sábado, 2 de julho de 2022

Fechar as “portas giratórias” entre política e justiça

 

 

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) vai propor, no próximo plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM), “a criação de um grupo de trabalho para alterar o Estatuto dos Magistrados Judiciais”, de modo que se “proíba o regresso à magistratura de juízes que ocupem cargos no governo”. É o corolário de dois discursos solenes, em que o conselheiro Henrique Araújo, que é, por inerência, presidente do CSM, sustentou que os juí­zes que optam por uma carreira política devem ser impedidos de regressar aos tribunais.

A proposta, a discutir no plenário, tenderá à adoção de “regras que impeçam o regresso à magistratura judicial de juízes que tenham exercido funções governativas”, a fim de se garantir o exercício do “direito de cada cidadão de recorrer a um tribunal independente e imparcial”.

Todavia, ainda não se definiu o conceito de funções governativas, o que o predito grupo de trabalho terá de fazer. Em princípio, o conceito inclui ministros, secretários de Estado e membros dos gabinetes ministeriais (estes últimos não são governantes). E porque não os deputados?

Atualmente, o governo tem dois juízes nestas condições: Fernando Tainhas, adjunto do chefe de gabinete da ministra da Justiça, e Vítor Sousa, chefe de gabinete do ministro da Administração Interna. E há um terceiro magistrado no governo, Jorge Costa, secretário de Estado da Justiça, que é procurador da República, estando fora da alçada do CSM. Com efeito, o presidente do STJ refere que a proposta apenas diz respeito aos juízes, pois, em relação aos procuradores, terá de ser o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) a decidir. E o conselheiro justifica-se com o facto de a carreira dos juízes ser diferente da dos procuradores: os juízes são independentes, ao passo que os procuradores dependem de “uma estrutura hierarquizada”.

Esta proposta, para se concretizar, tem de ser aprovada pelo plenário do CSM do dia 5 de julho. O plenário do CSM é de 17 elementos. Se a proposta for chumbada, fica tudo como dantes; e, se for aprovada, a alteração do estatuto terá de passar pelo crivo do Parlamento e o resultado positivo depende da vontade legislativa que haja sobre a matéria. Araújo é que não podia ficar parado.

É a primeira vez que uma proposta deste jaez chega ao CSM. Tanto na abertura do ano judicial como duas semanas depois, numa conferência da Associação Europeia de Juízes, Henrique Araújo defendeu o fim “das portas giratórias” entre a justiça e a política. O juiz-conselheiro, que é presidente do STJ desde maio de 2021, fez desta questão uma das prioridades do seu mandato, alegadamente “porque a alternância entre a justiça e a política cria uma ideia de potencial falta de imparcialidade quando há conflitos de interesses”. E, rejeitando a crítica de estar a pôr um ferrete a quem aceita um convite para ocupar uma função governativa, argumenta: “Quem vem para o cargo de juiz tem de aceitar uma limitação dos seus deveres cívicos. Esta é mais uma limitação – agora, os juízes não podem concorrer a eleições ou pertencer a partidos –, mas é fundamental. Temos de nos preocupar com o sistema judicial e não com os nossos interesses pessoais.” Segundo o conselheiro, “o fim das portas giratórias trará mais independência à justiça”.

Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), não rejeita “essa possibilidade”, mas preconiza “soluções intermédias, como um período de nojo de cinco ou mais anos depois de deixar o governo para poder regressar à magistratura” ou “a obrigatoriedade de uma licença sem vencimento para poder ir para o governo”.

Atualmente, um magistrado que desempenhe um cargo no governo pode voltar aos tribunais logo que o mandato termine. Foi o caso da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que se jubilou imediatamente como conselheira do Supremo, o de Mário Morgado, que foi secretário de Estado e é também conselheiro, e o de Antero Luís, que saiu da Secretaria de Estado da Administração Interna e está agora na Relação de Lisboa.

Para Manuel Soares, “o problema coloca-se com o exercício de cargos de confiança política e de vinculação ao programa político, como é o caso de ministro ou secretário de Estado”. Nos casos dos juízes chefes de gabinete ou adjuntos, “são cargos subalternos e não faz qualquer sentido que sejam ocupados por juízes”. E se o forem (não decidem), não podem voltar ao tribunal?  

