quinta-feira, 14 de julho de 2022

A queda da Bastilha ou o rosto popular da Revolução Francesa

 

A queda da Bastilha, a 14 de julho de 1789, é comemorada como o principal feriado de França.

No reinado de Luís XVI, a França passava pela grande crise financeira desencadeada pelo custo da intervenção do país na Guerra Revolucionária Americana (1776) e exacerbada pelo desigual sistema de taxação, bem como pela grave crise agrícola.

Já a 7 de junho de 1788, eclodiu, em Grenoble, a “Jornada das Telhas” (Journée des Tuiles), em que os rebeldes dos quadros da fronda parlamentar subsequente à tentativa de reforma de Lamoignon (Chrétien-Fançois II de Lamoignon), afrontaram as tropas reais com golpes de telha, marcando a fase inicial da Revolução Francesa.

A 8 de maio desse ano, um “Lit de justice” (sessão das Cortes) regista um édito sobre a reforma judiciária do guarda dos selos Lamoignon, que suprime o direito dos parlamentos de reprovação junto às cortes soberanas (Parlamento de Paris e Parlamentos Provinciais, Cortes de Deliberação, Corte das Contas) e cria uma Corte plenária encarregada do registo e da conservação dos atos reais, éditos e ordens. Os membros desta Corte seriam nomeados pelo rei e os conselheiros parlamentares veem-se a confinados à função de juízes judiciais, só tomando conhecimento de casos criminais contra os nobres e casos civis que impliquem litígio superior à 20 000 libras.

Os Parlamentos – bastiões avançados da sociedade das ordens, privilégios e isenções fiscais – perdiam o controlo sobre as leis do reino. O Parlamento de Paris, liderado pelos conselheiros Duval d’Epremesnil e Goislard de Montsabert, em rebelião, proclama não tolerar qualquer inovação à Constituição e inscrever em mármore as leis fundamentais do reino, incluindo a imutabilidade da magistratura. E a oposição ganha todo o país, vinculando-se cada Parlamento às suas imunidades regionais e defendendo a legitimidade das justiças feudais e senhoriais. Isso acontece também em Grenoble, no Dauphiné, onde grande parte da cidade (advogados, procuradores, hussardos, escrivães...) vive da presença e da força do seu Parlamento.

A 7 de junho, ao soar o toque de sinos, o povo associa-se aos magistrados que haviam recebido a ordem do Duque de Clermont-Tonnerre, governador-geral do Dauphiné, de voluntariamente se exilarem fora da cidade. Os parlamentares permaneciam em sessão desde 20 de maio, apesar de terem sido dispensados, contestando a reforma que desmembrava a amplitude do seu Parlamento e afetava uma grande parte das suas competências.

Uma parte dos manifestantes sobe aos telhados e uma chuva de telhas abate-se sobre os soldados do regimento Royal-Marine nas cercanias do colégio dos jesuítas (agora, Liceu Stendhal, na atual Rua Raoul Blanchard). Os soldados de Luís XVI  retiram-se, o palácio do governador é pilhado e o Duque de Clermont-Tonnerre escapa, por pouco, do linchamento. No fim da tarde, os rebeldes tomam conta da cidade, enquanto o duque, inseguro quanto ao regimento Royal-Tonnerre, que dá sinal de indecisão, capitula e reinstala os parlamentares no Palácio de Justiça. A ordem só é restabelecida, a 14 de julho, pelos dragões do Marechal de Vaux, que substitui o duque.

Segue-se à “Jornada das Telhas”, a 21 de julho, a Assembleia de Vizille, perto de Grenoble, que pedirá, por iniciativa dos advogados Antoine Barnave e Mounier, no que são pioneiros, o voto por cabeça (ou seja, por deputado) nos Estados Gerais, em lugar do voto por ordem (em que o clero e a nobreza têm a maioria), dando preponderância ao Terceiro Estado (o povo).

***

A 5 de maio de 1789, os Estados Gerais (Cortes) reúnem para lidar com a crise suso especificada, porém foram impedidos de agir por protocolos arcaicos e pelo conservadorismo do Segundo Estado (nobreza, que significava apenas 1,5% da população do reino). A 17 de junho, o Terceiro Estado, cujos representantes vinham da classe média (burguesia), organizou-se em Assembleia Nacional para criar a Constituição. O rei, a princípio, opôs-se, mas acabou por ser obrigado a reconhecer a autoridade da Assembleia, que passou a ser Assembleia Nacional Constituinte.

Concomitantemente à formação da Assembleia, ocorreu, a 20 de junho, o Juramento da Sala do Jogo da Pela. A Corte não permitiu a reunião do Terceiro Estado na sala habitual e os deputados reuniram na Sala do Jogo da Pela, onde juraram jamais separar-se e reunir, quaisquer que fossem as circunstâncias, até que a Constituição estivesse firme nos seus fundamentos, afirmando também a ideia de manutenção da ordem pública e dos princípios da Monarquia.

