segunda-feira, 18 de julho de 2022

Martírio de Inácio de Azevedo e companheiros (um deles de Vila da Feira)

 

 

Ter-se-ia celebrado, a 17 de julho, se não fosse domingo, a memória litúrgica do Beato Inácio de Azevedo e 39 companheiros, mártires, também conhecidos por “Mártires do Brasil”, mas que, nas Canárias, são chamados de mártires de Tazacorte, cidade onde celebraram a sua última missa em terra firme, antes de embarcarem pela última vez.

Na verdade, a 15 de julho de 1570, o jesuíta português Inácio de Azevedo, 38 companheiros (30 portugueses e oito espanhóis) e o candidato à Companhia Juan de San Juan, sobrinho do capitão da nau, foram “distinguidos com a Coroa do Martírio” nos mares das Ilhas Canárias, em frente à ilha de Palma, às mãos de corsários comandados pelo calvinista francês Jacques Soria, quando rumavam para a Missão do Brasil. E, no dia 16, foi martirizado o irmão jesuíta Simão Costa.

O breve “Dum Indefese”, de 1571, de São Pio V, enaltece este martírio voluntário, Bento XIV, por bula de 21 de setembro de 1742, reconhece o martírio dos religiosos (dois padres, um diácono, 24 estudantes e 13 irmãos) e o Beato Pio IX procede à beatificação a 11 de maio de 1854.

A expedição comandada por Inácio de Azevedo foi a expedição missionária mais numerosa que partiu de Lisboa para as missões extraeuropeias e o martírio coletivo mais numeroso de jesuítas na Época Moderna. O mesmo episódio teve importante significado hagiográfico, pois reunia simbolicamente a Europa dividida pelas lutas religiosas e as missões extraeuropeias. A importância deste episódio deriva, ademais, do facto de estar ligado à difusão do culto da Madona di San Luca, um dos principais cultos jesuítas na Época Moderna.

Inácio de Azevedo d’Athayde Abreu e Malafaya nasceu no Porto, em 1526. Aos 23 anos, já tinha entrado na Companhia de Jesus ocupando vários serviços. Era ardoroso pelas missões além-fronteiras. No retorno do Brasil, aonde o Superior Geral, Francisco de Borja, o enviara como visitador, por “confiar muito na sua integridade, prudência e conhecimento do Instituto”, testemunhou a necessidade de mais missionários. Saíram, por isso, três naus missionárias. Numa delas estavam Inácio de Azevedo e os 39 companheiros. A nau foi intercetada por cinco navios de inimigos da fé católica que queriam a morte de todos. Por amor pela Igreja, aceitou o martírio, exortou e consolou os seus filhos espirituais. Foi morto e lançado ao mar; e todos os outros foram martirizados (uns degolados, outros lançados ao mar), alcançando a coroa da glória na eternidade. 

Este martírio constituiu um episódio de grande atualidade devocional e iconográfica numa época caraterizada por inúmeros episódios de martírio cristão, em especial de jesuítas, dentro e fora da Europa. Porém, segundo alguns, este episódio, para lá do aspeto martirológico, assumiu um caráter político, pois, como observou Zulmira Coelho dos Santos, os esforços da Província do Brasil para fomentar o culto do seu “apóstolo”, o padre José de Anchieta, e a expedição de 1570 inserem-se numa estratégia, aliás sem grande êxito, de promoção da Missão do Brasil por alguns responsáveis jesuítas. O objetivo era contrabalançar o peso da Missão do Oriente e da figura de Francisco Xavier, sendo que, mais tarde, o Padre António Vieira, grande orador e diplomata, participa diretamente nesta causa, como é dedutível da sua estada em Roma entre 1669 e 1673 e do facto de a causa ter sido financiada pela Província do Brasil.

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Na lista dos martirizados, figura o estudante noviço Beato Marcos Caldeira, de Vila da Feira.

