domingo, 10 de julho de 2022

A gestão de proximidade implica educar o ver

 

Está na moda a gestão de proximidade, como o está, em Igreja, a pastoral de proximidade. Muitos entendem que os cidadãos ganham se os sistemas políticos fizerem eleger o seu deputado, com quem possam dialogar e a quem exijam a prestação de contas sobre o seu desempenho político.

É preciso, sem ocultar os bons exemplos, estar de sobreaviso quanto a algumas gestões de proximidade e quanto a alguns acompanhamentos pari passu das nossas vidas. Com efeito, já temos gestores de proximidade que bastem para nos votarem ao deslado. Quantos chefes de equipa, quantos autarcas (membros de junta de freguesia e vereadores de câmara municipal) não votam ao desprezo os/as que, putativamente (o voto é secreto), não votaram em si! E a prestação de contas sobre o desempenho fica obnubilada pelas apertadas normas da contabilidade pública.  

Quanto à pastoral de proximidade, embora apreciando as boas práticas, que são abundantes, é de temer a rotina e o recurso aos mesmos agentes de sempre, supostamente porque os outros não estão disponíveis, tal como há alguns / algumas que pretendem ocupar lugares de relevo eclesial para alimentar o “ego” pessoal e ganhar prestígio social. Recordo que um candidato à presidência de um município se credenciava com o facto de ter no currículo a pertença à comissão da Fábrica da Igreja Paroquial do lugar do seu domicílio e que um dos itens invocados para a elevação de uma vila do interior à categoria de cidade era ter a catequese organizada e a cáritas paroquial.

O trecho evangélico proclamado e meditado neste XV domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 10,25-37) educa-nos o ver, orientando cada um de nós para a visão atenta e para a compreensão correta da realidade, superando nefastos preconceitos e dogmatismos no quotidiano. A seguir, Jesus ensina-nos a assumir a atitude de compaixão, estando atentos aos outros, especialmente aos que sofrem, aos que mais precisam, e intervir como o samaritano do Evangelho.

Está em causa a questão que um doutor da Lei (nomikós tis) colocou a Jesus: “O que fazer para conseguir a vida eterna como herança?” (tí poiêsas zôên aiônion klêronomêsô) Marcos apresenta a mesma cena (cf Mc 12,28-34), mas com o foco no “maior mandamento da Lei”. Lucas, adaptando-se aos cristãos de cultura grega, coloca a questão em termos de “vida eterna”.

A resposta é tão evidente que o próprio questionante a conhece: amar a Deus, fazer de Deus o centro da vida e amar o próximo como a si mesmo. Neste “resumo” do decálogo, cita Dt 6,5 (no atinente ao amor a Deus) e Lv 19,18 (no atinente ao amor ao próximo). Jesus, que chamara à atenção para a importância de ver o que está escrito na Lei e para a forma como o lemos, concorda, nada acrescentando ao que a Lei estipula. E sentencia: “Respondeste bem. Faz isso e viverás.” (orthôs apekríthês. toûto poíei kaì zêsêi)

A dúvida do questionante vai mais fundo: “E quem é o meu próximo?” Questão pertinente no contexto epocal, aliás como hoje. Na época de Jesus, os mestres de Israel discutiam sobre quem era o próximo. Havia opiniões mais abrangentes e opiniões mais particularistas e exclusivistas; mas era consensual excluir da categoria “próximo” os inimigos: de acordo com a Lei, o “próximo” era apenas o membro do Povo de Deus (cf Ex 20,16-17; 21,14.18.35; Lv 19,11.13.15-18). E, entre os inimigos dos judeus, estavam os samaritanos como proscritos.  

Judeus e samaritanos eram dois grupos separados por vicissitudes históricas e cujas relações eram, no tempo de Jesus, muito conflituosas. Cada grupo se sentia superior ao outro.

Historicamente, a divisão começou quando a Samaria foi, em 721 a.C., tomada pelos assírios e foi deportada cerca de 4% da sua população, vindo-se a instalar ali colonos assírios que se mesclaram com a população local. Assim, para os judeus, os habitantes da Samaria começaram a paganizar-se (cf 2 Rs 17,29). E a relação deteriorou-se ainda mais quando, após o regresso do exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf Esd 4,1-5) para a reconstrução do templo de Jerusalém (ano 437 a.C.) e denunciaram os casamentos mistos, pelo que tiveram de enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (cf Ne 3,33-4,17). No ano de 333 a.C., novo elemento de separação aflorou: os samaritanos construíram um templo no monte Garizim, que foi destruído, em 128 a.C., por João Hircano. Mais tarde, as picardias continuaram: a mais famosa ocorreu já na época de Cristo (alguns anos após o seu nascimento), quando os samaritanos profanaram com ossos o templo de Jerusalém.

Enfim, os judeus desprezavam os samaritanos por, supostamente, serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé javista; e os samaritanos pagavam aos judeus com desprezo semelhante.

