segunda-feira, 30 de setembro de 2019

António Lobo Antunes “já entrou no Olimpo”


Quem o diz é o Presidente da República, que atribuiu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade a António Lobo Antunes no encerramento do colóquio que homenageou o escritor na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, agradecendo-lhe por ter “contribuído para a nossa liberdade, por aquilo que pensou, por aquilo que fez e por aquilo que escreveu”.
O colóquio dedicado aos 40 anos da vida literária do autor de A Outra Margem do Mar (ed. Dom Quixote) que no sábado, dia 28 de setembro, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa sala onde estavam os antigos Presidentes da República Jorge Sampaio e Ramalho Eanes.
Bernard-Henry Lévy, o escritor e filósofo francês, que fez a conferência de abertura, mostrou-se feliz por o seu país ter permitido à obra do escritor português a entrada na Biblioteca La Pléiade, a coleção de referências da literatura mundial (o anúncio foi feito o ano passado e o processo está em andamento segundo a editora). E disse:
Mas há um gesto que se impunha, há uma recompensa que se impunha, há uma recompensa que ele merece há tantos anos e que nos faz perguntar: Como é possível que tarde tanto? A recompensa que eu peço esta manhã para António Lobo Antunes é naturalmente o Prémio Nobel da Literatura.”.
Horas depois, na mesma sala, o Presidente da República lembrava que há um quarto de século havia um debate na sociedade portuguesa sobre o Prémio Nobel da Literatura para António Lobo Antunes, debate que rejeitava, porque sempre achou que estava acima disso o autor de Fado Alexandrino. E acrescentou:
Não precisava do Prémio Nobel da Literatura para ser quem era. (…) Isso ficou mais claro quando a Pléiade o reconheceu e o chamou ao Olimpo. [António Lobo Antunes] entrou no Olimpo. Não há que esperar notícias dessa capital da Europa nórdica. Não importa, é perda de tempo.”.
E o Presidente considerou que o intelectual francês fez bem em ter dito o que disse, pois só mostra como é consistente, persistente e tem aquele traço francês que é de não se esquecer daquilo que pensava já há 40 anos. Porém, segundo Marcelo, para os portugueses o que é fundamental é que Lobo Antunes ganhou já tudo o que havia a ganhar de prémios. E disse o PR:
É um daqueles casos de acesso à eternidade por mérito próprio. A genialidade abre ‘uma via verde’, ou melhor, eu não digo a cor para não ser mal interpretado. Nestes tempos de campanha eleitoral, o melhor é não dizer nada porque irão dizer tudo sobre mim.” – disse e retificou para “uma via direta”.
Referindo que Lobo Antunes  diz que “os sucessivos Presidentes da República sempre tiveram um carinho especial por ele”, frisou que “os portugueses, ao longo destes anos, sempre tiveram carinho pelo António”, pelo que “os Presidentes cumpriram a sua função: interpretar a vontade do povo”, tendo para isso sido eleitos. Depois, surpreendeu o escritor com palavras e um gesto:
Que posso eu dizer senão agradecer-lhe a sua juventude, agradecer-lhe aquilo que por nós fez, agradecer-lhe a sua irreverência e a sua liberdade. Foi, é e será sempre um homem essencialmente livre. E que contribuiu para a nossa liberdade, por aquilo que pensou, por aquilo que fez e por aquilo que escreveu. Como reconhecer isso? É muito simples. É o pouco que está ao alcance de um Presidente da República que é atribuir-lhe a Ordem da Liberdade nestes 40 anos de obra literária. E é isso que eu passo a fazer.”.
E fê-lo perante uma enorme plateia a aplaudir de pé.  

***

Foi a Fundação Calouste Gulbenkian que promoveu o predito colóquio dedicado aos 40 anos de vida literária do escritor António Lobo Antunes para celebrar o homem e a obra.
A famosa frase “apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo”, retirada da “Crónica com um sorriso no fim”, foi o mote que assinalou o arranque do programa dedicado a António Lobo Antunes e aos seus “40 anos de vida literária”, numa conferência que contou com vários convidados ao longo do dia, para falar das suas duas obras inaugurais e duas das mais memoráveis, com o Presidente da República a encerrar a cerimónia.
Essas obras são “Os Cus de Judas” e “Memória de Elefante”, ambos publicados em 1979 e ambos protagonizados por um médico – a formação de base do autor (não o único).
