quarta-feira, 20 de julho de 2022

É urgente resolver o problema da habitação no país: quatro D’s

O direito a habitação condigna é protegido constitucionalmente (cf. Constituição da República Portuguesa – CRP, art.º 65.º/1ss). No entanto, a subida do preço da casa tem sido tema recorrente na discussão política. Desde 2014, o preço por metro quadrado tem subido, em média, 8% ao ano.

Desde 2012, mais do que duplicou o número de transações de compra e venda de casa, o que se deve ao aumento do número de pessoas a querer comprar casa. Na discussão pública, aponta-se o impacto da compra de imóveis por estrangeiros no mercado, mas os residentes no estrangeiro correspondem a uma fração pequena de compradores, menos de 10% do total de transações.

O aumento da procura de habitações por residentes nacionais tem a ver com a descida das taxas de juro no crédito à habitação. Entre 2011 e 2015, a Euribor caiu cerca de dois pontos. Assim, por exemplo, a mensalidade para um empréstimo de 200 mil euros a 40 anos com taxa de juro de 1% é a mesma que para um empréstimo de 140 mil euros com taxa de juro de 3%. Por isso, as pessoas ficaram mais disponíveis para comprar casas (e casas mais caras), porque a mensalidade era agora mais baixa. A par deste facto, a subida do valor de outros ativos, como ações e obrigações, tornou o investimento imobiliário mais atrativo para quem tem poupanças, fazendo subir a procura.

Ora, face ao aumento de procura, era expectável que a oferta reagisse e se procedesse a um aumento da construção para suprir o crescimento da procura, o que não aconteceu.

Nos últimos anos, tem sido forte a queda na construção de novas casas. Entre 2000 e 2020, a construção caiu cerca de 85%. Boa parte desta queda ocorreu no período da crise financeira com os preços das casas a cair e os bancos com um grande stock de casas para escoar, em resultado de empréstimos que ficaram por pagar. Ao mesmo tempo, um sistema bancário em crise não estava capaz de financiar novas construções. Algumas empresas de construção civil tiveram dificuldades e muitas desapareceram, donde resultou o desaparecimento dos seus fornecedores e do pessoal qualificado que empregavam, muito do qual emigrou e não voltou.

A recuperação das vendas de imobiliário chegou anos mais tarde, quando o preço das habitações voltou a subir. Esperava-se que a recuperação induzisse a subida rápida da construção de novas casas. Porém, isso não sucedeu. Na verdade, o setor estava ainda em recuperação e a capacidade operacional para recomeçar a construir de repente era pouca, pois muitos trabalhadores mudaram de setor ou de país. Por outro lado, o ciclo de construção é muito longo: passa muito tempo da aprovação do investimento ao licenciamento e ao final da construção. Esta demora, que se deve, em parte, à natureza do negócio da construção (planear, construir e vender levam tempo), também se deve à demora na concessão de autorizações, licenciamentos e todos os processos burocráticos atinentes à habitação, acrescendo que muitos municípios não mudam o Plano Diretor Municipal (PDM) há muitos anos, indiferentes à escassez de habitação, impedindo, por exemplo, a construção em altura, que permite uma melhor utilização do espaço. E outra razão foi a redução de oferta por via da transformação de casas de habitação em Alojamento Local (AL). No entanto, o número de alojamentos locais no total do parque habitacional é residual. E, mesmo no pico da crise no turismo, devido à pandemia, quando muito do AL voltou ao mercado da habitação, o preço das casas continuou a aumentar. É certo que, em algumas freguesias de Lisboa e do Porto, o peso do AL é mais elevado do que no resto do país, mas o preço da habitação subiu em todo o país, mesmo em zonas distantes de Lisboa e do Porto, aonde o turismo não chega.

