No
início do XXV Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP),
o primeiro-ministro disse que o percurso de descentralização terá de ser
avaliado nos próximos anos e “dar a voz ao povo” em 2024, o que mereceu a
anuência da liderança, de então, do Partido Social Democrata (PSD) e a que o Presidente
da República aderiu em tese. Entretanto, com o recente congresso do PSD, a nova
liderança descobriu que seria prematuro o debate sobre a regionalização em 2024.
Com efeito, Luís Montenegro deixou claro
que fazê-lo seria “uma irresponsabilidade, uma precipitação e um erro” e afastou
a hipótese de o debate ser feito na atual legislatura.
Por isso, o
Presidente da República foi tão ágil a vincar, aquando da sua recente viagem ao
Brasil, que seria “muito difícil” o processo avançar “num futuro próximo”,
sublinhando que “o consenso é muito importante” nesta matéria. Marcelo sabe do
que fala, pois era líder do PSD a quando da revisão constitucional de 1997 –
prévia ao referendo de 1998 –, em que se estabeleceram as regras para o
referendo e para a criação de regiões administrativas. Na verdade, para não
haver regionalização basta que o PSD e o Presidente da República não estejam
disponíveis para levar a cabo o referendo imposto por aquela revisão constitucional.
E o Chefe de Estado logo frisou que, “não havendo regionalização, tem que se
apostar na descentralização, que é um processo que está em curso e no qual o
PSD é muito importante, dado o peso pelo número de autarcas”.
Segundo Paulo
Otero, qualquer consulta popular sobre o tema tem de ser precedida pela
aprovação de uma lei-quadro que, em alguns aspetos, exige a aprovação por dois
terços dos deputados na Assembleia da República (AR). Diz o constitucionalista
que o regime constitucional para o referendo “é triplamente complicado”, mas já
é difícil mesmo antes da consulta popular, pois “tem de haver um modelo em
concreto de regiões, ou seja, tem de haver legislação aprovada na Assembleia da
República”. E nalguns pontos, essa lei-quadro exige uma maioria favorável de
dois terços dos deputados. Com efeito, o art.º 255.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) estipula que “as regiões administrativas são criadas
simultaneamente, por lei, a qual define os respetivos poderes, a composição, a
competência e o funcionamento dos seus órgãos, podendo estabelecer
diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma”. A questão dos dois
terços coloca-se em relação ao órgão executivo colegial da região, que é a
junta regional (cf. CRP, art.º 261.º),
a que se aplica a exigência da maioria qualificada prevista para os órgãos
colegiais das autarquias (cf. CRP,
art.º 168.º, n.º 6; art.º 239.º, n.º 3).
A
instituição em concreto das regiões está constitucionalmente condicionada a
essa lei-quadro e a leis de instituição de cada região em concreto, a que se
junta um referendo nacional “com voto favorável expresso pela maioria dos
eleitores”. E a decisão da convocação do referendo compete ao Presidente da
República, mediante proposta da AR.
E, quando se
chega à fase de referendo, a Constituição complica a criação de regiões porque,
como explica Paulo Otero, exige que se façam, pelo menos, duas perguntas – uma
sobre o modelo de regionalização em concreto (a tal lei-quadro previamente
aprovada) e outra sobre a região do eleitor em concreto (de acordo com o mapa
proposto) – e que haja a aprovação de mais de metade dos eleitores para que se
torne vinculativo (cf. CRP, art.º
115.º).
Por seu turno,
o constitucionalista Vital Moreira esclarece que a
lei-quadro da regionalização (a Lei n.º 56/91, de 13 de agosto) – que existe desde 1991 (aprovada na AR
com maioria absoluta do PSD) e não foi revogada nem caducou com o referendo de
1998 – só precisa de maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções.
O que precisaria de maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que
superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, seria
apenas o modelo de designação do
órgão executivo das autarquias regionais, nos termos resultantes da
revisão constitucional de 1997. Todavia, uma disposição transitória dessa mesma
revisão (art.º 298.º, hoje não existente) estabelece explicitamente que, “até à entrada em vigor da lei prevista no
n.º 3 do artigo 239.º, os órgãos das autarquias locais são constituídos e
funcionam nos termos de legislação correspondente ao texto da Constituição na redação
que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro”, o
que salvaguarda o regime estabelecido para as regiões na lei-quadro de 1991.
Por conseguinte, só se se pretendesse alterar esse regime (e não se vê porquê)
é que seria necessária a predita maioria de dois terços.
Por isso, Vital Moreira conclui que não é por motivos de ordem jurídica,
mas de ordem política, que o referendo sobre a regionalização pode ter sido
inviabilizado pelo novo líder do maior partido da oposição, com a indisfarçável
anuência do Presidente da República, que instou ao referendo em 1997, por
representar uma significativa fatia dos portugueses avessos à regionalização.
Porém, ao antigo líder do PSD, que agora é Chefe
de Estado, incumbe zelar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento
das instituições da República (cf. CRP,
art.º 120.º), pelo que não pode deixar-se tomar por nenhum fundamentalismo
político-doutrinário contra uma instituição prevista na Constituição,
tornando-se cúmplice da inobservância continuada desta.
O preceito da criação de regiões administrativas no Continente está inscrito
na Constituição desde 1976, como autarquias supramunicipais. Porém, a lei de
revisão, Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, armadilhou o processo,
embora não tanto como se faz crer. Assim, não se impõe uma nova lei-quadro, mas
a aprovação da lei de instituição de cada uma das regiões, em consonância com a
lei-quadro, e o referendo. E basta que a maioria dos cidadãos eleitores
participantes na votação responda negativamente à aplicação da lei-quadro para
não terem efeito as respostas às perguntas formuladas para a instituição de cada
região (cf. CRP, art.º 256.º). Por outro
lado, o art.º 255.º da CRP estabelece
a simultaneidade das regiões administrativas, bastando que uma perigue para
tudo ir ao charco.
