O
Bispo de Roma empreendeu, de 24 a 30 de julho, uma visita ao Canadá que designou
de peregrinação penitencial. Obviamente, a viagem foi agendada a convite da Conferência
Episcopal e das autoridades políticas, sendo o intuito do Pontífice animar a fé
da Igreja que pulsa naquela grande nação e reiterar, no âmbito da peregrinação penitencial,
o reconhecimento dos erros e atropelos de teóricos e operacionais da Igreja
Católica na relação com os povos autóctones.
A
Conferência Episcopal do Canadá mostrou-se satisfeita com os objetivos e com o
decurso da visita papal. Também parece que as comunidades indígenas ficaram
satisfeitas, talvez porque os encontros que decorreram, há quatro meses, no
Vaticano, lhes fizeram perceber qual é o genuíno propósito de Francisco e o
atual sentir da Igreja sobre o que se passou – facto que não foi obnubilado
pela lufa-lufa do cumprimento da agenda da visita.
Entretanto,
alguns observadores consideram insuficiente a postura do Pontífice. Com efeito,
reconheceu que a incursão histórica dos povos colonizadores, em que pontificou
a Igreja e os seus missionários, lhes retirou a língua nativa, anulou a cultura,
as tradições e as formas de viver e de trabalhar e a visão do mundo. Porém, não
reconheceu que tenha havido genocídio, nem se dispôs a reformular a doutrina da
descoberta. De modo similar julgam a postura de Francisco sobre o que se passou
nas escolas residenciais orientadas pela Igreja durante mais de um século, já
não no tempo das Descobertas europeias, mas em tempo novo marcado pelas
doutrinas iluministas.
Logo no dia
25, o Santo Padre teve um encontro com as populações indígenas das first nations, dos métis e dos inuit,
em que indicou o propósito de “exprimir,
pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação,
manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”. Referiu
que viveram no território, durante milhares de anos, “com estilos de vida que
respeitaram a própria terra, herdada das gerações passadas e guardada para as
futuras”, como “um dom do Criador que há de ser partilhado com os outros e
amado na harmonia com tudo o que existe, numa interconexão vital de todos os
seres vivos”, aprendendo a “nutrir um sentido de família e de comunidade” e a
desenvolver “laços sólidos entre as gerações, honrando os idosos e cuidando dos
pequeninos”.
Porém, a memória faz ecoar
no coração do Bispo de Roma “um grito de dor, um brado sufocado” que o
acompanhou nestes meses, repassando o drama sofrido por muitos, pelas famílias,
pelas comunidades “sobre as tribulações sofridas nas escolas residenciais”. E o
Pontifice vincou: “Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram
nas escolas residenciais impressiona-nos, indigna-nos e entristece-nos, mas é
necessário”.
Mais disse
que “é necessário recordar como as políticas de
assimilação e alforria, que incluíam o sistema das escolas residenciais, foram
devastadoras para as pessoas destas terras”. Na verdade, os colonizadores
europeus depararam com “a grande oportunidade de desenvolver um encontro
fecundo entre culturas, tradições e espiritualidades”, o que, em grande parte,
não aconteceu. Antes, “as políticas de assimilação acabaram por marginalizar
sistematicamente os povos indígenas”; as línguas e as culturas nativas “também
através do sistema das escolas residenciais, foram denegridas e suprimidas”; as
crianças “foram submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e
espirituais” e “foram levadas das suas casas quando eram pequeninas” – o que “afetou
indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos”.
Ao mesmo tempo, Francisco, enveredando pelo caminho da reparação possível
e da reconciliação, reconhece que pedir perdão não é o ponto de chegada, mas o
ponto de partida. E, tendo em conta que, apesar de haver também muita caridade
cristã ao longo da História no Canadá e de ter havido “não poucos casos
exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas
ligadas às escolas residenciais foram catastróficas”, frisou que “a fé cristã
diz-nos que se tratou dum erro devastador, incompatível com o Evangelho de
Jesus Cristo”, o que tem de levar à reorientação da prática da fé.