Olhando o cenário europeu, verifica-se que, entre 2010 e 2020, os preços médios da habitação na UE só não cresceram em Espanha, Itália e Chipre (que tiveram grande bolha imobiliária antes), três países com um perfil turístico e de atração de residentes estrangeiros semelhante ao nosso. Ora, se o turismo ou a atração de residentes estrangeiros fossem fatores determinantes na evolução do preço da habitação, esses países teriam acompanhado Portugal. O que têm em comum é a bolha imobiliária de antes, que resultou num boom de construção antes da crise financeira, deixando um grande stock de habitações novas que fizeram com que o preço não subisse nos anos seguintes. Por toda a Europa, os países reagem à subida dos preços das casas, permitindo um nível maior de construção. A grande exceção é Portugal onde, apesar de os preços terem subido 44% desde 2010, o número de licenciamentos se mantém igual. Apenas em cinco outros países não aumentou o número de licenciamentos. Em três, isso deveu-se à queda no preço das casas e, nos outros dois, o aumento foi cerca de um terço do português.

A solução para os preços da habitação é, pois, muito clara: permitir que se construa mais, tal como Portugal fez no passado e o fazem hoje outros países europeus que sofrem do mesmo problema.

Portugal é um dos países da Europa com menos densidade de construção. Os números que se mostram de um número de casas superior à média europeia incluem muitas casas pequenas, com falta de condições ou em zonas onde não se pode viver por falta de oportunidades.

Perante a realidade de subida de preços, a queda da construção e a baixa densidade de construção, a solução é construir mais, aumentar a oferta. Porém, há obstáculos. E o primeiro obstáculo a construir mais são os custos da habitação. O crescente custo dos materiais é algo de que não se escapará nos próximos tempos e a que se junta a subida do custo da mão-de-obra, o que acrescerá aos custos da habitação e, por isso ao preço final. Aqui, o Estado podia intervir pela redução da fiscalidade na construção. O IVA pago na construção é excessivo e não é dedutível. Ora, a descida do IVA e/ou a sua dedutibilidade reduziria o custo das novas habitações, aumentaria a oferta e, consequentemente, o preço. E, mesmo quando construir é rentável, há obstáculos e o principal é a autorização para o fazer. Os PDM demoram muito a atualizar e, mesmo que o PDM o permita, o processo de licenciamento pode ser muito longo, o que introduz incerteza no investimento. No mundo do investimento, a incerteza acarreta custos que serão incorporados no preço final das casas; e os atrasos no licenciamento trazem custos adicionais de financiamento. E, ainda que o investimento seja feito com fundos próprios, a espera tem custos, porque é dinheiro que fica parado à espera do licenciamento. Além disso, por cada ano de espera, acrescem os impostos sobre a propriedade que os promotores têm de pagar enquanto esperam pelo licenciamento. Não só o investidor tem de ficar à espera da aprovação, como o Estado ganha com a espera. Quanto mais demorar o licenciamento, mais o Estado cobra em Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e em Imposto Adicional ao IMI (AIMI), lucrando com a sua ineficiência. 

Obtida a autorização para construir, é preciso obter mão-de-obra para a construção. Portugal perdeu muitos trabalhadores da construção civil na última crise; e os construtores não se dispõem a pagar muito pela mão-de-obra. Ora, o modelo económico baseado em salário baixo capitula e degrada o estrato social de quem trabalha por conta de outrem e favorece a economia subterrânea.   

Face a esta realidade, equacionam-se más soluções na discussão pública, como: reduzir a procura, redistribuir a oferta existente ou limitar a utilização do parque habitacional. E a verdadeira solução reside no aumento da oferta.

O crescimento do trabalho remoto e dos nómadas digitais é uma oportunidade para países como Portugal. Se os afastarmos para diminuir a pressão sobre o imobiliário, outros países aproveitarão essa oportunidade (a Grécia tem um programa especial para estes trabalhadores). Limitar o AL é também um erro, especialmente se feito por via legislativa, porque o seu peso é muito baixo no parque habitacional do país como um todo. Mesmo que seja elevado em alguns sítios, é assunto a discutir a nível local. E deve exigir-se que os projetos de AL sejam duradouros e de qualidade.