Em relação aos procuradores, a questão nunca foi discutida no CSMP. O advogado Rui da Silva Leal, membro do plenário, defende solução semelhante: “Apesar de serem carreiras diferentes, os procuradores também tomam decisões. Se acusam ou não, por exemplo. E, na política, ­criam-se laços que podem ser prejudiciais para a imagem de credibilidade da justiça.” Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, não tem dúvidas: acha que tal limitação se deve aplicar aos magistrados do MP, porque são uma magistratura que tem, constitucionalmente, uma independência semelhante à dos juízes, pelo que se deve evitar esta transição de cargos políticos para o MP. E Fernando Negrão, ex-juiz e deputado do PSD, que já foi ministro em dois governos diferentes, no dia em que aceitou o convite para deputado, decidiu “que não voltaria à magistratura”. E concorda com a proposta de Araújo: “Política e justiça são dois compartimentos estanques e é mau para os dois lados andar a rodar”.

Um dos magistrados, sob anonimato, declarou estar a incentivar-se “uma política de fechar os magistrados numa redoma” e o que se deve fazer é o contrário, pois “quem só sabe de Direito, nem de Direito sabe”.

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É inexata a separação entre política e justiça. Os tribunais, segundo o ordenamento constitucional, figuram entre os órgãos do poder político “com competência para administrar a justiça em nome do povo” (Constituição da República Portuguesa / CRP, art.º 202.º/1.); e os tribunais é que são independentes e apenas estão sujeitos à lei (cf CRP, art.º 203.º), ao passo que os juízes são “inamovíveis” e não podem ser responsabilizados pelas suas decisões” (cf CRP, art.º 216.º).

Quanto o Ministério Público (MP), a CRP atribui-lhe “autonomia” e os seus magistrados são “responsáveis, hierarquicamente subordinados” (cf CRP, art.º 219.º).

A fronteira entre autonomia e independência é diáfana. A uns e a outros o governo pode faltar com a suficiência de meios e há muita forma de influenciar. Os juízes não estão hierarquicamente subordinados, mas são passíveis de procedimento disciplinar e as suas decisões são passíveis de recurso para instâncias superiores, que podem anulá-las, modificá-las ou mandar repetir julgamentos. Os procuradores estão hierarquicamente subordinados, o que os limita, mas não recebem ordens ou instruções do governo, mas da Procuradoria-Geral da República.  

Limitar os direitos dos magistrados em nada contribui para a independência da justiça ou para a autonomia da ação penal. Aliás, não há carreira de governante (ministro ou secretário de Estado), como não há carreira de deputado. São situações transitórias. O mesmo se diga dos membros dos gabinetes de membros do governo, que nem governantes são. Por outro lado, por vezes, pode ser útil levar para a política stricto sensu pessoas da área jurídica e da área magistral, aliás como de outros campos da atividade pública, cooperativa ou particular. A haver coerência, a proposta do presidente do STJ deveria ser secundada pela Ordem dos Advogados em relação aos seus associados, que também são operadores da justiça. Limitar o exercício de direitos cívicos e políticos deve ser proposto e feito com muita cautela, para não criar injustiça maior. Até parece que a obsessão pela exclusividade sucessiva, ao invés da exclusividade sincrónica, sabe a puritanismo ou a perseguição. Obviamente que os juízes e procuradores, quando em exercício, devem ser obrigados à exclusividade, mas sabemos que andam por outras paragens, como o futebol. E os membros do governo e o Presidente da República, quando em exercício, devem estar em regime de dedicação exclusiva. Já os deputados, uns (os que fazem carreira partidária) deverão estar em regime de exclusividade e outros em regime de não exclusividade, para podermos ter, no debate político, o contributo de crânios que não prescindem das suas atividades profissionais.

O resto pode ser hipocrisia e disfarce da incompetência de controlar as portas giratórias entre a política stricto sensu e as outras atividades profissionais. Veja-se o que se passa com tantos membros dos executivos do poder local: não podem participar na discussão e votação de temas que digam respeito a si próprios e a familiares mais próximos, mas podem, por conversação persuasiva, influenciar os que os subsituem nas reuniões agendadas para o efeito.

Por isso, mais prudente e equilibrado será o recurso a um período temporário de luto entre o exercício de funções governativas e de deputado e/ou à exigência de pedido de licença sem vencimento durante os exercício de funções políticas stricto sensu. Com efeito, os militares no ativo também têm o mesmo impedimento, mas, se não podem passar à situação de reserva (e, a seguir, a de reforma), podem recorrer ao pedido de licença registada.

2022.07.02 – Louro de Carvalho    

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