Jesus, porém, tinha uma ótica diferente da dos “fazedores de opinião” de Israel. E é para explicar o seu modo de ver que Jesus conta a “parábola do bom samaritano”.

A parábola situa-nos na estrada de cerca de 30 quilómetros entre Jerusalém e o oásis de Jericó, estrada perigosa, sempre infestada de bandos armados. Ora “um homem” não identificado (ánthrôpós tis) – não se sabe quem é, de que raça é, qual a sua religião, mas que é “um homem”, embora, pelo contexto, se depreenda que é judeu – foi assaltado pelos bandidos e deixado caído na berma da estrada. Trata-se, pois (o que é preponderante), de um homem ferido, meio-morto, abandonado e necessitado de ajuda.

Pela estrada passaram um sacerdote (conhecia a Lei e exercia funções litúrgicas no templo) e um levita (também exercia funções litúrgicas no templo). Ambos viram, mas passaram adiante. Impediu-os de parar o medo de enfrentar a mesma sorte, as preocupações com a pureza legal (que impedia contactar com um cadáver), a pressa pela urgência do serviço do culto ou a indiferença ante o sofrimento alheio.

Disse o Papa Francisco, neste dia 10 de julho, perante a multidão reunida na Praça de São Pedro, que “é importante conhecer a Deus, prestar-Lhe culto, mas acima de tudo, é importante colocar em prática o que se aprende “seguindo as pegadas de Cristo”, como o samaritano, pois aprende-se “a ver e a sentir compaixão”. E, quando damos esmola, se não olhamos nos olhos a pessoa que ajudamos, se não tocamos a sua miséria, então aquela esmola é para nossa própria satisfação. Apesar dos seus conhecimentos religiosos, o sacerdote e o levita não têm qualquer sentimento de misericórdia por aquele homem. Sabem tudo sobre Deus, lidam diariamente com Ele, mas, afinal, não sabem nada de Deus, pois não sabem nada de amor. A sua religião é oca, de ritos estéreis, de gestos vazios e sem sentido, de cerimónias faustosas e solenes, mas não tem nada a ver com o coração. E hoje isso também acontece: temos pressa para celebrar o culto e não olhamos a miséria com que nos deparamos no caminho; somos acossados pelo fino puritanismo, que não nos deixa sujar as mãos ou os pés na miséria humana; somos vergados pela indiferença lodosa, que não nos permite descer ao mundo das periferias existenciais…     

Mas pela estrada passou, finalmente, um samaritano (Samarítês dé tis), um dos que a religião tradicional de Israel considerava um inimigo, um infiel, longe da salvação e do amor de Deus… E foi ele quem viu e, consequente com o ver, parou, sem medo de correr riscos ou de adiar os seus esquemas e interesses. Cuidou do ferido e salvou-o. Apesar de ser herege, excomungado, mostra ser alguém atento ao irmão necessitado, com o coração cheio de amor, cheio de Deus.

Jesus, a concluir a parábola, perguntou ao doutor da Lei qual dos três era o próximo do homem ferido. E a resposta foi pronta: “O que teve compaixão dele!” (ho poiêsas tò éleos met’autoû). Assim, ficamos a saber que, para amarmos o próximo, temos de nos fazer próximos de quem sofre. E o modelo deste próximo, ou seja, do bom samaritano é Jesus, cuja compaixão atitudinal e comportamental se projeta na figura do samaritano da parábola, tal como o homem ferido que precisa de nós é o próprio Jesus, cujo coração palpita no homem que sofre. Por isso, Jesus termina sentenciando ao doutor da Lei: “Então vai e faz o mesmo” (poreúou kaì sy poíei homoíôs).

Na verdade, a religião passa pelo amor a Deus, traduzido em gestos concretos de amor pelo irmão – por todo o irmão, sem qualquer exceção. E, se a questão inicial era “o que fazer para obter a vida eterna por herança”, a conclusão é óbvia: para alcançar a vida eterna é preciso amar a Deus e amar o próximo. E o “próximo” é qualquer um que necessite de nós, carecendo de que nos tornemos seu próximo, seja amigo ou inimigo, seja conhecido ou desconhecido, seja da mesma raça ou doutra raça. O “próximo” é qualquer irmão caído nos caminhos da vida, que necessita, para se levantar, de ajuda e de amor.

Neste gesto samaritano, a Igreja de todos os tempos reconhece o aspeto fundamental da sua missão: a de levantar todos os homens e mulheres caídos nas sendas da vida. Já no século XVI, no “Auto da Alma”, Gil Vicente figurava a Igreja como a estalajadeira do homem peregrino, a quem servia as iguarias que alimentam e fortificam o homem no seu peregrinar, às vezes, bem penoso, mas que se quer jovial, prazenteiro e jubiloso.

2022.07.10 – Louro de Carvalho

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