Sobre o autor e estas suas duas obras intervieram na conferência, ao longo do dia, professores, ensaístas e investigadores como Bernard-Henri Lévy, Dinu Flamand, Mircea Martin, Dominique Nédellec, Vincenzo Russo, Knut Cordsen, Daniel Sampaio, Nuno Lobo Antunes, Ana Paula Arnaut, Norberto do Vale Cardoso, Sérgio Guimarães de Sousa e Maria Alzira Seixo, além de Guilherme d’Oliveira Martins.
Iniciado às 10 horas, o colóquio terminou às 18, mas antes houve leituras de excertos de “Os Cús de Judas” e “Memória de Elefante”, pela voz do próprio António Lobo Antunes. E, na zona de receção do secretariado dos congressos pôde contemplar-se uma instalação alusiva a estas duas obras.
***
O que iria dizer durante uma hora o filósofo e polemista Bernard-Henri Lévy sobre Lobo Antunes era a grande curiosidade. Assunto não faltava, afinal 40 anos de vida literária dão milhares de páginas e ângulos e havia muitos especialistas num auditório repleto de espectadores. Porém, Lévy não se considera mais do que um leitor de António Lobo Antunes, mas confirmou a fama de que está habituado a galvanizar plateias e, durante dezenas de minutos, divagou sobre a obra e o escritor e saiu do palco perante uma salva de palmas.
Começou por confessar que há poucos escritores vivos que o impressionem tanto como Lobo Antunes e revelou que o antigo editor francês de António Lobo Antunes, Christian Bourgois, lhe dissera há muitos anos que “precisava de ler a tradução de Os Cus de Judas de um dos escritores maiores que publicava”. E, depois de ler o romance, concluiu: “Era uma das aventuras singulares do nosso tempo”.
Garantindo que era fã, que lera várias traduções, que comprovou, pelo menos, dizendo os títulos de vários livros e que ainda na véspera viera a reler o “Manual dos Inquisidores”, recordou uma antiga entrevista de Lobo Antunes em que este fazia três recomendações aos que o quisessem ler: “Ele explicava aos leitores como é que poderiam entrar na sua obra assim” – disse.
E a primeira recomendação do escritor português era: 
Leiam-me com se eu fosse um músico porque a minha academia não é de escritores. O ofício de escrita aprendi-o num programa de televisão com um ornitólogo que decompunha o canto dos pássaros ao passar mais devagar as gravações que fazia e assim poder ouvir as variações desses cantos.”.
Assim, como explicitou o orador, o escritor “compreendeu que os seus verdadeiros mestres eram Beethoven, Brahms, Mahler e Charlie Parker, e que me obrigou a ler de outra forma os seus romances”.
A segunda recomendação de Lobo Antunes era:   
Prestem atenção ao que leem como se a regra do ofício do escritor entrasse pela porta da pontuação”.
E Lévy comentou:
Céline inventou o ponto de exclamação, Proust dizia que Flaubert mudara o destino da humanidade por alterar o início das frases e ALA (António Lobo Antunes) fez revoluções, como introduzir maiúsculas no meio das frases, acrescentar conteúdo entre parêntesis e trabalhando sobre o branco entre e no interior das palavras. Isso era novo e fazia o texto respirar como nenhum outro.”.
A terceira recomendação de ALA era, segundo Lévy:
Dispersar o leitor em vez de o encaminhar, pois ALA faz um esforço para o desarmar. Quer que ele deixe à entrada do livro tudo o que sabe porque os seus livros precisam de ser apanhados como o corpo é contagiado por um micróbio. Só baixando as defesas imunitárias se pode acolher o furacão dos seus livros.”.
 E, recordando o pedido de João Paulo II para que os fiéis confiassem nele, Lévy disse: 
António, tu és o único escritor que conheço a ter um toque papal quando pede aos leitores ‘tenham confiança em mim’.
A seguir, relevou o que torna a obra de ALA diferente da de outros escritores, como James Joyce ou Virginia Woolf:
A novidade é como trata a questão do tempo, tema que todos os grandes trabalharam: Balzac ou Proust, por exemplo. Mas ALA distingue-se do trabalho de ambos porque, ao colocar o tempo, fá-lo através de uma orquestra de personagens que oferecem a memória. O tempo de ALA é um em que o passado, o presente e o futuro não aceitam ser estanques e misturam-se – como era a realidade portuguesa nos tempos a seguir à Revolução de 1974 onde tudo estava em simultâneo. ALA faz na sua obra a paródia e o pastiche de figuras da história portuguesa como se fosse um descendente de Homero a fazer um relato à Monty Phyton.”.
