quarta-feira, 27 de julho de 2022

A Pragmática Linguística como fautora da comunicação humana

 
A partir de 1851, o termo “pragmatismo”, para lá do uso jurídico, designa a corrente filosófica pela qual o valor prático de uma proposição é o critério da sua verdade ou, pelo menos, da sua aceitabilidade. Charles S. Peirce lançou os seus fundamentos ao defender que a ideia que temos de um fenómeno ou de um objeto é a soma das ideias que podemos obter acerca das consequências práticas desse fenómeno ou das ações que podem ser feitas sobre tal objeto.
Sustenta Peirce que, para atingir clareza de apreensão, temos de considerar os efeitos do objeto da nossa conceção, que podem concebivelmente ter consequências práticas, pois a nossa conceção desses efeitos é a totalidade da nossa conceção do objeto. Isto, porque o significado de qualquer ideia que tenhamos em mente só será aquilatado na relação com os efeitos práticos concebíveis inerentes a essa ideia. E pensar que, sob a ideia da totalidade dos efeitos sensíveis concebíveis, há algo mais, uma realidade para lá das aparências, é criar ficção.
Peirce extraiu a máxima pragmatista da sua experiência como cientista de laboratório. Com efeito, para o físico, por exemplo, o significado de conceitos como “peso” ou “dureza” é só o conjunto de efeitos práticos das substâncias que têm tais qualidades.
E o Pragmatismo estende a visão laboratorial a todas as esferas de intervenção humana, inclusive ao uso da linguagem. Na corrente pragmatista da filosofia norte-americana, Peirce distingue três dimensões do signo linguístico, que Charles Morris, em 1938, no processo de semiose (produção e representação de sentidos), denomina de Semântica, Sintática e Pragmática. Se a Semântica concerne à relação dos signos com os objetos para que remetem, a Sintática à relação dos signos entre si e a Pragmática à relação dos signos com os seus interpretantes. Para Morris, na semiose, algo funciona como signo para alguém. E este processo compreende: o veículo sígnico (que age como signo); o designatum (aquilo a que o signo se refere); o interpretante (o efeito sobre alguém pelo qual a coisa é signo para esse alguém); e o intérprete (quem recebe o signo).
É também de observar que os fatores da semiose são relacionais, de modo que só subsistem enquanto se implicam uns aos outros. Só há veículo sígnico se houver um designatum e um interpretante, correspondentes. O mesmo vale para os dois últimos fatores: a existência de um implica a existência dos outros. Por isso, a semiótica não estuda quaisquer objetos específicos, mas todos os objetos, desde que participem num processo de semiose.
A semiose é tridimensional e a esquematização do processo toma a forma de triângulo. E da sua relação triádica extraem-se três tipos de relações diádicas: as relações que os signos estabelecem entre si (Sintaxe); as relações que os signos estabelecem com os objetos (Semântica); e as relações dos signos com os seus intérpretes (Pragmática). Esta arrumação decorre da análise do processo semiósico, em que algo se torna para alguém signo de uma outra coisa, e retoma a divisão medieval do trivium (estudo das vocês) em Gramática, Dialética (Lógica) e Retórica. Peirce foi o primeiro a reinterpretar as velhas artes dicendi como partes da semiótica, sistematizando-as em disciplinas que tratam, respetivamente, da primeiridade, da secundidade e da terceiridade. E subdividiu a semiótica em Gramática Especulativa, com a função de descobrir o que deve ser verdade do representamen usado por qualquer inteligência científica para que receba significação, Lógica Pura, como a ciência do que é necessariamente verdade dos representamina de uma inteligência científica para que possam valer para qualquer objeto, isto é, para que possam ser verdadeiros, e Retórica Pura, com a função de descobrir as leis graças às quais em qualquer inteligência científica um signo dá origem a um outro e em particular um pensamento produz outro pensamento. A Gramática Especulativa trata das condições formais dos símbolos que têm significado; a Lógica, das condições formais de verdade dos símbolos; e a Retórica, das condições formais da força dos símbolos ou do poder de apelar à mente, isto é, da sua referência aos interpretantes (é a Retórica formal). Posteriormente, Morris cobriu, com a divisão da Semiótica em Sintática, Semântica e Pragmática, as diferentes correntes filosóficas dos anos trinta que estudam os signos, sob perspetivas diferentes. A Sintática incorpora os trabalhos do Positivismo lógico, a Semântica os estudos dos empiristas e a Pragmática as investigações do Pragmatismo.
O sentido que um enunciado adquire em função das determinações das pessoas, dos lugares, dos momentos e das razões que levam à sua enunciação é função da sua dimensão pragmática, ou seja, das relações e dos efeitos dos signos sobre os seus intérpretes. Com efeito, determinar a significação de um enunciado é definir o seu valor semântico, ser capaz de apreender aquilo para que remete a sua expressão, em função da língua comum dos interlocutores. Mas compreender as razões da sua enunciação postula a capacidade de o enquadrar numa concreta e singular situação interlocutiva. É isso que torna o discurso relevante, pertinente ou plausível.
Assim, o estudo das relações da linguagem com as situações e com os contextos enunciativos, e os como tais relações são asseguradas, são dos objetos fundamentais e primeiros da Pragmática.
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Mas, nesta, há diversas perspetivas que adquiriram um espaço próprio de concetualização e atualização, nomeadamente as perspetivas indexical, acional e conversacional.
