A perícopa evangélica proclamada, a 17 de julho, na liturgia
do XVI domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 10,38-42) fica obviamente
contaminada pelo trecho do Livro do Génesis (Gn 18,1-10a), também proclamado
então, com a marca da hospitalidade bíblica, de que o mundo atual anda um pouco
arredado por causa da insegurança (carestia de vida, guerras, terrorismo…) e de
uma boa dose de avareza e de egoísmo individual e grupal.
Na origem do trecho do Génesis proposto para aquela dominga,
provavelmente, está uma antiga “lenda cultual” que narrava como três figuras
divinas apareceram a um cananeu junto do carvalho sagrado de Mambré (perto de
Hebron), como o cananeu os acolhera na sua tenda e como fora recompensado com um
filho pelos deuses (Mambré era um santuário cananeu, já no terceiro milénio
a.C., muito antes de Abraão lá chegar). Como Abraão ali se fixou, foi-lhe
aplicada, mais tarde, a antiga lenda cananaica pelo hagiógrafo, na ótica da
economia salvífica do povo escolhido por Deus, ficando o ilustre patriarca a
figurar como o herói desse encontro com as figuras divinas. E, no século X a.C.
(reinado de Salomão), os javistas recuperaram a velha lenda com intuitos
catequéticos. Por isso, no estado atual do texto, a personagem central é Abraão,
que o catequista javista apresenta como modelo de vida e de fé aos israelitas
da época de Salomão.
Abraão está “sentado à entrada da sua tenda, na hora de maior
calor do dia”. De súpito, aparecem-lhe três homens que lhe querem falar. Abraão
convida-os a entrar, traz-lhes água para lavar os pés e improvisa um banquete
com pão recém-cozido, com um vitelo “tenro e bom” do rebanho, com manteiga e
leite. Durante a refeição, fica de pé junto dos visitantes, na atitude do
serviçal vigilante para que nada falte aos convidados.
No primeiro conjunto de tarefas, Abraão antecipa a figura
evangélica de Marta, pressurosa na dimensão hospitaleira; no segundo momento
atitudinal, antecipa a figura de Maria, na dimensão vigilante e de escuta. Sem
perder a vertente da hospitalidade, o venerável patriarca – modelo do homem
íntegro, humano, misericordioso, atento a quem passa e disposto a repartir com
ele, gratuitamente, o que possui de melhor – assume-se como discípulo de três
viajantes, a quem vai tratar, mais tarde, por “Meu Senhor”. Alguns estudiosos
veem, na figura dos três visitantes, uma alusão velada à Trindade divina na
unidade.
Terminada a refeição, a hospitalidade prazenteira de Abraão é
premiada pelo anúncio da próxima realização dos seus anseios mais profundos: a
vinda do filho, o herdeiro da casa, o continuador da sua descendência. O catequista
javista pretende dizer que Deus recompensa sempre a atitude de bondade, de
gratuitidade, de amor. E, complementarmente, apresenta a atitude do verdadeiro
crente face a Deus. Sem que fique expresso se Abraão tem consciência de que
está diante de Deus, transparece a serena submissão, o respeito, a confiança
total num futuro de Deus. Se Sara ri ante a “promessa”, Abraão conserva-se em
silêncio digno, sem qualquer dúvida. É a atitude que o crente israelita é convidado
a assumir diante do Deus que vem ao encontro do homem, que irrompendo
repentinamente na sua vida, aceitando entrar na sua tenda e sentar-Se à sua
mesa, constituindo-Se em comunidade e em comunhão com ele.
Paralelamente, o predito episódio evangélico situa-nos numa
aldeia, em casa de duas irmãs, Marta e Maria, que são, provavelmente, a Marta e
Maria, irmãs de Lázaro (Jo 11,1-40; 12,1-3. Se assim for, a ação passa-se em
Betânia, aldeia situada na encosta oriental do Monte das Oliveiras, a cerca de
três quilómetros de Jerusalém, no trilho do “caminho de Jerusalém”, durante o
qual Jesus vai revelando aos discípulos os desígnios do Pai e os vai preparando
para o testemunho do Reino.
O contexto é de banquete. Não se diz se há muitos ou poucos
convidados, mas que Marta anda atarefada “com muito serviço”, enquanto Maria, sentada
aos pés de Jesus, está a ouvi-Lo. Marta não se conforma com a situação e queixa-se
a Jesus pela indiferença da irmã. A resposta de Jesus constitui o centro do
relato e dá-nos o sentido da catequese que Lucas nos quer apresentar: a Palavra
de Jesus deve estar acima de qualquer outro interesse.