Inácio de Azevedo, sacerdote (Porto), Diogo de Andrade, sacerdote (Pedrógão Grande), Gonçalo Henriques, diácono (Porto), Afonso de Baena, irmão (Castela), Aleixo Delgado, estudante cantor (Elvas), Álvaro Mendes, estudante cantor (Elvas), Amaro Vaz, irmão ourives (Porto), André Gonçalves, estudante de Filosofia (Viana de Alvito), António Correia, estudante (Porto), António Fernandes, irmão carpinteiro (Montemor-o-Novo), António Soares, estudante (Alentejo), Bento de Castro, irmão mestre de noviços (Chacim), Brás Ribeiro, irmão noviço (Braga), Diogo Pires, estudante (Nisa), Domingos Fernandes, irmão (Vila Viçosa), Estêvão de Zuraire, irmão bordador (Biscaia), Fernão Sanchez, estudante (Castela-a-Velha), Francisco Pérez Godoy, estudante canonista (Salamanca ou Torrijos), Francisco Álvares, irmão (Covilhã), Francisco de Magalhães, estudante (Alcácer do Sal), Gaspar Álvares (Porto), Gregório Escrivano, irmão (Logronho), João Adaucto, estudante (sem proveniência referida), João de Mayorga, irmão pintor (Navarra), João de San Martín, estudante (Castela, junto a Ilhescas), João de Zafra, irmão (Castela), João Fernandes, estudante (Lisboa), João Fernandes, estudante (Braga), Luís Correia, estudante (Évora), Luís Rodrigues, estudante (Évora), Manuel Álvares, irmão (Évora), Manuel Fernandes, estudante (Celorico), Manuel Pacheco, estudante (Ceita), Manuel Rodrigues, estudante (Alcochete), Marcos Caldeira, estudante noviço (Vila da Feira, mas partiu de Évora), Nicolau Dinis, estudante noviço (Bragança), Pero de Fontoura, irmão noviço (Braga), Pero Nunes, estudante (Fronteira), Simão da Costa, irmão (Porto) e Simão Lopes, estudante (Ourém)

– Fontes: Domingos Maurício, SI, Beatos Inácio de Azevedo e 39 companheiros mártires, s/d; e Manuel Gonçalves da Costa, Inácio de Azevedo, o homem e sua época. Livraria Cruz, Braga, 1957.

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O culto destes  homens começou pouco depois do próprio evento. A carta de 17 de agosto de 1570, de Pedro Diaz (líder da segunda expedição de jesuítas mártires em 1571), que constitui o relato mais antigo deste martírio, foi traduzida para italiano e incluída na obra Nuovi Avisi publicada em Roma ainda em 1570. Entre os mais importantes e antigos devotos dos 40 mártires, encontrava-se o Superior Geral Francisco de Borja, que tinha contactado, em Roma, com Inácio de Azevedo. Segundo a hagiografia, o Geral tinha por hábito encomendar-se diariamente aos 40 mártires.

Os processos de beatificação destes 40 mártires começaram em 1628, em Coimbra, em conjunto com os processos de um segundo grupo de doze jesuítas igualmente martirizados nos mares das Canárias a caminho do Brasil no ano seguinte. Os processos foram, depois, limitados aos mártires de 1570, devido ao grande número de jesuítas martirizados. Em 1742, Bento XIV reconheceu o martírio dos 40 mártires de 1570. A sua beatificação data de 11 de maio de 1854. E decorrem os processos para a sua canonização, que se prevê seja uma canonização equipolente, ou seja, baseada na fama de santidade, neste caso por martírio, e pela generalização do seu culto entre o povo cristão.

 O culto destes mártires caraterizou-se, desde os seus primórdios, pelo seu caráter internacional. Uma das provas de facto apresentadas pelo postulador Cláudio Bouillaud em 1671 era “a pública voz e fama nunca negada ou colocada em causa” de que gozavam estes mártires não só nas Índias, como também em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Itália e, ainda, na Flandres. Tal veneração pública tinha sido referida por 19 pessoas durante as audições realizadas em Roma. Sobretudo o Decreto de Beatificação de 1854 refere a existência de seu especial culto e fama pública em Portugal, Brasil, Espanha e Itália.

Não sei dizer se, presentemente, há apreço cultual por cada um destes mártires nas localidades de sua proveniência. Lembro-me de que, há uns anos, o Padre João Caniço, SI, vice-postulador da causa da canonização, passou por Santa Maria da Feira a falar ao povo cristão destes mártires, enfatizando a inclusão do Beato Marcos Caldeira, desta localidade. No entanto, não percebi, talvez por distração minha, que de tal jornada tenha havido grande desenvolvimento entre os crentes. Mas nunca é tarde para honrar a memória dos que nos precederam na fé e no testemunho, sejam jesuítas ou não.   

2022.07.18 – Louro de Carvalho

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