sábado, 23 de julho de 2022

Descentralização aos soluços em nome da regionalização que não se faz

  

No início do XXV Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), o primeiro-ministro disse que o percurso de descentralização terá de ser avaliado nos próximos anos e “dar a voz ao povo” em 2024, o que mereceu a anuência da liderança, de então, do Partido Social Democrata (PSD) e a que o Presidente da República aderiu em tese. Entretanto, com o recente congresso do PSD, a nova liderança descobriu que seria prematuro o debate sobre a regionalização em 2024. Com efeito, Luís Montenegro deixou claro que fazê-lo seria “uma irresponsabilidade, uma precipitação e um erro” e afastou a hipótese de o debate ser feito na atual legislatura.

Por isso, o Presidente da República foi tão ágil a vincar, aquando da sua recente viagem ao Brasil, que seria “muito difícil” o processo avançar “num futuro próximo”, sublinhando que “o consenso é muito importante” nesta matéria. Marcelo sabe do que fala, pois era líder do PSD a quando da revisão constitucional de 1997 – prévia ao referendo de 1998 –, em que se estabeleceram as regras para o referendo e para a criação de regiões administrativas. Na verdade, para não haver regionalização basta que o PSD e o Presidente da República não estejam disponíveis para levar a cabo o referendo imposto por aquela revisão constitucional. E o Chefe de Estado logo frisou que, “não havendo regionalização, tem que se apostar na descentralização, que é um processo que está em curso e no qual o PSD é muito importante, dado o peso pelo número de autarcas”.

Segundo Paulo Otero, qualquer consulta popular sobre o tema tem de ser precedida pela aprovação de uma lei-quadro que, em alguns aspetos, exige a aprovação por dois terços dos deputados na Assembleia da República (AR). Diz o constitucionalista que o regime constitucional para o referendo “é triplamente complicado”, mas já é difícil mesmo antes da consulta popular, pois “tem de haver um modelo em concreto de regiões, ou seja, tem de haver legislação aprovada na Assembleia da República”. E nalguns pontos, essa lei-quadro exige uma maioria favorável de dois terços dos deputados. Com efeito, o art.º 255.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) estipula que “as regiões administrativas são criadas simultaneamente, por lei, a qual define os respetivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos, podendo estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma”. A questão dos dois terços coloca-se em relação ao órgão executivo colegial da região, que é a junta regional (cf. CRP, art.º 261.º), a que se aplica a exigência da maioria qualificada prevista para os órgãos colegiais das autarquias (cf. CRP, art.º 168.º, n.º 6; art.º 239.º, n.º 3).

A instituição em concreto das regiões está constitucionalmente condicionada a essa lei-quadro e a leis de instituição de cada região em concreto, a que se junta um referendo nacional “com voto favorável expresso pela maioria dos eleitores”. E a decisão da convocação do referendo compete ao Presidente da República, mediante proposta da AR.

E, quando se chega à fase de referendo, a Constituição complica a criação de regiões porque, como explica Paulo Otero, exige que se façam, pelo menos, duas perguntas – uma sobre o modelo de regionalização em concreto (a tal lei-quadro previamente aprovada) e outra sobre a região do eleitor em concreto (de acordo com o mapa proposto) – e que haja a aprovação de mais de metade dos eleitores para que se torne vinculativo (cf. CRP, art.º 115.º).

Por seu turno, o constitucionalista Vital Moreira esclarece que a lei-quadro da regionalização (a Lei n.º 56/91, de 13 de agosto) – que existe desde 1991 (aprovada na AR com maioria absoluta do PSD) e não foi revogada nem caducou com o referendo de 1998 – só precisa de maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções. O que precisaria de maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, seria apenas o modelo de designação do órgão executivo das autarquias regionais, nos termos resultantes da revisão constitucional de 1997. Todavia, uma disposição transitória dessa mesma revisão (art.º 298.º, hoje não existente) estabelece explicitamente que, “até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 3 do artigo 239.º, os órgãos das autarquias locais são constituídos e funcionam nos termos de legislação correspondente ao texto da Constituição na redação que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro”, o que salvaguarda o regime estabelecido para as regiões na lei-quadro de 1991. Por conseguinte, só se se pretendesse alterar esse regime (e não se vê porquê) é que seria necessária a predita maioria de dois terços.

Por isso, Vital Moreira conclui que não é por motivos de ordem jurídica, mas de ordem política, que o referendo sobre a regionalização pode ter sido inviabilizado pelo novo líder do maior partido da oposição, com a indisfarçável anuência do Presidente da República, que instou ao referendo em 1997, por representar uma significativa fatia dos portugueses avessos à regionalização.     

Porém, ao antigo líder do PSD, que agora é Chefe de Estado, incumbe zelar pelo cumprimento da Constituição e pelo regular funcionamento das instituições da República (cf. CRP, art.º 120.º), pelo que não pode deixar-se tomar por nenhum fundamentalismo político-doutrinário contra uma instituição prevista na Constituição, tornando-se cúmplice da inobservância continuada desta.

O preceito da criação de regiões administrativas no Continente está inscrito na Constituição desde 1976, como autarquias supramunicipais. Porém, a lei de revisão, Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, armadilhou o processo, embora não tanto como se faz crer. Assim, não se impõe uma nova lei-quadro, mas a aprovação da lei de instituição de cada uma das regiões, em consonância com a lei-quadro, e o referendo. E basta que a maioria dos cidadãos eleitores participantes na votação responda negativamente à aplicação da lei-quadro para não terem efeito as respostas às perguntas formuladas para a instituição de cada região (cf. CRP, art.º 256.º). Por outro lado, o art.º 255.º da CRP estabelece a simultaneidade das regiões administrativas, bastando que uma perigue para tudo ir ao charco.