As duas irmãs são genuínas hospitaleiras. Todavia, ficamos a
saber que a excessiva ou exclusiva preocupação com a hospitalidade-tarefa pode
eclipsar a hospitalidade-escuta. E, sem a escuta, não há discipulado; sem
discipulado não há apostolado, porque não há homem de Deus.
Há, no entanto, uma diferença curiosa entre a postura
abraâmica e a postura marial. Abrão estava de pé, atitude do vigilante, para
que nada falte; Maria estava sentada “sentada aos pés de Jesus”, posição típica
do discípulo diante do mestre (cf. Lc 8,35; At 22,3). É uma situação
surpreendente, num contexto em que as mulheres tinham um estatuto de
subalternidade e viam limitados alguns direitos religiosos e sociais. Por isso,
nenhum “rabbi” se dignava aceitar uma mulher no grupo dos discípulos, que se
sentavam aos seus pés para escutar as suas lições. Porém, Lucas, para quem Jesus
veio libertar e salvar os que eram oprimidos e escravizados, nomeadamente as
mulheres, mostra que Jesus não faz qualquer discriminação: o facto decisivo
para ser discípulo é estar disposto a escutar a sua Palavra, outro modo de
hospedar, mas uma forma de aprender e de privar com o Mestre para a ação se
tornar sólida, robusta e credível.
Tem-se lido o episódio à luz da oposição entre ação e
contemplação. No entanto, Lucas não está a explicar que a vida contemplativa é
superior à vida ativa; está, apenas, a dizer que a escuta da Palavra de Jesus é
o mais importante para a vida do crente, pois é o ponto de partida da caminhada
da fé. Isto não quer dizer que “fazer coisas”, “servir os irmãos” não seja
importante, mas que tudo deve partir da escuta da Palavra, pois é a escuta da
Palavra que nos projeta para os outros e nos faz perceber o que Deus espera de
nós.
***
O trecho do Livro do Génesis (Gn 18,20-32), proclamado no
XVII domingo do Tempo Comum no Ano C (24 de julho), vem na sequência da
primeira leitura do domingo anterior. Tendo deixado a tenda de Abraão, as três
personagens divinas dirigem-se para a Sodoma, a fim de verificar “in loco” o
pecado dos habitantes da cidade. Abraão acompanhou os seus visitantes divinos
durante algum tempo, até ao lugar alto, a este de Hebron, de onde se avista
Sodoma, e dialoga com Deus, presente naquelas divinas figuras.
Deus prepara-se para iniciar a “investigação”, a fim de aquilatar
da culpabilidade (ou não) de Sodoma. E o autor javista insere a questão fundamental
que o inquieta: Deus castigará toda a comunidade ou por causa de um punhado de
justos Deus estará disposto a perdoar o castigo a uma multidão de culpados? É
revolucionária, no século X a.C., a ideia de que um pequeno grupo de justos
possa suscitar a salvação da cidade, pois, para os israelitas de então, todos
os membros da comunidade eram solidários no bem e no mal, de modo que, se
alguém falhasse, o castigo devia derramar-se sobre o grupo todo. Não obstante,
o catequista javista atreve-se a sugerir que talvez a “justiça” de uns tantos
seja, para Deus, mais importante do que o pecado da maioria.
O problema que Abraão procura resolver é, portanto, se aos olhos de Deus um
grupo de “justos” tem tal peso que, por amor deles, Deus esteja disposto a
suspender o castigo que pesa sobre toda a coletividade. Os números sucessivamente
avançados por Abraão, em forma descendente, de 50 a 10, no quadro do “regateio”
oriental, servem para relevar a misericórdia e a “justiça de Deus”: a descida
até aos dez “justos” e as sucessivas manifestações da vontade de Deus em
suspender o castigo mostram que, n’Ele, a misericórdia é maior do que vontade
de castigar.
Em todo o caso, sobressai, na forma como se desenvolve a
“conversa” entre Abraão e Deus: a ousadia de Abraão e a resposta complacente de
Deus. É um diálogo “face a face” em que Abraão se apresenta com humildade, pois
sente-se “pó e cinza” ante da omnipotência de Deus. É verdadeira oração, pois
os dois interlocutores dialogam: falam e escutam-se. E, à medida que Abraão
sente a benevolência de Deus, cresce na confiança, a ponto de chegar a ser
importuno na insistência e ousado no regateio. Lembrando a Deus os seus
compromissos, aparece como o intercessor, que consegue da misericórdia de Deus
que um número insignificante de justos tenha mais peso do que um número elevado
de culpados. Em certa medida, Abraão mostra-nos que é possível dialogar com
Deus em modo familiar, confiante, insistente, ousado.
O Evangelho desta XVII dominga (Lc 11,1-13) adestra-nos no
estilo de oração. Continuando no caminho para Jerusalém, o que prepara os
discípulos para se assumirem como testemunhas do Reino, a catequese que Jesus apresenta
aos discípulos é sobre a forma de dialogar com Deus.
Lucas, o evangelista da oração de Jesus, refere a oração do
Mestre no Batismo, antes da eleição dos Doze, antes do primeiro anúncio da
paixão, no contexto da transfiguração, após o regresso dos discípulos da
missão, na última ceia, no Getsémani, na cruz. A oração é o espaço de encontro
de Jesus com o Pai, o momento do discernimento do projeto do Pai.
O trecho desta dominga mostra-nos Jesus a orar ao Pai e a responder
aos discípulos, que Lhe pedem que os ensine a rezar. Não se trata de ensinar
uma fórmula invariável, que os discípulos devem repetir de cor, mas de propor
um “modelo”. De resto, a oração do Senhor presente em Lucas é diferente da
presente em Mateus (cf. Mt 6,9-13) – o que se explica por tradições litúrgicas
distintas. A versão de Mateus condiz com o meio judeo-cristão, enquanto a de
Lucas estará mais próxima da oração original. Qualquer uma pretende mostrar às
comunidades cristãs a atitude que se deve assumir no diálogo com Deus.
A oração dos discípulos deve ter a componente de
hospitalidade do homem em relação à escuta de Deus, em linha com a
hospitalidade de Deus. O estilo orante deve ser o do diálogo filial (do filho
com o Pai), devendo incidir na realização do plano do Pai, no advento do mundo
novo.
Deus já é tido, no Antigo Testamento, como o pai que manifesta
amor e solicitude pelo seu Povo. Porém, na boca de Jesus, a palavra “Pai”
referida a Deus não é usada em sentido simbólico, mas em sentido real: para
Jesus, Deus é “o Pai”. A linguagem com que Jesus Se dirige a Deus mostra isto:
a expressão “Pai” usada por Jesus traduz o original aramaico é “abba”, tomada
de modo familiar como as crianças chamavam o “papá”. Assim, Jesus manifesta a
intimidade, o amor, a comunhão de vida, que o ligam a Deus.
Os discípulos, chamando pai a Deus, comprometem-se a acolher
as propostas de Jesus, entram na relação íntima com Deus, que os torna “filhos
de Deus”. E, se todos O podem chamar pai, então reconhecem-se como irmãos,
quebram o individualismo e geram a comunidade.
Depois, vem a questão do tema do diálogo orante. Na ótica de
Jesus, o diálogo do crente com Deus deve abordar, sobretudo, o tema do advento
do Reino, do mundo novo que Deus nos oferece, o que vem na sequência da
“santificação do nome” do Pai, que exprime o desejo de que Deus Se mostre como
salvador diante de todos os povos e o reconhecimento, por parte dos homens, da justiça
e da bondade do plano de Deus. Por conseguinte, há de pedir-se o “pão de cada
dia”, no desejo de que Deus não cesse de nos alimentar com a sua vida; o “perdão
dos pecados”, para que a misericórdia de Deus não cesse de derramar-se sobre as
nossas infidelidades e atinja, através de nós, os irmãos que falharam; e o
afastamento da “tentação”, para que Deus não nos deixe seduzir pelo apelo das
felicidades efémeras e nos ajude a caminhar ao encontro da vida em plenitude.
Por fim, duas parábolas insistem na perseverança no diálogo
orante, não devendo enfatizar-se a insistência do “amigo importuno”, mas a ação
do amigo que satisfaz o pedido. Na verdade, Jesus pretende dizer que, se os
homens são capazes de escutar o apelo de um amigo importuno, ainda mais Deus
atenderá gratuitamente os que se Lhe dirigem. Por outro lado, insta à confiança
em Deus, que nos conhece e sabe do que precisamos, pelo que sempre derramará
sobre nós o Espírito, que nos leva enfrentar todas as adversidades, com a força
de Deus.
Em suma, discípulos hospitaleiros com a vertente da escuta e
da tarefa serão apóstolos genuínos!
2022.07.24
– Louro de Carvalho
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