Outra das soluções que tem sido apresentada é a nacionalização do parque habitacional ou a subsidiação à aquisição e/ou ao arrendamento. Dizem alguns que nacionalizar parte do parque habitacional, além de constituir violação imoral do direito de propriedade, parte do pressuposto de que o Estado gere melhor do que os privados, quando o Estado nem tem lista atualizada do seu património e mantém muitos dos seus imóveis devolutos e degradados. Já a subsidiação de aquisição e arrendamento será solução restrita – dizem. Há um limite ao número de pessoas que pode viver nos centros das grandes cidades, embora milhões gostassem de lá viver. Havendo escassez, só há duas formas de ter acesso a isso: pagar ou ter os outros a pagar.

No entanto, já estivemos melhor. Houve, nas grandes cidades, programas de erradicação das barracas e atribuição de casa aos residentes mediante o pagamento de renda compatível, a renda social; houve programas de habitação social; houve programas de construção para venda a custos controlados. Tudo está a desaparecer e bairros sociais são aniquilados, sob o argumento da degradação, em favor da imobiliária especulativa. E as pessoas continuam à espera de casa.  

Quanto ao mercado de arrendamento, fala-se em limitar o valor das rendas. Ora, o congelamento do preço das rendas beneficia quem arrenda casa, nalguns casos transformando o arrendatário no dono, de facto, do imóvel, mas destrói a vida dos proprietários que pouparam uma vida no imobiliário e leva a que haja menos casas para arrendar, aumentando a escassez de imobiliário para quem ainda não arrenda. Num país com tantas necessidades, da educação à saúde, e com um interior despovoado, parece imoral desviar dinheiro para garantir a possibilidade de uma pequena minoria poder viver nas zonas mais caras do país. Porém, não é lícito adotar uma política que deixe o mercado expulsar dos centros das cidades as pessoas, as famílias que deviam ter o direito de lá viver. E a repovoação do interior não pode fazer-se por necessidade ou por coação, mas por incentivos. É imperativo que a política de habitação se foque na garantia do direito à habitação para todos, mormente para quem não pode.

Resolver o problema da habitação pelo lado da oferta, construindo mais, é a solução sustentável. Mas, se o Governo quer resolver o problema pelo lado da procura, arrume a sua casa: descentralize recursos e deslocalize serviços. Se deslocalizar parte das suas operações para fora de Lisboa, diminuirá a procura de casas ali, baixando os preços, deslocará a atividade económica para outras zonas do país e criará oportunidades a quem ali nasce e se vê, ano após ano, obrigado a migração interna a capital. Quem já vive na capital, se visse o seu organismo deslocalizado, rapidamente descobriria que o salário que recebe vale muito mais fora de Lisboa.

O preço da casa tem aumentado e isso é problema para os que não são proprietários de habitação, em especial os mais jovens. A ténue capacidade de resposta do setor está relacionada com a crise anterior e com a incapacidade do Estado de agilizar licenciamentos e reduzir a carga fiscal sobre a construção. E o Estado, para libertar a pressão da procura nas grandes cidades, pode deslocalizar serviços e descentralizar decisões, mas não deve ceder à tentação eleitoralista de redistribuir as casas existentes por um conjunto pequeno de pessoas, criando mais clientela à custa de todos os que não tiverem a sorte de lhes calhar uma casa em sorteio. Apenas uma solução dará resultado no longo prazo: aumentar a oferta de habitação para todos, em todo o lado, alavancada no investimento de privados, incluindo estrangeiros, mas com o Estado central e os municípios a aumentar exponencialmente o investimento na construção, sobretudo para arrendamento em que o cidadão ou a família pagasse de acordo com as suas reais posses.  

Enfim, a solução é desburocratizar, descentralizar, deslocalizar e descer impostos.

Todavia, a par da facilitação do investimento imobiliário privado, o Estado deve: “programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social”; “promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais”; “estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada”; “incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução”; e adotar “uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria” (cf. CRP, art.º 65.º/ 2 e 3).

2022.07.20 – Louro de Carvalho 

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