A perspetiva indexical corresponde à relação dos enunciados entre os interlocutores, as situações, os contextos da enunciação e o mundo representado pelos signos. Esta perspetiva assegura o estudo do que deve ser considerado como válido sobre os indicadores que identificam as instâncias enunciativas e os seus referentes, tais como os interlocutores, a realidade referenciada e os quadros espácio-temporais do contexto pertinentes para a determinação do sentido do que é enunciado. Liga-se-lhe uma posição extrinsecalista – de inspiração saussuriana – que restringe o objeto da pragmática da linguagem a uma situação enunciativa exterior à constituição de sentido, não intervindo propriamente como fator do valor semântico dos enunciados.
Neste aspeto, a Pragmática não concerne à teoria da linguagem, mas às condições externas, de índole histórica, psicológica, sociológica e ideológica do discurso, isto é, aos usos individuais que os falantes fazem da linguagem. Converte-se a Língua em discurso e atualiza-se num determinado contexto enunciativo. Entra aqui a dêixis, como o fenómeno de referenciação do ato de enunciação no enunciado pelas marcas pessoais (v. g: eu, tu…), temporais (v. g: agora, já, amanhã…) e espaciais (v. g: aqui, ali…). E ao rol das preocupações linguísticas acrescem as estruturas que manifestam a atitude do locutor face ao que diz e ao conteúdo proposicional do seu enunciado.
A perspetiva acional corresponde ao estudo da linguagem enquanto ação, como realização de atos que intervêm na constituição e na transformação do mundo. Aqui, a Pragmática tenta identificar a natureza, as condições de realização e a validade que os interlocutores efetuam pelos processos de interlocução. A esta perspetiva ligam-se as posições intrinsecalistas. Por um lado, considera-se que a linguagem possui natureza acional, englobando as verificações ou os enunciados assertivos, na forma afirmativa e na negativa, e faz-se depender do processo interlocutivo a constituição das condições de realização dos atos de linguagem. Por outro lado, entende-se que só parte das expressões linguísticas – enunciados performativos (pedidos, ordens, interrogações, declarações, veredictos…) – se presta ao desempenho de ações e que este desempenho está determinado pelo código da Língua. Nesta ótica, focamo-nos no dado significativo de enunciados que realizam determinados atos, de modo a podermos aferir da verdade dum enunciado factual e a verificar se determinado facto existiu ou se uma promessa se cumpriu.
É nesta ótica que há espaço para a distinção entre ato locutório (ato de falta pelo qual se produz um enunciado), ato ilocutório (ato de fala cujo enunciado revela uma intenção do locutor junto do interlocutor) e ato perlocutório (ato de fala que tem efeito no interlocutor, que reage em conformidade). O fulcro está no ato ilocutório que pode apresentar-se como: assertivo ou representativo, se aponta a relação do locutor com a verdade; diretivo, se quer que o interlocutor realize uma ação verbal ou não (ordem, pedido, conselho, sugestão, convite…); compromissivo, se implica uma ação futura do locutor (promessa, ameaça, juramento…); ato expressivo, se evidencia um estado psicológico específico no locutor (queixa, agradecimento, queixa, pedido de desculpa, manifestação de júbilo…) e ato declarativo, se torna existente a situação descrita pelo conteúdo proposicional do enunciado (nomeação, sentença, doação, casamento…).
Por fim, a perspetiva conversacional tem como objeto os processos inferenciais, tais como as implicitações e as pressuposições, que os falantes realizam no decurso dos processos de interlocução, para compreenderem o sentido que os enunciados dão a entender. Só quem se insere na tendência intrinsecalista admite esta perspetiva, referindo-se, várias vezes, ao interacionismo simbólico e utilizando amiúde os quadros concetuais da etnometodologia.
Assim, nesta perspetiva, para que aconteça e se mantenha o diálogo um dos princípios de maior alcance é o Princípio de Cooperação (põe de acordo os interlocutores), subdividido em quatro subprincípios que sustentam as Máximas Conversacionais: máxima de qualidade – tentar que a contribuição seja verdadeira; máxima de quantidade – tornar a contribuição tão informativa como requerido; máxima de relação – ser relevante (Princípio da Pertinência); e máxima de modo – ser claro, afável (Princípio da Cortesia). Desta forma, o Princípio de Cooperação e as Máximas Conversacionais que o concretizam exprimem a cumplicidade que se cria, entre os participantes numa conversa, cumplicidade de que todos os falantes têm consciência. Os princípios concretizados nas Máximas são princípios universais que guiam a interação conversacional. É de não esquecer que algumas destas máximas são infringidas em certas alturas – sobretudo em situações ficcionadas e mediadas e sempre que o locutor tem propósito irónico ou sarcástico –, mas há caraterísticas dos participantes que levam à infração dessas máximas conversacionais.
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É importante o estudo da linguagem (veículo de expressão pensamento e de sentimento e instrumento de comunicação) e da Língua (complexo de signos posto à disposição da comunidade dos falantes), pela descrição das suas diversas realizações ao logo do tempo e do hoje, deixando-se surpreender pelas suas leis internas e observando as normas assumidas pela norma-padrão. Porém, se não formos capazes de operacionalizar, em interação, o uso da Língua em termos da comunicação bilateral, da exposição unilateral, da difusão e do debate multilateral, arriscamo-nos a viver falando num mundo de trogloditas, a suportar monólogos fastidiosos e praticar diálogos de surdos ou de fastídio e conversações em que pontifica o amuo, a ameaça, a agressão ou o inútil delicodoce. E a Língua pode e deve ser um fator de entendimento e de paz.

2022.07.27 – Louro de Carvalho

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