Entretanto, com vista à aproximação paulatina a um processo de
regionalização, melhor porque está praticamente impossível pelo armadilhamento
constitucional, atiram-nos para os olhos com inconsistente descentralização,
sem que o poder central perca algo da sua influência, embora encontre motivos para
a sua desresponsabilização quanto aos temas que interessam ao país.
Procedeu-se ao simulacro de eleição para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento
Regional (CCDR): a eleição dos presidentes foi obra dos autarcas, não dos cidadãos
eleitores e as candidaturas foram acertadas ou distribuídas pelos dois maiores partidos;
um dos vice-presidentes foi eleito pelos autarcas, mas o governo pode destituí-lo;
o governo nomeou o outro vice-presidente; e apenas se elegeu um executivo em
cada CCDR, não uma assembleia deliberativa, que não existe e seria fulcral num importante
escalão do poder democrático.
Entretanto, a Lei-quadro da
transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades
intermunicipais (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) não impõe aceitação simultânea das competências por
todos ou municípios. Tanto assim é que muitos municípios já aceitaram a
transferências de algumas competências, nomeadamente em educação, ação social e
saúde, mas outros, que são muitos, ainda não celebraram o respetivo protocolo
com a administração central.
Veio a
terreiro a polémica sobre a exiguidade do diploma financeiro. Na verdade, quem
tem dinheiro manda e quem quer mandar precisa de dinheiro. Uma das grandes
autarquias até decidiu autoexcluir-se da ANMP. E esta conseguiu um acordo com o
governo de forma que o envelope financeiro para a educação foi significativamente
reforçado e a verba para as refeições escolares foi bastante aumentada. Por outro
lado, ao nível da saúde, as autarquias podem controlar os horários de funcionamento
dos centros de saúde, o que é irrisório.
Os autarcas conseguiram
que as verbas para a manutenção das escolas fossem aumentadas e que o governo
se encarregasse da requalificação das escolas – as que necessitam de
intervenção muito urgente, urgente e prioritária. Mas querem mais: maior
capacidade de intervir na saúde, na segurança social, na cultura e na proteção civil.
As autarquias
debatem-se com problemas de fundo: como não têm meios próprios (pessoal,
equipamentos e apetrechos), adjudicam a privados obras e serviços, os quais
fazem a pressão dos preços, aproveitando-se da flexibilidade da gestão autárquica;
a maior parte dos municípios não tem amplitude para a detenção de unidades de saúde
(hospitais, centros de saúde e unidades de saúde familiares), como não tem
estabelecimentos públicos de ensino superior (alguns nem têm estabelecimentos
de ensino secundário); a área geográfica dos centros hospitalares e dos
agrupamentos dos centros de saúde nem sempre coincidem com a área do município
nem com a de área metropolitana ou a da comunidade intermunicipal; e não fica
perfeitamente definida a fronteira entre as competências transferidas para os municípios
e as transferidas para as referidas estruturas supramunicipais, a menos que os autarcas
deixem o seu espírito de capelinha e decidam entender-se e trabalhar em rede.
Por isso, a
questão levanta-se pertinente: Qual é a intervenção que têm os municípios na educação
e na saúde as áreas mais sensíveis em que foram transferidas competências?
Por fim,
torna-se visível uma questão de desigualdade no tratamento de funcionários da administração
pública. Os funcionários da administração central não estão abrangidos por
qualquer cobertura de seguro contra acidentes de trabalho. Por eles, a entidade
empregadora não paga um prémio de seguro obrigatório. Em caso de acidente em
trabalho, dantes designado por acidente em serviço, os fundos ministeriais ou equivalente
custeiam as respetivas despesas.
Porque os orçamentos
municipais nem sempre são largos, o art.º 45.º do regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no
âmbito da Administração Pública, aprovado pelo Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de
novembro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 19/2021, de 4 de
agosto, estabelece que, “os serviços e organismos não devem, em princípio,
transferir a responsabilidade pela reparação dos acidentes em serviço prevista
neste diploma para entidades seguradora” (n.º 1), mas “os serviços e
organismos da administração local podem transferir a responsabilidade por
acidentes em serviço prevista neste diploma para entidades seguradoras”
(n.º 3). Assim, impendentemente das vantagens ou desvantagens de um ou de outro
recurso, ressalta que os funcionários da administração pública e os das autarquias
não têm o mesmo apoio à vida.
Porém, os autarcas, com a transferência de
funcionários da administração central para as autarquias no âmbito da educação e
da saúde, verificaram que tais funcionários não estão abrangidos pelo regime normal
dos seguros conta acidentes de trabalho e, como não querem arcar com despesas compensatórias
futuras, levantaram a voz sobre quem paga os respetivos prémios de seguro. O mesmo
se diga da comparticipação da entidade empregadora sobre a ADSE (além da quotização
mensal de 3,5% que o funcionário desconta sobre o seu vencimento, a entidade
empregadora, que não seja a administração central paga uma verba por cada
funcionário). Ora, se a entidade empregadora passou a ser a autarquia, devia
ser esta a pagar. Mas não. O Estado paga!
Acontece como aconteceu com o Novo Banco. O
Estado vendeu, mas ficou com os encargos sobre os riscos, mesmo da má gestão;
agora, o governo transfere competências para os municípios, mas paga as
despesas problemáticas. A sério, ninguém quer as competências que deem encargos,
apenas se quer poder e dinheiro. E a regionalização fica remetida para as
calendas gregas!
A opção regionalista é discutível, mas faça-se. Modifique-se
a CRP para não ou sim, simples.
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