As investigações
à atividade empresarial de Mário Ferreira repuseram na mesa da comunicação social
e da crítica política a alegação de as verbas do Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR) estarem capturadas por alguns grandes, mas poucos, grupos empresariais,
entre os quais se conta o do empresário em causa. A crítica é bifacetada: por
um lado, insiste em que há uma diminuta verba atribuível às empresas, sendo estas
as criadoras da riqueza, o que, em certa medida, é verdade; por outro lado,
vinca o facto de a magreza da verba atribuível às empresas estar ao serviço de
grandes grupos empresariais, ficando as pequenas e médias empresas a ver
navios.
Ora, o PRR,
ora em execução, é um programa de aplicação nacional, com um período de
execução até 2026, que visa “implementar um conjunto de reformas e
investimentos destinados a repor o crescimento económico sustentado, após a
pandemia, reforçando o objetivo de convergência com a Europa ao longo da
próxima década”. Tem a sua base na decisão do Conselho Europeu de criar o Next
Generation EU, “instrumento de mitigação do impacto económico e social da
crise, contribuindo para assegurar o crescimento sustentável de longo prazo e
responder aos desafios da dupla transição climática e digital”. E contém
o Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR) onde se enquadra o PRR, um
plano de investimentos para todos os portugueses, assente em três dimensões
estruturantes: resiliência, transição climática e transição digital.
O
governo sustenta que não é inteiramente verdade que as verbas não beneficiem as
empresas, uma vez que, por exemplo, as verbas que são atribuídas, sob
candidatura devidamente formulada, visada e aprovada, no âmbito dos diversos escalões
da administração pública e institutos públicos, beneficiarão as empresas que forem
opositoras aos concursos de obras públicas ou de prestação de serviços que tais
entidades têm de lançar para o cumprimento dos seus objetivos ou mesmo as empresas
que entrarem em contratação por ajuste direto com as ditas entidades, nos casos
em que a urgência o justifique. Mas é óbvio que, tratando-se de captação de
fundos comunitários, há sempre margem para a existência de problemas. Não é por
acaso que se anunciam “pipas de massa”, as quais se transformam exíguos barris por
falta de capacidade de execução física e financeira. Não obstante, os partidos
políticos que pertencem ao chamado arco da governação querem estar no poder
executivo aquando da captação de tais fundos.
Os
desmandos que se têm registado na aplicação de tais fundos resultam da má
avaliação das candidaturas, muitas delas com sobreorçamentação, da falta de fiscalização
e da não imposição de um razoável período de vigência do projeto financiado.
Habitualmente
quem se candidata ao desenvolvimento de projetos financiáveis pela União
Europeia, além das entidades públicas, são as grandes empresas. Com efeito, são
as únicas que têm capacidade de apresentar candidaturas devidamente estruturadas
e em tempo útil, têm disponibilidade de tesouraria – ou de recurso a empréstimo
bancário – para suportar o quinhão de comparticipação nacional, bem como as
despesas inerentes ao projeto que a entidade financiadora considere não
elegíveis. É certo que pequenas e médias empresas, bem como microempresas, têm
acedido a projetos cobertos por fundos comunitários. Lembro dois instrumentos implementados
em prol do pequeno mundo empresarial: o Regime de Incentivos às Microempresas (RIME)
e o Regime de Apoio à Consolidação Empresarial (RACE).
Como
referi, os desmandos resultaram, em muitos casos, de incorreta avaliação de candidaturas,
algumas com sobreorçamentação de rubricas (para evitar ou diminuir a
comparticipação da entidade candidata), por negligência, por cumplicidade ou na
luta contra o tempo. A má aplicação de verbas ou o seu desvio para fins
diferentes dos constantes da candidatura – por exemplo, no âmbito do parcelário
agrícola, no gasóleo agrícola ou na compra de viaturas todo o terreno, em vez
de tratores agrícolas e outras máquinas agrícolas – deveu-se a espertismo
saloio, não fiscalizado ou, mesmo, consentido. Houve casos que chegaram à barra
dos tribunais, mas sem provas inequívocas ou já sob prescrição. E vários projetos
mantiveram-se em execução durante o tempo mínimo obrigatório, por exemplo cinco
anos, o que é muito pouco. Estão neste caso muitos projetos no âmbito do RIME e
do RACE, empreendimentos de turismo rural, alojamento local ou equivalente,
etc. Prestaram serviço de fachada ou disfarçado (servindo, na realidade, para
serviço da família), insuficiente e até mau, só para justificar a captação das
verbas europeias.
Desta
vez, a aplicação eficaz e eficiente dos
recursos do PRR exige um modelo de governação que garanta elevado grau de coordenação entre
os diversos atores e que tenha em conta princípios fundamentais como simplificação, transparência e prestação de contas, participação, centralização da gestão e descentralização na execução, segregação de funções e orientação para resultados.
Procurando estreito
relacionamento com os executores da política, com os quais se contratualizará resultados físicos e
financeiros baseados em marcos e metas, o modelo de execução recorre a
entidades intermediárias, quando necessário.
