As primeiras
descrições linguísticas conhecidas constam das obras de gramáticos hindus, no I
milénio a.C. Na Índia antiga, o Sânscrito
(significa ‘perfeito’) era tido como uma língua mágica e sagrada, pelo que não
podia sofrer alteração de pronúncia ao ser usado nos rituais religiosos. É,
pois, em consequência da preocupação religiosa que surgiram as descrições desta
língua.
O mais
conhecido dos gramáticos hindus é Panini, do século V ou IV a.C. A descrição
dos sons, a representação das sílabas por diferentes carateres conforme as suas
consoantes e as suas vogais, as regras ou definições com que explica os nomes
compostos e a construção das frases mostram aprofundado conhecimento do
funcionamento do Sânscrito. E a
preocupação com a pureza da língua (ou seja, com o temor dos efeitos da mudança
linguística) é retomada ao longo dos séculos e persiste nas gramáticas
normativas, como, por exemplo, as gramáticas escolares.
O estudo das
línguas feito pelos gregos orienta-se em dois sentidos. De um lado, a curiosidade
e o interesse sobre a origem da linguagem, da mudança e da diversidade
linguística azam reflexões filosóficas como em Platão (428-348 a.C.) e em
Aristóteles (384-322 a.C.), cujo ponto crucial se situa na discussão entre a
defesa, de Platão no Crátilo, de que as palavras refletem,
por natureza, a realidade que nomeiam, e a convicção aristotélica de que é
convencional o seu significado, pelo facto de resultar de acordo entre os
homens. Do outro lado, os autores visam um conhecimento mais aprofundado do
funcionamento da sua língua.
A análise do
Grego em todos os níveis induz o aperfeiçoamento do alfabeto e a elaboração de
gramáticas (de grámma, atos: letra). A autoria da primeira, que
distingue oito partes do discurso (ou partes da oração: as categorias sintáticas, como verbo, adjetivo, advérbio,
etc., também designadas por classes gramaticais) – artigo,
nome, pronome, verbo, particípio, advérbio, preposição e conjunção – é
atribuída a Dionísio de Trácia (170-90 a.C.). A análise sintática do Grego é
desenvolvida na obra de Apolónio Díscolo (século II d.C.) que, na senda de
Aristóteles, sustenta que a estrutura da frase assenta em dois elementos
fundamentais: o sujeito e o predicado.
As obras dos gregos
e a sua doutrina gramatical tiveram repercussão sobretudo no oriente grego,
chegando tardiamente ao ocidente da Europa, através dos latinos. No dizer de
Mouton, “se Roma merece um capítulo numa história da linguística, é bem menos
por ter produzido do que por haver transmitido”, pois, apesar de as obras dos
gramáticos latinos serem mais demoradamente descritas na
história da linguística do que as dos gregos, o seu mérito é o de nos terem
dado a conhecer as reflexões gramaticais e filosóficas dos antecessores, na
linha de outros ensinamentos que Roma hauriu da Grécia vencida. Os gramáticos
latinos mantiveram-se como modelo em toda a Idade Média (a gramática integrava
o trivium, com a retórica e a lógica). Nos
países nórdicos e anglo-saxónicos, as gramáticas latinas foram as primeiras a
ser elaboradas para o ensino de uma língua estrangeira, cumprindo o Latim,
deste modo, durante séculos, a função de língua franca. Nos países de matriz
românica, o estudo das línguas vernáculas – como o das várias línguas faladas
na Europa Ocidental – era feito, até meados do século XVI, a partir de
gramáticas escritas em Latim e que seguiam o modelo das latinas. A partir de então,
a alfabetização recebeu notável impulso, que prosseguiu com a difusão dos
textos escritos, em que se incluíam as gramáticas.
Em Portugal,
onde já se falava Português há séculos, a Gramática da Linguagem
Portuguesa,
de Fernão de Oliveira (1536), e a Gramática da Língua
Portuguesa (1540), de João de Barros, são as primeiras gramáticas do
Português escritas em Português e, além de serem obras escritas em vernáculo, fornecem
informações sobre a construção das palavras e das frases. Mas a área do estudo
das línguas que conheceu maior desenvolvimento no e a partir do século XVI foi
a fonética, pela importância que se deu à língua falada.
