As
excecionais ondas de calor que, em resultado das alterações climáticas que
envolvem o planeta – mercê do aquecimento global, que provoca a liquefação de
icebergues e glaciares e faz subir o nível das águas oceânicas – criam incómodo
a todas as pessoas, nomeadamente nas que não dispõem de condições habitacionais
e de deslocação climatizadas, dificulta o desempenho dos trabalhadores (a quem
podem causar a morte), põe em risco as pessoas mais vulneráveis (doentes,
idosos e crianças), torna quase impossível a vida nas cidades (Que o digam os
chineses do sudeste e do noroeste!) e nos mais diversos recantos dos países de
clima continental e tropical.
Muitas
pessoas se têm visto abraços com as ondas de calor, as quais têm provocado
avarias em diversos equipamentos, excesso de utilização do ar condicionado), picos
de doença e mortes. Entretanto, a novidade dos últimos dias, como defenderam especialistas
à Agência France-Press (AFP), uma onda de calor “excecional” está a afetar os
países do Mediterrâneo ocidental com temperaturas à superfície terrestre cinco
graus acima da média. Sustentam os peritos que as temperaturas consistentemente
mais quentes do que o normal nesta região do globo representam uma poderosa
ameaça para todo o ecossistema marinho.
Sobre o
percurso desta “enorme onda de calor”,
disse a oceanógrafa Karina von Schuckmann que terá começado “em maior no mar da
Ligúria” (entre a Córsega e a Itália) e se estendeu até ao mar Jónico (entre o
sul de Itália e a Grécia).
Apesar de as
temperaturas da água mais quentes serem mais agradáveis, sobretudo no quadro do
turismo, os investigadores advertem
que “o aquecimento dos oceanos tem impacto em todo o ecossistema”, pelo
que importa estarmos cientes das possíveis consequências para a fauna e flora
locais e da ocorrência de fenómenos climáticos extremos que podem originar
catástrofes naturais.
Von Schuckmann afirmou que as temperaturas invulgarmente quentes podem
também causar uma “migração irreversível” de algumas espécies e “mortes em
massa” de outras.
Segundo
dados da ONU, estas ondas de calor, que têm vindo a aumentar, duplicaram desde
1980.
Um estudo
recém-publicado na revista Global Change Biology, que avalia, com abrangência
inédita, o fenómeno, conclui que, as ondas de calor marinhas (OCMs) no mar Mediterrâneo,
raras até há poucas décadas, têm sido frequentes nos últimos anos, afetando, a
cada verão, várias regiões do Mediterrâneo e causando episódios de mortalidade
nas comunidades marinhas, como as esponjas (Filo
Porifera) e os corais
(Anthozoa), pois a sucessão frequente das ondas de calor não
permite a recuperação das comunidades destes poríferos (que vivem
exclusivamente no ambiente aquático e apresentam o corpo repleto de poros) e destes cnidários (animais diblásticos – possuem dois folhetos germinativos), segundo refere Jean Baptiste Ledoux, ecólogo molecular
francês, do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental
(Ciimar) da Universidade do Porto, que contribuiu para o trabalho liderado por
Joaquim Garrabou, investigador do Instituto de Ciências do Mar (Barcelona), e do
Conselho Superior de Investigações Científicas de Espanha.
A investigação,
que originou o estudo, reuniu trabalho de dezenas de cientistas de 11 países e
instituições (de Marrocos à Turquia, passando por França, Itália, Croácia,
Arábia Saudita, entre outros), incluindo Portugal, verificou a transformação
deste fenómeno extraordinário em norma.
O objetivo
era retratar a gravidade das ondas de calor no Mediterrâneo ao longo do tempo e
avaliar os impactos daquele calor na biodiversidade submarina que vive junto ao
leito. Para tanto, a equipa avaliou as temperaturas do Mediterrâneo entre 2015
e 2019, especificamente nos meses de junho a novembro, quando a temperatura da
água aumenta devido ao calor do verão. E, além das temperaturas de superfície
do mar, medidas por satélite, mediu a temperatura até 45 metros de
profundidade, em sete locais específicos em regiões costeiras da Espanha e da
França.
Assim,
obteve um perfil de temperaturas à superfície e em profundidade e avaliou a
existência de OCMs, inferindo que estamos ante uma onda de calor marinha (OCM) quando
a temperatura da água excede um limite superior de temperatura, matematicamente
especificado, durante mais de cinco dias consecutivos.
Daí estabeleceu
o número de dias cumulativos de ondas de calor num determinado lugar, a determinada
profundidade, em determinado ano. Ao longo dos cinco anos, as ondas de calor afetaram
90% da bacia mediterrânea, atingindo temperaturas superiores a 26 graus Celsius
(26ºC).
Por outro
lado, monitorizou a saúde das comunidades bentónicas (que vivem junto ao leito
marinho), até à profundidade de 45 metros, em 142 lugares ao longo da zona
costeira do Mediterrâneo (e de algumas ilhas), nos cinco anos de referência. Só
uma parcela das localizações foi monitorizada durante aquele período de tempo,
mas a abrangência permitiu obter um retrato profundo da situação no
Mediterrâneo.
