poder ir para o governo”.
Atualmente, um magistrado que desempenhe um cargo no governo
pode voltar aos tribunais logo que o mandato termine. Foi o caso da ministra da
Justiça, Francisca Van Dunem, que se jubilou imediatamente como conselheira do
Supremo, o de Mário Morgado, que foi secretário de Estado e é também
conselheiro, e o de Antero Luís, que saiu da Secretaria de Estado da
Administração Interna e está agora na Relação de Lisboa.
Para Manuel Soares, “o problema coloca-se com o
exercício de cargos de confiança política e de vinculação ao programa político,
como é o caso de ministro ou secretário de Estado”. Nos casos dos juízes chefes
de gabinete ou adjuntos, “são cargos subalternos e não faz qualquer sentido que
sejam ocupados por juízes”. E se o forem (não decidem), não podem voltar ao
tribunal?
Em relação aos procuradores, a questão nunca foi
discutida no CSMP. O advogado Rui da Silva Leal, membro do plenário, defende
solução semelhante: “Apesar de serem carreiras diferentes, os procuradores
também tomam decisões. Se acusam ou não, por exemplo. E, na política, criam-se
laços que podem ser prejudiciais para a imagem de credibilidade da justiça.”
Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, não tem dúvidas:
acha que tal limitação se deve aplicar aos magistrados do MP, porque são uma
magistratura que tem, constitucionalmente, uma independência semelhante à dos
juízes, pelo que se deve evitar esta transição de cargos políticos para o MP. E
Fernando Negrão, ex-juiz e deputado do PSD, que já foi ministro em dois
governos diferentes, no dia em que aceitou o convite para deputado, decidiu
“que não voltaria à magistratura”. E concorda com a proposta de Araújo:
“Política e justiça são dois compartimentos estanques e é mau para os dois
lados andar a rodar”.
Um dos magistrados, sob anonimato, declarou estar a
incentivar-se “uma política de fechar os magistrados numa redoma” e o que se
deve fazer é o contrário, pois “quem só sabe de Direito, nem de Direito sabe”.
***
É inexata a separação entre política e justiça. Os tribunais, segundo o
ordenamento constitucional, figuram entre os órgãos do poder político “com
competência para administrar a justiça em nome do povo” (Constituição da
República Portuguesa / CRP, art.º 202.º/1.); e os tribunais é que são
independentes e apenas estão sujeitos à lei (cf CRP, art.º 203.º), ao passo que
os juízes são “inamovíveis” e não podem ser responsabilizados pelas suas
decisões” (cf CRP, art.º 216.º).
Quanto o Ministério Público (MP), a CRP atribui-lhe “autonomia” e os seus
magistrados são “responsáveis, hierarquicamente subordinados” (cf CRP, art.º
219.º).
A fronteira entre autonomia e independência é diáfana. A uns e a outros o
governo pode faltar com a suficiência de meios e há muita forma de influenciar.
Os juízes não estão hierarquicamente subordinados, mas são passíveis de procedimento
disciplinar e as suas decisões são passíveis de recurso para instâncias
superiores, que podem anulá-las, modificá-las ou mandar repetir julgamentos. Os
procuradores estão hierarquicamente subordinados, o que os limita, mas não
recebem ordens ou instruções do governo, mas da Procuradoria-Geral da República.
Limitar os direitos dos magistrados em nada contribui para a independência da
justiça ou para a autonomia da ação penal. Aliás, não há carreira de governante
(ministro ou secretário de Estado), como não há carreira de deputado. São situações
transitórias. O mesmo se diga dos membros dos gabinetes de membros do governo,
que nem governantes são. Por outro lado, por vezes, pode ser útil levar para a
política stricto sensu pessoas da área
jurídica e da área magistral, aliás como de outros campos da atividade pública,
cooperativa ou particular. A haver coerência, a proposta do presidente do STJ
deveria ser secundada pela Ordem dos Advogados em relação aos seus associados,
que também são operadores da justiça. Limitar o exercício de direitos cívicos e
políticos deve ser proposto e feito com muita cautela, para não criar injustiça
maior. Até parece que a obsessão pela exclusividade sucessiva, ao invés da
exclusividade sincrónica, sabe a puritanismo ou a perseguição. Obviamente que
os juízes e procuradores, quando em exercício, devem ser obrigados à exclusividade,
mas sabemos que andam por outras paragens, como o futebol. E os membros do
governo e o Presidente da República, quando em exercício, devem estar em regime
de dedicação exclusiva. Já os deputados, uns (os que fazem carreira partidária)
deverão estar em regime de exclusividade e outros em regime de não
exclusividade, para podermos ter, no debate político, o contributo de crânios que
não prescindem das suas atividades profissionais.
O resto pode ser hipocrisia e disfarce da incompetência de controlar as portas
giratórias entre a política stricto sensu
e as outras atividades profissionais. Veja-se o que se passa com tantos membros
dos executivos do poder local: não podem participar na discussão e votação de
temas que digam respeito a si próprios e a familiares mais próximos, mas podem,
por conversação persuasiva, influenciar os que os subsituem nas reuniões
agendadas para o efeito.
Por isso, mais prudente e equilibrado será o recurso a um período
temporário de luto entre o exercício de funções governativas e de deputado e/ou
à exigência de pedido de licença sem vencimento durante os exercício de funções
políticas stricto sensu. Com efeito,
os militares no ativo também têm o mesmo impedimento, mas, se não podem passar
à situação de reserva (e, a seguir, a de reforma), podem recorrer ao pedido de
licença registada.
2022.07.02 – Louro de Carvalho
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