A 14 de julho, deu-se a invasão da Bastilha, que juntamente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, constitui o terceiro evento desta fase inicial da revolução, dando-lhe o cariz popular. O primeiro fora a revolta da nobreza, ao recusar a ajuda ao rei com o pagamento de impostos. O segundo foi a formação da Assembleia e o Juramento da Sala do Jogo da Pela.

A classe média formara a Guarda Nacional, ostentado rosetas tricolores, em azul, branco e vermelho, que logo se tornaram o símbolo da revolução.

Paris estava ávida de insurreição e, no dizer de François Mignet, “intoxicada com liberdade e entusiasmo”, mostrando apoio à Assembleia. A imprensa publicava os debates da Assembleia, e o debate político contagiou as praças públicas e os salões da capital. O Palais-Royal e os seus jardins tornaram-se palco de uma reunião interminável. A multidão ali reunida, enfurecida, decidiu arrombar as prisões da Abbaye para soltar os granadeiros presos por se negarem a disparar contra o povo. A Assembleia encaminhou os guardas presos à clemência do rei e, após retornarem à prisão, acabaram por receber o perdão. As tropas, até então consideradas confiáveis pelo rei, passaram a tender pela causa popular.  

A prisão foi invadida, porque o jornalista Camille Desmoulins, até então desconhecido, discursou em frente ao Palácio Real e pelas ruas, dizendo que as tropas reais estavam prestes a desencadear sangrenta repressão sobre o povo de Paris. Todos deviam socorrer-se de armas para se defenderem A multidão, primeiro, dirigiu-se aos “Inválidos”, o antigo hospital onde se concentrava razoável arsenal. Ali, apropriou-se de vinte e oito mil mosquetes e de alguns canhões. Correu o boato de que a pólvora se encontrava estocada num outro lugar, a fortaleza da Bastilha. Marcharam então para lá. A mole revoltosa era composta de soldados desmobilizados, guardas, marceneiros, sapateiros, diaristas, escultores, operários, negociantes de vinhos, chapeleiros, alfaiates e outros artesãos, enfim, o povo de Paris. E a fortaleza defendia-se com 32 guardas suíços e 82 “inválidos” de guerra, possuindo 15 canhões, dos quais apenas três em funcionamento.

Durante o assédio, o marquês de Launay, governador da Bastilha, tentou negociar. Os guardas, porém, descontrolaram-se, disparando sobre a multidão. Indignado, o povo reunido na praça em frente partiu para o assalto e dali para o massacre. O tiroteio durou cerca de quatro horas. Sendo incerto o número de mortos, calcula-se que morreram 98 populares e apenas um defensor da Bastilha. Já Launay foi decapitado e a sua cabeça espetada na ponta de uma lança desfilou pelas ruas em macabra celebração. Os presos, soltos, arrastaram-se para fora sob o aplauso da multidão postada nos arredores da fortaleza devassada. Posteriormente, a multidão incendiou e destruiu a Bastilha, localizada no bairro Santo António, um dos mais populares de Paris. O espetacular episódio teve efeito eletrizante, não só na França, mas também onde a notícia chegou, provocando efeito imediato. Todos perceberam que ocorrera alguma coisa sensacional. Mesmo na longínqua Königsberg (hoje Kaliningrado, na Prússia Oriental), atingida pelo eco de que o povo de Paris assaltara um dos símbolos do rei, fez com que Immanuel Kant, exultante com o evento, pela primeira vez na vida, se atrasasse no seu passeio diário das 18 horas.

***

A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, um documento culminante do Iluminismo, que define os direitos individuais e coletivos dos homens (tomada a palavra “homem” na aceção de “ser humano”) como universais, influenciado pela doutrina dos direitos naturais, válidos e exigíveis em todo o tempo e em todo o lugar. Na imagem da Declaração, o “Olho da Providência” a brilhar no topo representa a homologação divina das normas ali contidas e alimenta teorias da conspiração no sentido de que a Revolução Francesa foi motivada por grupos ocultos.

Inspirada nos pensamentos dos iluministas e na Revolução Americana, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou, a 26 de agosto, e votou definitivamente, a 2 de outubro, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, sintetizada em dezassete artigos e um preâmbulo dos ideais libertários e liberais da primeira fase da Revolução Francesa (1789-1799). Pela primeira vez, são proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do homem de forma económica, visando toda a humanidade. Reformulada no contexto do processo revolucionário, em 1793, serviu de inspiração às constituições francesas de 1848 (Segunda República), bem como à atual, e foi a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assumida pelas Nações Unidas.

Segundo o documento, “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, de modo que “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, residindo na nação “o princípio de toda a soberania”.

Por outro lado, “a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo”, pelo que “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”, proibindo a lei, que “é a expressão da vontade geral”, apenas “as ações nocivas à sociedade”.

Nos termos da Declaração, “ninguém pode ser acusado, preso ou detido, senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas prescritas por esta”, a qual “apenas deve estabelecer as penas estrita e evidentemente necessárias”, não podendo ninguém “ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada” e não havendo delito de opinião e de expressão.

***

Em suma, o 14 de julho, Dia Nacional de França, constitui, com todos os eventos a ele associados, uma notável e irreversível viragem histórica, a inauguração de uma nova era.

2022.07.14 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário