domingo, 10 de julho de 2022

Que “também o respeitem”, e não que “também lhe respeitem”

 
Um velho professor sustentava que o homem culto é aquele que domina a sua língua nos domínios da teoria, da prática e da crítica.
Evidentemente falar ou escrever, correta e elegantemente, a língua materna implica o seu conhecimento teórico aprofundado, a partir do linguajar do povo e das elites eruditas e da leitura dos bons escritores, incluindo os bons poetas. E a visão crítica do que se vê e ouve, comparando a prática com a teoria, leva ao apuramento da prática, bem como pode levar à reformulação da teoria. Na verdade, temos de conjugar a gramática normativa com a gramática descritiva.  
Obviamente que me sensibiliza o erro ortográfico presente em tantos lugares de escrita em sítios expostos ao público. Consta que um cliente, ao sentar-se à mesa do restaurante, consultou a lista dos pratos em oferta na casa e, a instâncias do empregado, pediu “uma dose de erros ortográficos. E à resposta “Não temos disso!” redarguiu: “Então para que os colocaram na lista?”  
Por mim, recordo que, ao entrar numa clínica, apontei o dedo à ortografia da especialidade “obstectrícia” e sugeri a mudança para “obstetrícia”. A funcionária desculpou-se com o uso da antiga ortografia, mas eu retorqui no sentido de a nova ortografia não se ter metido com esta palavra. Com efeito, a palavra formou-se do nome latino feminino “obstetrix, icis” (a que se coloca diante da parturiente para receber a criança; a parteira), cognato do verbo “obstreticare” ou do depoente “obstreticari” (assistir aos partos; exercer a profissão de parteira). E, mais tarde, a direção emendou o erro sem qualquer dificuldade. 
Recordo que professoras do 1.º Ciclo do Ensino Básico escreviam “hortência” por “hortênsia”, para falar de um arbusto, quando o primeiro termo é utilizado para nome próprio feminino.
Quando, nos finais da década de 90 do século passado, o bispo de Viseu visitou pastoralmente a paróquia de Sequeiros, foi também recebido na Escola Básica de Ponte do Abade. E as crianças ostentavam um cartaz com a saudação “VEM VINDO, SENHOR BISPO À PONTE DO ABADE”. Como Sua Excelência chegou com quase duas horas de atraso, ao cumprimentá-lo, comentei: “Senhor Bispo, as crianças têm razão: o Senhor Bispo vem vindo, mas muito devagar”.
Recentemente, vi numa unidade de Alojamento Local (AL) escrita a recomendação: “Mantenha o silêncio neste espaço. Respeite os outros para que eles também lhe respeitem!”
Perante um erro de sintaxe, bem mais grave que o erro ortográfico – o qual, se não houver lesão de maior na estrutura histórica da palavra, até pode ser alterado por eventual reforma da ortografia – fico mais descontente com o tratamento que se dá à Madre Língua. Lembro-me de uma figura pública, um professor, que prometia a um assessor do ministro da tutela “direi-lhe” e “diremos-lhe”. Esqueceu-se da mesóclise ou tmese no futuro (dir-lhe-ei, dir-lhe-emos) e no condicional (dir-lhe-ia, dir-lhe-íamos) da conjugação pronominal de verbo, quando elemento estruturante da frase não obrigue à próclise (ex: “ninguém me dirá o que hei de fazer”). E vê-se tanta gente culta a dizer “houveram festas”, por “houve festas”; “hades” e “hadem”, por “hás de” e “hão de”; “fôsteis” e “cantásteis”, por “fostes” e “cantastes”. Mas o caso reportado em epígrafe faz-me rever a sintaxe de alguns verbos, como:    
O verbo “respeitar” tem regência consonante com o sentido em que é utilizado. Assim, com o significado de “ter respeito por”, o verbo é transitivo direto, pelo que não rege preposição: “É bem necessário respeitar o ambiente”. “Respeita os teus pais”. “Respeita-o”. E não: “respeita-lhe”. O pronome pessoal oblíquo átono “lhe” faz sempre de complemento indireto, como os pronomes pessoais oblíquos átonos “o”, “a”, “os”, “as” fazem sempre de complemento direto.
Porém, com o significado de “ser relativo a alguma coisa”, “dizer respeito a”, o verbo é transitivo indireto e rege a preposição “a”: “A questão do ambiente respeita a todos nós”. “Esta conta respeita às compras efetuadas há um mês”.
Os verbos “crer”, “pensar”, “acreditar”, “gostar”, “avisar”, etc. são transitivos indiretos ou diretos? De facto, algumas regências verbais trazem discussão e diferentes considerações. Inclusivamente, a norma de Portugal e a norma do Brasil têm, nalguns casos, regências diferentes.
Os verbos ora mencionados e outros podem ser transitivos indiretos e também diretos. O verbo “crer”, que é, usualmente, transitivo indireto (“creio em ti”), também pode ser transitivo direto (“não o creio”). Por exemplo, na frase “creio-o boa pessoa...”, equivale a “creio que ele é boa pessoa”. Outro exemplo de transitivo direto (usado em poesia): “penso-te...” (= “penso em ti”). E outro: “não o acredito capaz de tal ato” (= “não acredito que ele seja capaz de tal ato).