No mesmo dia, no encontro com as populações indígenas e com os membros da comunidade
paroquial, o ilustre visitante de cadeira de rodas confessou-se como “amigo e peregrino”,
reconheceu que, na Igreja, se juntam, muitas vezes, a cizânia e o trigo e
desabafou que lhe custa pensar que “os católicos tenham
contribuído para as políticas de assimilação e alforria que transmitiam um
sentido de inferioridade, despojando comunidades e pessoas das suas identidades
culturais e espirituais, cortando as suas raízes e alimentando atitudes
preconceituosas e discriminatórias, e que isso tenha sido feito também em nome
duma educação que se supunha cristã”, quando “a educação deve partir sempre do
respeito e da promoção dos talentos que já existem nas pessoas”. Depois, abordou o
tema da reconciliação como marca essencial da Igreja e, na linha da resposta à
idiossincrasia de cada povo, como a capacidade de “fazer que Cristo anime o centro mesmo de toda a cultura”. E deixou claro, com a
imagem bíblica da tenda em que Deus habitava quando o povo de Israel caminhava
pelo deserto, que o Deus da proximidade caminha sempre connosco.
E,
no dia 27, no encontro com as Autoridades
civis, com os Representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático,
falou das folhas da acerácea (que figura na bandeira como símbolo do país), que “absorvem ar poluído e restituem oxigénio,
convidam a maravilhar-nos com a beleza da criação e a deixar-nos atrair pelos
saudáveis valores presentes nas culturas indígenas”, que “servem de inspiração
para todos nós e podem contribuir para sanar o hábito nocivo de explorar”, de “explorar
a criação, as relações, o tempo, e de regular a atividade humana apenas com
base na utilidade e no lucro”.
Com
efeito, antes de os colonos chegarem ao Canadá, as populações nativas extraíam
das folhas da acerácea a seiva com que faziam xaropes nutrientes, o que leva a
pensar na sua laboriosidade, sempre atentas à salvaguarda a terra e do
meio-ambiente, fiéis à visão harmoniosa da criação, que ensina o homem a amar o
Criador, a viver em simbiose com os outros seres vivos e a colocar-se à escuta
de Deus, das pessoas e da natureza. Temos, disse o Papa, enorme necessidade “de
nos ouvir uns aos outros e dialogar, para nos afastarmos do individualismo
dominante, dos juízos precipitados, da crescente agressividade, da tentação de
dividir o mundo em bons e maus”.
Por outro lado, a frondosidade da acerácea lembra-nos a multiplicidade e
a diversidade de culturas, a respeitar e a desenvolver. Porém, como avança o
Papa, “estes ensinamentos vitais foram violentamente
combatidos no passado”, sobretudo “nas políticas de assimilação e alforria,
incluindo o sistema escolar residencial, que prejudicou muitas famílias
indígenas, minando a sua língua, cultura e visão de mundo”. E, “naquele
deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que
separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias
instituições católicas locais”. Por isso, Francisco, juntamente com os Bispos
do país, renova o pedido de perdão “pelo mal cometido por tantos cristãos
contra as populações indígenas”, pois crentes houve e há que “se adequam mais
às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.
E, se a fé
cristã desempenhou papel essencial na modelação dos ideais mais elevados do
Canadá, que se caraterizam pelo desejo de construir um país melhor para todo o
seu povo, urge o empenho conjunto na realização do que todos compartilham:
promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de
cura e reconciliação entre elas e os não indígenas do país – o que se reflete
no empenho em responder adequadamente aos apelos da Comissão em prol da
Verdade e da Reconciliação, bem como na solicitude em reconhecer os
direitos dos povos indígenas.