Assim, o modelo
de governação tem quatro níveis de coordenação: Nível estratégico de
coordenação política,
assegurado pela Comissão
Interministerial do PRR, presidida pelo primeiro-ministro e composta
pelos membros do governo responsáveis pelas áreas da Economia e da Transição
Digital, dos Negócios Estrangeiros, da Presidência, das Finanças, do
Planeamento e do Ambiente e da Ação Climática; Nível de acompanhamento,
assegurado pela Comissão Nacional
de Acompanhamento (CNA), presidida por personalidade independente e com personalidades
de reconhecido mérito, e que integra um alargado conjunto de entidades do setor
empresarial, da ciência e conhecimento, da área social e cooperativa, e dos
territórios; Nível de coordenação técnica e de monitorização, assegurado
pela Estrutura de Missão Recuperar
Portugal, em articulação com a Agência para o Desenvolvimento e Coesão,
I. P. e o Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações
Internacionais do Ministério das Finanças (GPEARI); e Nível de auditoria e controlo,
assegurado pela Comissão de
Auditoria e Controlo (CAC), presidida pela Inspeção-Geral de Finanças
(IGF) e que integra um representante da Agência para o Desenvolvimento e
Coesão, I. P. e uma personalidade com carreira de reconhecido mérito na área da
auditoria e controlo, cooptada pelos restantes membros. Espera-se que o modelo resulte,
avaliando todas as candidaturas, viabilizando as candidaturas devidamente
estruturadas e justificadas, fiscalizando a execução dos projetos, obrigando a
uma razoável longevidade dos efeitos dos mesmos e promovendo a punição dos
infratores. No entanto, se têm faltado meios de fiscalização e controlo em
todos os setores em que intervém o Estado, não sei se o PRR os terá.
Também o
Presidente da República ousou criar na sua Casa Civil um grupo de acompanhamento
que visa controlar a distribuição de fundos do PRR. Penso que este grupo não
passa dum florão sem eficácia, a não ser que se chame eficácia também à estética.
Na verdade, embora os elementos do grupo sejam tecnicamente competentes, não
têm acesso a informação suficiente sobre a matéria. E pronunciarem-se ou tentarem
agir com base no que diz a comunicação social é precário. Ninguém na Administração
Pública ou no setor empresarial tem de prestar contas à Presidência da
República. E Marcelo (presidente e constitucionalista) sabe-o, pois é o governo
“o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da Administração
Pública (artigo 182.º da Constituição). Porém, o grupo serve para criar ruído e
ser porta-voz dos desabafos de Marcelo.
***
No caso da “Operação Atlântida”, o dono da empresa de
cruzeiros “Douro Azul” (e da Media Capital, proprietária da TVI) é suspeito de
montagem de um esquema de fuga ao Fisco na compra e venda do navio Atlântida,
entre 2014 e 2016, o que, segundo as Finanças, gerou uma dívida de cerca de
seis milhões de euros em impostos não pagos. E Mário Ferreira diz que tem
havido “mentiras redondas” acerca do processo e que “foram empolados custos
fictícios”.
O navio Atlântida, comprado em setembro de 2014 pela Mystic
Cruises, detida pelo dono da Douro Azul, aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo
por 8,75 milhões de euros, foi vendido, em 2015, por 17,3 milhões de euros a
uma empresa norueguesa, por uma empresa de Ferreira sediada numa sociedade ‘offshore’
em Malta. Nessa venda, pelo dobro do valor da compra, apurou-se que o proprietário
da Douro Azul comprara o navio a si próprio – visto que, após comprar o
Atlântida, criou duas firmas offshore em Malta para manter os lucros obtidos
pela venda do navio, a International Trade Winds Holding, Ltd (ITWH), e a
International Trade Winds, Ltd (ITW), subsidiária detida a 100% pela primeira. Assim,
Ferreira terá vendido primeiro o navio Atlântida à empresa que criou no ‘offshore’
em Malta, a ITW, por 11,5 milhões de euros, e só depois o vendeu à norueguesa Hurtigruten
por 17,3 milhões de euros.
Mário Ferreira clarificou, em entrevista à SIC, que comprou o
navio, em 2014, aos estaleiros de Viana por oito milhões, abaixo do custo de
construção, de cerca de 40 milhões de euros, por o navio estar em muito más condições,
tendo de vir a fazer investimentos na reabilitação e certificação do Atlântida,
razão porque abriu uma empresa em Malta, elevando o seu valor a 11,5 milhões de
euros e permitindo a sua venda ao grupo norueguês por 17,3 milhões. Não se
tratou de vender o navio a si próprio, mas de incluir na venda as mais-valias cerca
de cinco milhões. É de recordar que o navio foi construído nos estaleiros de
Viana para o Governo dos Açores, que o recusou. E Mário Ferreira enfatiza “a
grande incompetência dos gestores”, sustentando que “esta gestão pública foi um
desastre, eles é que deviam estar a ser investigados”.
***
Ora,
o caso em investigação nada tem a ver com o PRR. É certo que pode suscitar
dúvidas quanto à probidade da gestão dos projetos da Douro Azul. Porém, é
necessário que se apure o que se passa com o caso em apreço e a governação do PRR
esteja atenta ao futuro da Douro Azul e de outras empresas. Até quando se criam
e desfazem empresas ao fluir da maré?
2022.07.11 – Louro de Carvalho
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