Na norma brasileira diz-se: “eles gostam-se” (= “eles gostam um do outro”).
Na frase “penso que tu me és útil é útil”, o verbo “pensar” é transitivo direto. E é incorreto dizer “penso eu de que” (disse-o figura pública do futebol, mas é dequeísmo), em vez de “penso que”.
Em Portugal, costuma-se dizer: “ele crê que tu o ajudaste”. Em casos similares, com verbos de caraterísticas idênticas, omite-se a preposição (por ex.: “ele pensa ir viver para Lisboa”).
Quanto ao verbo “gostar”, que habitualmente rege um grupo preposicional encabeçado pela preposição “de”, quando seleciona uma oração subordinada substantiva completiva, a omissão da preposição “de” é facultativa no uso de gostar, conforme apontam João A. Peres e Telmo Móia, em “Áreas Críticas da Língua Portuguesa” (Lisboa, Ed. Caminho, 1995, pág. 113): “Entre os verbos que mais favorecem a supressão conta-se “gostar”: ‘O Paulo gosta (de) que o elogiem’.”
Segundo Peres e Móia (op. cit.), a lógica da omissão encontra-se na estratégia de simplificação estrutural, pois, embora, a evolução da língua não se compadeça sempre com princípios e com a harmonia do sistema, é defensável o ponto de vista pelo qual, se um determinado predicado impõe o uso de preposição antes de argumentos realizados sob a forma de pronomes que pronominalizam frases (passem as incongruentes limitações da terminologia), de argumentos nominais e de argumentos oracionais infinitivos, não há razão estrutural para que essa preposição seja suprimida antes de argumentos oracionais finitos. A justificação para tal supressão é apenas a do uso, correspondendo à estratégia de simplificação de estrutura (o “queísmo”), que é uma lei operante nas línguas naturais. Contudo, omitindo-se a preposição “de”, o verbo gostar continua transitivo indireto, porque a preposição está latente. E, considerando que o verbo “gostar” tem complemento oracional com o verbo não finito, é fácil ver que a preposição persiste: “gostaria de ser aprovado”.
O verbo “preferir” é transitivo direto e indireto, portanto rege a preposição “a”. A regência verbal é determinante na construção correta de expressões formadas com o verbo “preferir”. Embora na língua coloquial se empregue o conector “do que” em lugar da preposição “a”, quando há relação de comparação, a regência adequada da língua culta exige a presença da preposição “a”. Exemplos: “O meu neto prefere o brinquedo do que o livro”. [Inadequado]. O meu neto prefere o brinquedo ao livro. [Adequado]. [complemento direto, “o brinquedo”; complemento indireto, “ao livro”]. “O infante preferiu marchar do que esperar pelo ataque”. [Inadequado]. “O infante preferiu marchar a esperar pelo ataque”. [Adequado] [complemento direto, “marchar”; complemento indireto: “a esperar”]. A razão do emprego inadequado do termo “do que” nesse tipo de construção deve-se ao processo de assimilação de expressões comparativas do tipo: “Prefiro mais ler do que escrever!” A palavra “mais”, neste caso, caiu em desuso, porém o segundo termo da comparação (“do que”) ainda permanece a gerar a confusão quanto à regência: o verbo preferir rege tão só a preposição “a”, não o conector “do que”.
O verbo “perdoar” é habitualmente transitivo direto e indireto (bitransitivo). Exemplos: “Perdoei-lhe a dívida”. “O confessor perdoou os pecados ao penitente”. “Dívida” e “pecados” fazem de complemento direto (de coisa) e “lhe” e “ao penitente” fazem de complemento indireto (de pessoa). Sem o complemento de coisa expresso, o verbo admite o complemento indireto ou direto. Assim, posso dizer: “Perdoei-lhe” (recomendável) ou “perdoei-o”.
Por fim, o verbo “informar” admite as seguintes regências:
1- Informar alguém de + grupo nominal: “Ele informou-a dos procedimentos a adotar”.
2- Informar alguém sobre, acerca de, a respeito de + grupo nominal: “Ele informou-a sobre (acerca de, a respeito de) as diversas hipóteses”.
3- Informar + oração completiva iniciada por “que”: “Ele informou que se ia embora”.
4- Informar alguém + oração completiva iniciada por “que”: “Informo-te que vou embora”. Ou informar alguém + oração completiva iniciada por “de que” (preferível, por estarem presentes dois complementos do verbo): “Informamos V. Ex.cia de que o requerimento não será deferido”.
5- Informar alguém + oração completiva iniciada por “se” (informar se): “Informaram-vos se de tarde há aulas?”
Em 3-, o verbo tem apenas complemento direto de coisa, ao passo que, nos outros casos, tem o complemento direto de pessoa e o oblíquo de coisa.
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Enfim, cada comunidade deve cuidar da língua e respeitar as diferenças das outras comunidades.

2022.07.10 – Louro de Carvalho

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