Entretanto, com vista à aproximação paulatina a um processo de regionalização, melhor porque está praticamente impossível pelo armadilhamento constitucional, atiram-nos para os olhos com inconsistente descentralização, sem que o poder central perca algo da sua influência, embora encontre motivos para a sua desresponsabilização quanto aos temas que interessam ao país.

Procedeu-se ao simulacro de eleição para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR): a eleição dos presidentes foi obra dos autarcas, não dos cidadãos eleitores e as candidaturas foram acertadas ou distribuídas pelos dois maiores partidos; um dos vice-presidentes foi eleito pelos autarcas, mas o governo pode destituí-lo; o governo nomeou o outro vice-presidente; e apenas se elegeu um executivo em cada CCDR, não uma assembleia deliberativa, que não existe e seria fulcral num importante escalão do poder democrático.

Entretanto, a Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto) não impõe aceitação simultânea das competências por todos ou municípios. Tanto assim é que muitos municípios já aceitaram a transferências de algumas competências, nomeadamente em educação, ação social e saúde, mas outros, que são muitos, ainda não celebraram o respetivo protocolo com a administração central.

Veio a terreiro a polémica sobre a exiguidade do diploma financeiro. Na verdade, quem tem dinheiro manda e quem quer mandar precisa de dinheiro. Uma das grandes autarquias até decidiu autoexcluir-se da ANMP. E esta conseguiu um acordo com o governo de forma que o envelope financeiro para a educação foi significativamente reforçado e a verba para as refeições escolares foi bastante aumentada. Por outro lado, ao nível da saúde, as autarquias podem controlar os horários de funcionamento dos centros de saúde, o que é irrisório.

Os autarcas conseguiram que as verbas para a manutenção das escolas fossem aumentadas e que o governo se encarregasse da requalificação das escolas – as que necessitam de intervenção muito urgente, urgente e prioritária. Mas querem mais: maior capacidade de intervir na saúde, na segurança social, na cultura e na proteção civil.  

As autarquias debatem-se com problemas de fundo: como não têm meios próprios (pessoal, equipamentos e apetrechos), adjudicam a privados obras e serviços, os quais fazem a pressão dos preços, aproveitando-se da flexibilidade da gestão autárquica; a maior parte dos municípios não tem amplitude para a detenção de unidades de saúde (hospitais, centros de saúde e unidades de saúde familiares), como não tem estabelecimentos públicos de ensino superior (alguns nem têm estabelecimentos de ensino secundário); a área geográfica dos centros hospitalares e dos agrupamentos dos centros de saúde nem sempre coincidem com a área do município nem com a de área metropolitana ou a da comunidade intermunicipal; e não fica perfeitamente definida a fronteira entre as competências transferidas para os municípios e as transferidas para as referidas estruturas supramunicipais, a menos que os autarcas deixem o seu espírito de capelinha e decidam entender-se e trabalhar em rede.

Por isso, a questão levanta-se pertinente: Qual é a intervenção que têm os municípios na educação e na saúde as áreas mais sensíveis em que foram transferidas competências?

Por fim, torna-se visível uma questão de desigualdade no tratamento de funcionários da administração pública. Os funcionários da administração central não estão abrangidos por qualquer cobertura de seguro contra acidentes de trabalho. Por eles, a entidade empregadora não paga um prémio de seguro obrigatório. Em caso de acidente em trabalho, dantes designado por acidente em serviço, os fundos ministeriais ou equivalente custeiam as respetivas despesas.

Porque os orçamentos municipais nem sempre são largos, o art.º 45.º do regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, aprovado pelo Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 19/2021, de 4 de agosto, estabelece que, “os serviços e organismos não devem, em princípio, transferir a responsabilidade pela reparação dos acidentes em serviço prevista neste diploma para entidades seguradora” (n.º 1), mas “os serviços e organismos da administração local podem transferir a responsabilidade por acidentes em serviço prevista neste diploma para entidades seguradoras” (n.º 3). Assim, impendentemente das vantagens ou desvantagens de um ou de outro recurso, ressalta que os funcionários da administração pública e os das autarquias não têm o mesmo apoio à vida.

Porém, os autarcas, com a transferência de funcionários da administração central para as autarquias no âmbito da educação e da saúde, verificaram que tais funcionários não estão abrangidos pelo regime normal dos seguros conta acidentes de trabalho e, como não querem arcar com despesas compensatórias futuras, levantaram a voz sobre quem paga os respetivos prémios de seguro. O mesmo se diga da comparticipação da entidade empregadora sobre a ADSE (além da quotização mensal de 3,5% que o funcionário desconta sobre o seu vencimento, a entidade empregadora, que não seja a administração central paga uma verba por cada funcionário). Ora, se a entidade empregadora passou a ser a autarquia, devia ser esta a pagar. Mas não. O Estado paga!

Acontece como aconteceu com o Novo Banco. O Estado vendeu, mas ficou com os encargos sobre os riscos, mesmo da má gestão; agora, o governo transfere competências para os municípios, mas paga as despesas problemáticas. A sério, ninguém quer as competências que deem encargos, apenas se quer poder e dinheiro. E a regionalização fica remetida para as calendas gregas!

A opção regionalista é discutível, mas faça-se. Modifique-se a CRP para não ou sim, simples.  

2022.07.23 – Louro de Carvalho 

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