quinta-feira, 28 de julho de 2022

Ondas de calor marinhas duplicam desde 1980 e lesam a biodiversidade

 

As excecionais ondas de calor que, em resultado das alterações climáticas que envolvem o planeta – mercê do aquecimento global, que provoca a liquefação de icebergues e glaciares e faz subir o nível das águas oceânicas – criam incómodo a todas as pessoas, nomeadamente nas que não dispõem de condições habitacionais e de deslocação climatizadas, dificulta o desempenho dos trabalhadores (a quem podem causar a morte), põe em risco as pessoas mais vulneráveis (doentes, idosos e crianças), torna quase impossível a vida nas cidades (Que o digam os chineses do sudeste e do noroeste!) e nos mais diversos recantos dos países de clima continental e tropical.  

Muitas pessoas se têm visto abraços com as ondas de calor, as quais têm provocado avarias em diversos equipamentos, excesso de utilização do ar condicionado), picos de doença e mortes. Entretanto, a novidade dos últimos dias, como defenderam especialistas à Agência France-Press (AFP), uma onda de calor “excecional” está a afetar os países do Mediterrâneo ocidental com temperaturas à superfície terrestre cinco graus acima da média. Sustentam os peritos que as temperaturas consistentemente mais quentes do que o normal nesta região do globo representam uma poderosa ameaça para todo o ecossistema marinho.

Sobre o percurso desta “enorme onda de calor”, disse a oceanógrafa Karina von Schuckmann que terá começado “em maior no mar da Ligúria” (entre a Córsega e a Itália) e se estendeu até ao mar Jónico (entre o sul de Itália e a Grécia).

Apesar de as temperaturas da água mais quentes serem mais agradáveis, sobretudo no quadro do turismo, os investigadores advertem que “o aquecimento dos oceanos tem impacto em todo o ecossistema”, pelo que importa estarmos cientes das possíveis consequências para a fauna e flora locais e da ocorrência de fenómenos climáticos extremos que podem originar catástrofes naturais.

Von Schuckmann afirmou que as temperaturas invulgarmente quentes podem também causar uma “migração irreversível” de algumas espécies e “mortes em massa” de outras.

Segundo dados da ONU, estas ondas de calor, que têm vindo a aumentar, duplicaram desde 1980.

Um estudo recém-publicado na revista Global Change Biology, que avalia, com abrangência inédita, o fenómeno, conclui que, as ondas de calor marinhas (OCMs) no mar Mediterrâneo, raras até há poucas décadas, têm sido frequentes nos últimos anos, afetando, a cada verão, várias regiões do Mediterrâneo e causando episódios de mortalidade nas comunidades marinhas, como as esponjas (Filo Porifera) e os corais (Anthozoa), pois a sucessão frequente das ondas de calor não permite a recuperação das comunidades destes poríferos (que vivem exclusivamente no ambiente aquático e apresentam o corpo repleto de poros) e destes cnidários (animais diblásticos – possuem dois folhetos germinativos), segundo refere Jean Baptiste Ledoux, ecólogo molecular francês, do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto, que contribuiu para o trabalho liderado por Joaquim Garrabou, investigador do Instituto de Ciências do Mar (Barcelona), e do Conselho Superior de Investigações Científicas de Espanha.

A investigação, que originou o estudo, reuniu trabalho de dezenas de cientistas de 11 países e instituições (de Marrocos à Turquia, passando por França, Itália, Croácia, Arábia Saudita, entre outros), incluindo Portugal, verificou a transformação deste fenómeno extraordinário em norma.      

O objetivo era retratar a gravidade das ondas de calor no Mediterrâneo ao longo do tempo e avaliar os impactos daquele calor na biodiversidade submarina que vive junto ao leito. Para tanto, a equipa avaliou as temperaturas do Mediterrâneo entre 2015 e 2019, especificamente nos meses de junho a novembro, quando a temperatura da água aumenta devido ao calor do verão. E, além das temperaturas de superfície do mar, medidas por satélite, mediu a temperatura até 45 metros de profundidade, em sete locais específicos em regiões costeiras da Espanha e da França.

Assim, obteve um perfil de temperaturas à superfície e em profundidade e avaliou a existência de OCMs, inferindo que estamos ante uma onda de calor marinha (OCM) quando a temperatura da água excede um limite superior de temperatura, matematicamente especificado, durante mais de cinco dias consecutivos.

Daí estabeleceu o número de dias cumulativos de ondas de calor num determinado lugar, a determinada profundidade, em determinado ano. Ao longo dos cinco anos, as ondas de calor afetaram 90% da bacia mediterrânea, atingindo temperaturas superiores a 26 graus Celsius (26ºC).