Os trabalhos
feitos no passado sobre o impacto da temperatura do mar nas comunidades
marinhas eram limitados a nível do tempo e a da localização. Agora, como
explica Ledoux, “em vez de termos uma ideia pontual do que se passa, obtivemos
uma ideia geral”. A análise biológica abrangeu o nível das espécies – corais,
esponjas, macroalgas, equinodermes e plantas – e o nível das comunidades que
vivem em prados marinhos e em ecossistemas coralígenos, compostos por corais,
esponjas e algas. Estas comunidades coralígenas constroem um habitat colorido, podendo albergar mais
de 1600 espécies. Por isso, o trabalho oferece, no dizer do investigador, “uma perspetiva
geral, quer a nível geográfico, quer a nível dos animais e das algas”.
Em cada um
dos cinco anos em referência, foram afetados pelas ondas de calor 23 grupos
taxonómicos e há grande probabilidade de desaparecerem até uma certa
profundidade, pois as ondas de calor estão a causar com frequência fenómenos de
mortalidade.
Os
resultados não são animadores, uma vez que muitas espécies de corais e de esponjas
têm um crescimento anual lento (de milímetros ou de centímetros), pelo que tais
espécies, após um evento de mortalidade, necessitam de 10 a 20 anos para
recuperar; e, se aqueles fenómenos extremos se repetem em poucos anos, não há
tempo. Depois, como afirma Ledoux, “os corais e as esponjas são formadores de habitat” e, “quando existem, há outras
espécies que aproveitam o espaço formado para o habitarem”, tal como sucede com
as árvores da floresta: “quando estas ‘árvores’ desaparecem, o ecossistema
muda”.
Porém, os efeitos
nefastos causados por estes episódios de calor não se ficam pela fauna e flora
marinhas. Provavelmente esta tendência terá impacto nas comunidades humanas
costeiras. Por exemplo, pode ser colocado em causa o mergulho submarino para
visitar estes ecossistemas, que promove o turismo de regiões e podem ser afetadas
pelas ondas de calor as espécies de importância comercial, como a garoupa-preta
(Epinephelus marginatus) e o crustáceo Scyllarides latus, que usam
aquele habitat como berçário.
Há, no
entanto, um foco de esperança no meio deste panorama cinzento. Alguns
indivíduos das espécies de corais e de esponjas parecem mais resistentes ao stresse
térmico. Por isso, Ledoux está a estudar a espécie de coral gorgónia-vermelha (Paramuricea
clavata), na demanda de caraterísticas genéticas associadas à resistência
ao calor.
Ora, se os
cientistas conseguirem identificar estes indivíduos resistentes a altas
temperaturas, será possível colonizar artificialmente áreas com corais capazes
de sobreviver às futuras ondas de calor, formando comunidades duradouras.
Porém, o cientista avisa para os limites desta técnica.
Na verdade,
como afirma Ledoux, “os trabalhos de restauração de habitats serão sempre muito
localizados” e, à escala do Mediterrâneo, não é possível fazê-la, “quer em
termos logísticos, quer por causa dos recursos necessários”. Portanto, a única
resposta válida “é trabalhar nas causas das ondas de calor marinhas, as alterações
climáticas”, defende Jean Baptiste Ledoux. E esta implica o reconhecimento da
necessidade de haver uma “resposta política para haver uma diminuição do que
causa as alterações climáticas”, ou seja, a emissão dos gases com efeito de
estufa.
E o drama
não se fica pelo Mediterrâneo. Pode mesmo estender-se aos grandes oceanos.
Por exemplo,
diferentes cenários do Coupled Model
Intercomparison Project Phase 6 (CMIP6) acusam tendências significativas na
frequência, duração e intensidade acumulada para o Atlântico Sul Sudoeste,
confirmando que tais eventos se estão a intensificar efetivamente, pelo que
levarão a um estado quase permanente no final do século XXI. Foi também
observado que o bloqueio atmosférico, mecanismo principal causador de OCMs na
região, possivelmente, se irá intensificar no futuro. Isso permite concluir que
o aumento da ocorrência de OCMs não é só resultado direto do aquecimento de
longo prazo da temperatura de equilíbrio superficial global, mas também da
intensificação do mecanismo gerador.
As maiores
tendências foram observadas para o futuro próximo (2021-2050) e não para um
futuro distante (de 2071-2100). Por isso, é oportuno o alerta em relação às
implicações desses eventos nos ecossistemas marinhos e à habilidade do oceano
de absolver calor e dióxido de carbono (CO2), enfatizando a urgência
da diminuição global na emissão de gases de efeito de estufa.
Dizia, não
há muito, António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que ou travamos
a tempo as alterações climáticas ou embarcamos num suicídio coletivo, que não
queremos.
2022.07.28 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário