sábado, 30 de julho de 2022

Os contornos da peregrinação penitencial de Francisco no Canadá

 

O Bispo de Roma empreendeu, de 24 a 30 de julho, uma visita ao Canadá que designou de peregrinação penitencial. Obviamente, a viagem foi agendada a convite da Conferência Episcopal e das autoridades políticas, sendo o intuito do Pontífice animar a fé da Igreja que pulsa naquela grande nação e reiterar, no âmbito da peregrinação penitencial, o reconhecimento dos erros e atropelos de teóricos e operacionais da Igreja Católica na relação com os povos autóctones.

A Conferência Episcopal do Canadá mostrou-se satisfeita com os objetivos e com o decurso da visita papal. Também parece que as comunidades indígenas ficaram satisfeitas, talvez porque os encontros que decorreram, há quatro meses, no Vaticano, lhes fizeram perceber qual é o genuíno propósito de Francisco e o atual sentir da Igreja sobre o que se passou – facto que não foi obnubilado pela lufa-lufa do cumprimento da agenda da visita.

Entretanto, alguns observadores consideram insuficiente a postura do Pontífice. Com efeito, reconheceu que a incursão histórica dos povos colonizadores, em que pontificou a Igreja e os seus missionários, lhes retirou a língua nativa, anulou a cultura, as tradições e as formas de viver e de trabalhar e a visão do mundo. Porém, não reconheceu que tenha havido genocídio, nem se dispôs a reformular a doutrina da descoberta. De modo similar julgam a postura de Francisco sobre o que se passou nas escolas residenciais orientadas pela Igreja durante mais de um século, já não no tempo das Descobertas europeias, mas em tempo novo marcado pelas doutrinas iluministas.        

Logo no dia 25, o Santo Padre teve um encontro com as populações indígenas das first nations, dos métis e dos inuit, em que indicou o propósito de “exprimir, pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação, manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”. Referiu que viveram no território, durante milhares de anos, “com estilos de vida que respeitaram a própria terra, herdada das gerações passadas e guardada para as futuras”, como “um dom do Criador que há de ser partilhado com os outros e amado na harmonia com tudo o que existe, numa interconexão vital de todos os seres vivos”, aprendendo a “nutrir um sentido de família e de comunidade” e a desenvolver “laços sólidos entre as gerações, honrando os idosos e cuidando dos pequeninos”.

Porém, a memória faz ecoar no coração do Bispo de Roma “um grito de dor, um brado sufocado” que o acompanhou nestes meses, repassando o drama sofrido por muitos, pelas famílias, pelas comunidades “sobre as tribulações sofridas nas escolas residenciais”. E o Pontifice vincou: “Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram nas escolas residenciais impressiona-nos, indigna-nos e entristece-nos, mas é necessário”.

Mais disse que “é necessário recordar como as políticas de assimilação e alforria, que incluíam o sistema das escolas residenciais, foram devastadoras para as pessoas destas terras”. Na verdade, os colonizadores europeus depararam com “a grande oportunidade de desenvolver um encontro fecundo entre culturas, tradições e espiritualidades”, o que, em grande parte, não aconteceu. Antes, “as políticas de assimilação acabaram por marginalizar sistematicamente os povos indígenas”; as línguas e as culturas nativas “também através do sistema das escolas residenciais, foram denegridas e suprimidas”; as crianças “foram submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e espirituais” e “foram levadas das suas casas quando eram pequeninas” – o que “afetou indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos”.

Ao mesmo tempo, Francisco, enveredando pelo caminho da reparação possível e da reconciliação, reconhece que pedir perdão não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida. E, tendo em conta que, apesar de haver também muita caridade cristã ao longo da História no Canadá e de ter havido “não poucos casos exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas ligadas às escolas residenciais foram catastróficas”, frisou que “a fé cristã diz-nos que se tratou dum erro devastador, incompatível com o Evangelho de Jesus Cristo”, o que tem de levar à reorientação da prática da fé.  

No mesmo dia, no encontro com as populações indígenas e com os membros da comunidade paroquial, o ilustre visitante de cadeira de rodas confessou-se como “amigo e peregrino”, reconheceu que, na Igreja, se juntam, muitas vezes, a cizânia e o trigo e desabafou que lhe custa pensar que “os católicos tenham contribuído para as políticas de assimilação e alforria que transmitiam um sentido de inferioridade, despojando comunidades e pessoas das suas identidades culturais e espirituais, cortando as suas raízes e alimentando atitudes preconceituosas e discriminatórias, e que isso tenha sido feito também em nome duma educação que se supunha cristã”, quando “a educação deve partir sempre do respeito e da promoção dos talentos que já existem nas pessoas”. Depois, abordou o tema da reconciliação como marca essencial da Igreja e, na linha da resposta à idiossincrasia de cada povo, como a capacidade de  “fazer que Cristo anime o centro mesmo de toda a cultura”. E deixou claro, com a imagem bíblica da tenda em que Deus habitava quando o povo de Israel caminhava pelo deserto, que o Deus da proximidade caminha sempre connosco.

E, no dia 27, no encontro com as Autoridades civis, com os Representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático, falou das folhas da acerácea (que figura na bandeira como símbolo do país), que “absorvem ar poluído e restituem oxigénio, convidam a maravilhar-nos com a beleza da criação e a deixar-nos atrair pelos saudáveis valores presentes nas culturas indígenas”, que “servem de inspiração para todos nós e podem contribuir para sanar o hábito nocivo de explorar”, de “explorar a criação, as relações, o tempo, e de regular a atividade humana apenas com base na utilidade e no lucro”.  

Com efeito, antes de os colonos chegarem ao Canadá, as populações nativas extraíam das folhas da acerácea a seiva com que faziam xaropes nutrientes, o que leva a pensar na sua laboriosidade, sempre atentas à salvaguarda a terra e do meio-ambiente, fiéis à visão harmoniosa da criação, que ensina o homem a amar o Criador, a viver em simbiose com os outros seres vivos e a colocar-se à escuta de Deus, das pessoas e da natureza. Temos, disse o Papa, enorme necessidade “de nos ouvir uns aos outros e dialogar, para nos afastarmos do individualismo dominante, dos juízos precipitados, da crescente agressividade, da tentação de dividir o mundo em bons e maus”. 

Por outro lado, a frondosidade da acerácea lembra-nos a multiplicidade e a diversidade de culturas, a respeitar e a desenvolver. Porém, como avança o Papa, “estes ensinamentos vitais foram violentamente combatidos no passado”, sobretudo “nas políticas de assimilação e alforria, incluindo o sistema escolar residencial, que prejudicou muitas famílias indígenas, minando a sua língua, cultura e visão de mundo”. E, “naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais”. Por isso, Francisco, juntamente com os Bispos do país, renova o pedido de perdão “pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas”, pois crentes houve e há que “se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho”.

E, se a fé cristã desempenhou papel essencial na modelação dos ideais mais elevados do Canadá, que se caraterizam pelo desejo de construir um país melhor para todo o seu povo, urge o empenho conjunto na realização do que todos compartilham: promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de cura e reconciliação entre elas e os não indígenas do país – o que se reflete no empenho em responder adequadamente aos apelos da Comissão em prol da Verdade e da Reconciliação, bem como na solicitude em reconhecer os direitos dos povos indígenas.

Por seu turno, a Santa Sé e as comunidades católicas locais nutrem o desejo concreto de promover as culturas indígenas, com caminhos espirituais específicos e adequados, que incluam a atenção às suas tradições culturais, costumes, línguas e processos educativos, no espírito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, bem como renovam a relação entre a Igreja e as populações indígenas do Canadá, relação marcada por um amor que deu excelentes frutos e – infelizmente – por feridas que “nos estamos esforçando por compreender e sanar”. 

Por fim, no voo de retorno do Canadá, Francisco falou da viagem e do velho e novo colonialismo.

Partir do princípio de que os colonizados são inferiores – disse o Bispo de Roma – é problema de todos colonialismos. As colonizações ideológicas de hoje têm o mesmo esquema. Quem não entra na rota do colonizador é inferior. E vai mais longe, ao dizer que alguns consideravam esses povos não apenas inferiores, mas se perguntavam se tinham uma alma. Quando São João Paulo II foi à África, para a porta onde os escravos embarcavam deu um sinal para que entendêssemos o drama criminoso: as pessoas eram jogadas no navio em condições desastrosas e tornavam-se escravas na América. É certo que havia vozes que falavam claro, como Bartolomeo de las Casas e Pedro Claver, por exemplo, mas eram a minoria. A consciência da igualdade humana veio lentamente – rememora o Papa, que se permitiu dizer que, no subconsciente, a ideia subsiste na atitude de reduzir a cultura dos outros à nossa. É algo que vem do nosso modo de vida desenvolvido, que nos leva, às vezes, a perder os valores que os outros têm. Por exemplo: os povos indígenas têm um grande valor que é o valor da harmonia com a Criação e, pelo menos, alguns espelham-no na expressão “viver bem”, que não significa, como entendemos os ocidentais, viver bem ou viver a dolce vita, mas “custodiar a harmonia”, o grande valor dos povos originais.

Vincando que reduzimos tudo “à cabeça”, Francisco elogia a personalidade dos povos originais, que se sabe expressar em três línguas: a da cabeça, a do coração e a das mãos. E diz que os povos indígenas têm essa capacidade poética.

Sobre a doutrina da Descoberta, sustenta que é injusta, mas usada também hoje, embora com luvas de seda. E mencionou o caso de bispos de alguns países lhe disseram que, nos seus países, quando se pede crédito a uma organização internacional, são impostas condições, mesmo condições legislativas, colonialistas.

Voltando à colonização da América – por Ingleses, Franceses, Espanhóis, Portugueses, sempre houve esse perigo: somos superiores e esses povos não contam, o que é grave. É por isso que temos de voltar e sanear o que foi feito de errado, sabendo que o colonialismo existe ainda. Por exemplo, no caso do Rohingya, em Mianmar: não têm direito à cidadania, são considerados de um nível inferior.

E, em relação à não referência explícita ao genocídio, o Santo Padre reconhece que não usou o termo, mas enfatiza que descreveu o fenómeno e pediu perdão por este “trabalho” que é genocida. E condenou: “tirar as crianças, mudar a cultura, mudar as mentes, mudar as tradições, mudar uma raça – digamos – uma cultura inteira”.

***

Não se pode exigir do Papa que meça tudo pela mesma bitola e desdiga de todo o trabalho de missionação. Não se pode negar a História, embora haja tentativas de a reescrever segundo óticas duvidosas. Os erros não são apenas da Igreja. Esta é responsável pela inspiração e cobertura dadas a uma atitude invasiva e desumana e do oportunismo dos crentes, do que deve pedir perdão e proceder à reorientação. Contudo, os outros devem fazer a parte deles (houve muitos interesses à mistura). Por outro lado, Francisco não pode obnubilar a missão da Igreja e a sua obra. Enfim, de joelhos ante Deus, mas de pé diante dos homens, sem sobranceria, mas sem rastejamentos.      

2022.07.30 – Louro de Carvalho

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