Por outro lado, monitorizou a saúde das comunidades bentónicas (que vivem junto ao leito marinho), até à profundidade de 45 metros, em 142 lugares ao longo da zona costeira do Mediterrâneo (e de algumas ilhas), nos cinco anos de referência. Só uma parcela das localizações foi monitorizada durante aquele período de tempo, mas a abrangência permitiu obter um retrato profundo da situação no Mediterrâneo.

Os trabalhos feitos no passado sobre o impacto da temperatura do mar nas comunidades marinhas eram limitados a nível do tempo e a da localização. Agora, como explica Ledoux, “em vez de termos uma ideia pontual do que se passa, obtivemos uma ideia geral”. A análise biológica abrangeu o nível das espécies – corais, esponjas, macroalgas, equinodermes e plantas – e o nível das comunidades que vivem em prados marinhos e em ecossistemas coralígenos, compostos por corais, esponjas e algas. Estas comunidades coralígenas constroem um habitat colorido, podendo albergar mais de 1600 espécies. Por isso, o trabalho oferece, no dizer do investigador, “uma perspetiva geral, quer a nível geográfico, quer a nível dos animais e das algas”.

Em cada um dos cinco anos em referência, foram afetados pelas ondas de calor 23 grupos taxonómicos e há grande probabilidade de desaparecerem até uma certa profundidade, pois as ondas de calor estão a causar com frequência fenómenos de mortalidade.

Os resultados não são animadores, uma vez que muitas espécies de corais e de esponjas têm um crescimento anual lento (de milímetros ou de centímetros), pelo que tais espécies, após um evento de mortalidade, necessitam de 10 a 20 anos para recuperar; e, se aqueles fenómenos extremos se repetem em poucos anos, não há tempo. Depois, como afirma Ledoux, “os corais e as esponjas são formadores de habitat” e, “quando existem, há outras espécies que aproveitam o espaço formado para o habitarem”, tal como sucede com as árvores da floresta: “quando estas ‘árvores’ desaparecem, o ecossistema muda”.

Porém, os efeitos nefastos causados por estes episódios de calor não se ficam pela fauna e flora marinhas. Provavelmente esta tendência terá impacto nas comunidades humanas costeiras. Por exemplo, pode ser colocado em causa o mergulho submarino para visitar estes ecossistemas, que promove o turismo de regiões e podem ser afetadas pelas ondas de calor as espécies de importância comercial, como a garoupa-preta (Epinephelus marginatus) e o crustáceo Scyllarides latus, que usam aquele habitat como berçário.

Há, no entanto, um foco de esperança no meio deste panorama cinzento. Alguns indivíduos das espécies de corais e de esponjas parecem mais resistentes ao stresse térmico. Por isso, Ledoux está a estudar a espécie de coral gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata), na demanda de caraterísticas genéticas associadas à resistência ao calor.

Ora, se os cientistas conseguirem identificar estes indivíduos resistentes a altas temperaturas, será possível colonizar artificialmente áreas com corais capazes de sobreviver às futuras ondas de calor, formando comunidades duradouras. Porém, o cientista avisa para os limites desta técnica.

Na verdade, como afirma Ledoux, “os trabalhos de restauração de habitats serão sempre muito localizados” e, à escala do Mediterrâneo, não é possível fazê-la, “quer em termos logísticos, quer por causa dos recursos necessários”. Portanto, a única resposta válida “é trabalhar nas causas das ondas de calor marinhas, as alterações climáticas”, defende Jean Baptiste Ledoux. E esta implica o reconhecimento da necessidade de haver uma “resposta política para haver uma diminuição do que causa as alterações climáticas”, ou seja, a emissão dos gases com efeito de estufa.

E o drama não se fica pelo Mediterrâneo. Pode mesmo estender-se aos grandes oceanos.

Por exemplo, diferentes cenários do Coupled Model Intercomparison Project Phase 6 (CMIP6) acusam tendências significativas na frequência, duração e intensidade acumulada para o Atlântico Sul Sudoeste, confirmando que tais eventos se estão a intensificar efetivamente, pelo que levarão a um estado quase permanente no final do século XXI. Foi também observado que o bloqueio atmosférico, mecanismo principal causador de OCMs na região, possivelmente, se irá intensificar no futuro. Isso permite concluir que o aumento da ocorrência de OCMs não é só resultado direto do aquecimento de longo prazo da temperatura de equilíbrio superficial global, mas também da intensificação do mecanismo gerador.

As maiores tendências foram observadas para o futuro próximo (2021-2050) e não para um futuro distante (de 2071-2100). Por isso, é oportuno o alerta em relação às implicações desses eventos nos ecossistemas marinhos e à habilidade do oceano de absolver calor e dióxido de carbono (CO2), enfatizando a urgência da diminuição global na emissão de gases de efeito de estufa.

Dizia, não há muito, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que ou travamos a tempo as alterações climáticas ou embarcamos num suicídio coletivo, que não queremos.

2022.07.28 – Louro de Carvalho  

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