Com o Renascimento desenvolveu-se,
de forma sistemática, o estudo das línguas particulares. Afastando-se da
tradicional atenção a aspetos gerais que ultrapassavam as línguas individuais
(por exemplo, as definições de sujeito e de predicado como partes indispensáveis
da oração), os gramáticos começaram a examinar as caraterísticas que
distinguiam as línguas entre si. É no final da Idade Média
e no início do Renascimento que se incrementa o ensino da leitura e da escrita
em vernáculo. Na primeira metade do século XVI, surgem as Cartinhas ou Cartilhas, para aprender
a ler. E, a partir do século XVI, publicam-se várias Ortografias, de que se destaca a Ortografia da Língua Portuguesa, de Duarte Nunes de Leão (1576).
Entre os
séculos XVI e XVIII, o ensino das línguas vernáculas ocupou um espaço cada vez
mais amplo. Em Portugal, par das gramáticas, das cartinhas e das ortografias,
surgiram dicionários e vocabulários. Também, no século XVIII, com o apoio do
Marquês de Pombal, floresceu e impôs-se a importância da aprendizagem do
Português nas escolas básicas. Luís António Verney inicia o Verdadeiro
Método de Estudar para ser Útil à República e à Igreja, Proporcionado ao Estilo
e Necessidade de Portugal (1746) pela afirmação de que é preciso aprender
a gramática da língua materna como base e porta para outros estudos. E, a par
desta perspetiva do ensino e do estudo da língua, os séculos XVII e XVIII foram
pródigos em reflexões filosóficas sobre a linguagem humana e as caraterísticas
universais das línguas. Em Portugal, a obra mais notável e conhecida neste campo
é a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, de Jerónimo
soares Barbosa.
***
Nascida no I
milénio antes de Cristo (séculos V a IV a.C.) com as descrições de gramáticos
hindus e concebida na Grécia Clássica e no período alexandrino como “arte de
ler e escrever”, a grammatikê (do
feminino do adjetivo da 1.ª classe grammatikós, ê,
ón: subentendia-se o nome téknê,
arte) passou por fases distintas, acompanhando a história das ideias na Europa
e no mundo.
Assim, as
gramáticas (o termo não é unívoco) foram normativas durante largos séculos,
umas abertas às línguas vernáculas e à sua variação, outras prescritivas (são
exemplo destas atitudes os gramáticos portugueses mais representativos do
século XVI, Fernão de Oliveira e João de Barros); foram gerais e racionais nos
séculos XVII e XVIII, na tentativa pioneira de relacionar linguagem e
pensamento; foram comparadas e históricas no século XIX e no início do século
XX, tempos dominados pela ideia de história e de evolução (por exemplo, com
Adolfo Coelho, José Joaquim Nunes, Said Ali, Joseph Huber, Edwin Williams,
Rodrigo de Sá Nogueira, entre outros). Na sequência do Estruturalismo Europeu e
do Distribucionalismo Norte-Americano, assumem pendor descritivo e tornam-se sincrónicas
(por exemplo, com Celso Cunha e Lindley Cintra, Evanildo Bechara, Pilar Cuesta
e Albertina Mendes da Luz, Helena Neves, entre outras).
Outros
trabalhos produzidos em Portugal e no Brasil situam-se entre a monografia e a
gramática histórica (com Clarinda Maia e Rosa Virgínia Mattos e Silva). A
partir dos anos 60, com a Gramática Generativa e com Noam Chomsky, a gramática
adquire duplo significado: o de sinónimo de conhecimento linguístico dos
sujeitos falantes; e o de descrição desse conhecimento por parte dos
linguistas, tomando a gramática uma dimensão cognitiva, hoje consensualmente
aceite em Linguística. A atitude descritiva e explicativa, no quadro de teorias
formais, acentua-se e a gramática adquire um estatuto que pretensamente científico,
confundindo-se, às vezes, com muita da investigação em Linguística.