Por seu turno, a Santa Sé
e as comunidades católicas locais nutrem o desejo concreto de promover as
culturas indígenas, com caminhos espirituais específicos e adequados, que
incluam a atenção às suas tradições culturais, costumes, línguas e processos
educativos, no espírito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas, bem como renovam a relação entre a Igreja e as populações
indígenas do Canadá, relação marcada por um amor que deu excelentes frutos e –
infelizmente – por feridas que “nos estamos esforçando por compreender e sanar”.
Por fim, no voo de retorno do Canadá, Francisco falou da viagem e do
velho e novo colonialismo.
Partir do princípio de que os colonizados são inferiores – disse o Bispo
de Roma – é problema de
todos colonialismos. As colonizações ideológicas de hoje têm o mesmo esquema.
Quem não entra na rota do colonizador é inferior. E vai mais longe, ao dizer que
alguns consideravam esses povos não apenas inferiores, mas se perguntavam se
tinham uma alma. Quando São João Paulo II foi à África, para a porta onde os
escravos embarcavam deu um sinal para que entendêssemos o drama criminoso: as
pessoas eram jogadas no navio em condições desastrosas e tornavam-se escravas
na América. É certo que havia vozes que falavam claro, como Bartolomeo de las
Casas e Pedro Claver, por exemplo, mas eram a minoria. A consciência da igualdade
humana veio lentamente – rememora o Papa, que se permitiu dizer que, no subconsciente,
a ideia subsiste na atitude de reduzir a cultura dos outros à nossa. É algo que
vem do nosso modo de vida desenvolvido, que nos leva, às vezes, a perder os
valores que os outros têm. Por exemplo: os povos indígenas têm um grande valor
que é o valor da harmonia com a Criação e, pelo menos, alguns espelham-no na expressão
“viver bem”, que não significa, como entendemos os ocidentais, viver bem ou
viver a dolce vita, mas “custodiar a
harmonia”, o grande valor dos povos originais.
Vincando que
reduzimos tudo “à cabeça”, Francisco elogia a personalidade dos povos
originais, que se sabe expressar em três línguas: a da cabeça, a do coração e a
das mãos. E diz que os povos indígenas têm essa capacidade poética.
Sobre a doutrina
da Descoberta, sustenta que é injusta, mas usada também hoje, embora com luvas
de seda. E mencionou o caso de bispos de alguns países lhe disseram que, nos seus
países, quando se pede crédito a uma organização internacional, são impostas condições,
mesmo condições legislativas, colonialistas.
Voltando à colonização
da América – por Ingleses, Franceses, Espanhóis, Portugueses, sempre houve esse
perigo: somos superiores e esses povos não contam, o que é grave. É por isso
que temos de voltar e sanear o que foi feito de errado, sabendo que o colonialismo
existe ainda. Por exemplo, no caso do Rohingya, em Mianmar: não têm direito à
cidadania, são considerados de um nível inferior.
E, em relação
à não referência explícita ao genocídio, o Santo Padre reconhece que não usou o
termo, mas enfatiza que descreveu o fenómeno e
pediu perdão por este “trabalho” que é genocida. E condenou: “tirar as crianças,
mudar a cultura, mudar as mentes, mudar as tradições, mudar uma raça – digamos –
uma cultura inteira”.
***
Não se pode exigir do Papa que meça tudo pela mesma bitola e desdiga de
todo o trabalho de missionação. Não se pode negar a História, embora haja
tentativas de a reescrever segundo óticas duvidosas. Os erros não são apenas da
Igreja. Esta é responsável pela inspiração e cobertura dadas a uma atitude
invasiva e desumana e do oportunismo dos crentes, do que deve pedir perdão e
proceder à reorientação. Contudo, os outros devem fazer a parte deles (houve
muitos interesses à mistura). Por outro lado, Francisco não pode obnubilar a
missão da Igreja e a sua obra. Enfim, de joelhos ante Deus, mas de pé diante
dos homens, sem sobranceria, mas sem rastejamentos.
2022.07.30 – Louro de Carvalho
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