***
Para
Dionísio de Trácia, já referido, integravam a gramática a leitura, o que atualmente
chamamos estilística, o estudo das fraseologias, a etimologia, a investigação
das regularidades morfológicas e sintáticas e a apreciação das composições
literárias. Fixava-se o Grego de Homero, sendo evidente o pendor pedagógico e
normativo. A tradição clássica, ora iniciada, privilegia cada vez mais a
escrita; a morfologia, a morfossintaxe e a sintaxe tornam-se as partes centrais
da gramática. Para lá destas áreas, as gramáticas descritivas da segunda metade
do Século XX comportam capítulos de fonética e de fonologia, dando pouca
atenção à semântica; às vezes, comportam capítulos de ortografia e versificação;
mais tarde revelaram atenção ao texto, ao discurso e à variação,
constituindo-se como tentativas de descrição da norma padrão (gramática
funcional). Quer dizer, as gramáticas do século XX sofrem a influência do
avanço da Linguística e vão sendo cada vez mais descritivas e abrangentes. Em
1972, Chomsky e Lasnik, propuseram um modelo de gramática que foi adotado por
muitos linguistas, tendo como ponto de partida o léxico. Ou seja, o léxico,
constituído pelos itens da língua, fornece à sintaxe o input para as regras de combinação, concebendo-se a sintaxe como a
componente central da gramática, como o sistema computacional que permite gerar
construções bem formadas. Neste modelo, a fonologia e a semântica são as outras
componentes da gramática com um papel interpretativo das estruturas geradas
pela sintaxe: léxico / sintaxe / fonologia / semântica – gramática formal.
Porém,
a centralidade da sintaxe não pode implicar a sua autonomia, já que a sintaxe
depende do significado dos itens lexicais e há interfaces fortes entre a
sintaxe e a fonologia e entre a sintaxe e a semântica. Por isso, a sintaxe é
concebida por muitos como a componente que estuda as condições de combinação de
palavras e as condições formais da significação. Além disso, o papel do léxico
e a relação com a sintaxe podem ser perspetivados de vários modos. Com efeito,
as línguas têm léxicos de natureza distinta, com peso diferenciado dos
processos morfológicos. Saussure dividia as línguas em línguas lexicológicas e gramaticais. As primeiras correspondem às analíticas, em que as oposições distintivas em certas categorias,
como o número e o género, são expressas por palavras completamente distintas (é
o caso do Chinês e do Vietnamita). Nelas, o léxico é rico e numeroso, com pouco
lugar para os processos morfológicos. As gramaticais,
correspondentes às sintéticas, têm
vários subtipos morfológicos: as aglutinantes
(Turco), as flexionais ou fusionais (Latim, Português, Alemão), as
incorporantes (línguas Bantu), as infixantes (Árabe). Contudo, hoje sabe-se
que as línguas são, em geral, mistas, ou seja, embora mantenham a matriz
originária, partilham das caraterísticas das línguas analíticas e das
sintéticas.
Alguns
questionam a própria existência do léxico e colocam a formação de palavras na sintaxe.
Todavia, há inúmeras idiossincrasias lexicais que dificilmente serão captadas
pelas regras gerais da sintaxe, pelo que o léxico tem de ocupar um espaço considerável
na organização da gramática.
Igualmente
a relação entre o uso da língua – a pragmática
– e a gramática é tema de interessantes debates. De facto, a linguagem é usada
para pensar, comunicar e argumentar, mas a investigação linguística mostra que
a comunicação e o uso explicam muito pouco a forma das línguas humanas, uma vez
que esses grandes objetivos são comuns às línguas naturais e estas apresentam
entre si diferenças notáveis. Tanya Reinhart, entre outros linguistas, explorou
esta problemática em várias publicações e a sua proposta é a de que há
estratégias de interface que associam a gramática, concebida como um sistema
computacional (gramática formal), ao uso e aos sistemas cognitivos envolvidos
na linguagem, que são, na sua concepção, os sistemas de conceitos, os
mecanismos de inferência, o contexto e os sistemas sensoriomotores. Assim, a
gramática será o cerne da descrição linguística, havendo que colocar, de forma
adequada, a questão das interfaces entre as suas componentes e a relação da
gramática com a pragmática e com as condições de uso da língua.
Contudo,
no ensino básico e no secundário, em que a aula de língua materna tem objetivos
pedagógicos, há que articular a reflexão gramatical com a aprendizagem da
escrita e da leitura. E, devendo essa aula de língua estar aberta a todos os
níveis de funcionamento e uso da língua, a noção de gramática que aí importa
adotar deve ser abrangente, indo do som à palavra, da palavra à frase e da
frase ao texto, envolvendo os diferentes níveis de análise linguística – o que ajuda
ao desenvolvimento do raciocínio abstrato e se traduz em avanços ao nível das
diferentes competências (ouvir, falar, argumentar, ler, escrever…), favorecendo
a atitude descritiva e tolerante ante a variação e ajudando a adquirir uma
metalinguagem útil nas várias aprendizagens.
2022.07.12 – Louro de Carvalho
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