Depois, decidindo contribuir para a interpretação da escrita do autor português, voltou a socorrer-se de Joyce e de Woolf dizendo:
Em ALA há o monólogo interior e a polifonia, que vem de Joyce ou de Virgínia Woolf: no primeiro, com a existência de um falar em permanência; e, na segunda, o fluxo da consciência. Mas há uma diferença, quando se leem os teus romances percebe-se que existem vozes nos teus monólogos que flutuam e não pertencem a ninguém – e isso parecia-me impensável. Há até várias vozes na mesma palavra e se quisermos definir a tua voz só pode ser da seguinte maneira: há um Tejo de palavras onde elas se misturam os dias, as vozes e também as pessoas e as coisas.”.
Por fim, questionou o tema principal da obra do escritor – a guerra – que resume em três letras: mal. E exige que ALA se pronuncie de forma doutrinária e teológica sobre o horror e a estupidez da guerra: A guerra é o momento limite da humanidade e onde tudo se desfaz”. Lobo Antunes viu isso em Angola e mostra-o nos seus livros. E Lévy insiste no questionamento: “Onde está o mal na obra e como é que ALA o interpreta?”.
Quase a chegar ao fim da palestra, Lévy elogiou à francesa António Lobo Antunes:
Depois de ser incluído na Plêiade – onde poucos autores vivos estão –, o que peço para este escritor é o Nobel da Literatura! À francesa, porque a Plêiade e o seu reconhecimento em França não é para qualquer um...”.
***
O Presidente da República, que encerrou o colóquio, entrou de braço dado com o escritor e logo se ouviu uma ovação pouco habitual neste género de colóquios intelectuais. Começou por dizer que o seu discurso tinha sido destruído pela intervenção do escritor e que tudo o que dissesse seria banal. Por isso, decidiu comentar o que Lobo Antunes dissera, como a importância da linhagem de que descende e a importância dos irmãos, a sociedade e a crítica conservadora dos tempos em que iniciara a carreira e a forma como Portugal interiorizou a guerra colonial:
O António veio dizer o que se passou e chocou muitos. Não era um ajuste de contas mas um reajuste.”.
Para Marcelo, a sociedade foi mudando e a obra passou a ser consensual. Comentou as crónicas do escritor e o que elas permitem descobrir sobre a sua infância e ofereceu ao escritor um assunto para um texto. E não evitou falar do Prémio Nobel da Literatura por considerar que não é preciso esperar notícias dessas de uma capital nórdica pois o António já recebeu todos os prémios possíveis e até está na Plêiade”.
Antes de o Presidente encerrar a sessão, Lobo Antunes mostrara-se emocionado e irreverente:
40 anos desde a publicação. 40 anos! Parece impossível. Quando olho ao espelho o que vejo intriga-me sempre. O cabelo cinzento, a cara marcada não é minha. Não sou um senhor com um coração jovem mas um miúdo em que o envelope se gastou. Um miúdo que passava o tempo a escrever, a minha vida foi sempre isso. Tinha 5, 6 anos e já tinha uma obra impressionante. As minhas primeiras histórias eram sobre a morte porque o meu avô recebia o Diário de Notícias e começava pela necrologia. E ria-se dos que morriam tão jovens. Então, continuei a escrever na faculdade mas era o meu irmão João que me dava os apontamentos e fazia com que eu passasse de ano...”.
Referiu casos de cobardia em África, elogiou os militares combatentes e divertiu a plateia com umas quadras picarescas. Recordou a ida a Pádua com o avô que ia pagar uma promessa por o neto ter sobrevivido à meningite. Voltou às memórias com histórias à José Vilhena e a plateia riu-se muito enquanto o Presidente olhava e sorria timidamente. E recordou a sua amizade com anteriores presidentes da República, Ramalho Eanes e Mário Soares, antes de agradecer aos presentes, que se levantaram para o aplaudir.
***
Além de Bernard-Henri Lévy, houve, ainda na parte da manhã, três testemunhos sobre o escritor que não ficaram atrás no respeitante à emoção dos presentes.
O psiquiatra Daniel Sampaio, o amigo desde há muito, contextualizou o Portugal em que António Lobo Antunes se iniciou na escrita:
Em 1979, Portugal estava em transição política e Ramalho Eanes – presente na primeira fila – era o Presidente da República, Maria de Lourdes Pintasilgo a Primeira-Ministra, inaugurava-se o canal 2 da RTP, o filme Apocalypse Now chegava aos cinemas e a canção que vencera o Festival era Sobe Sobe, Balão Sobe. Foi nesse tempo que um escritor que escrevia desde criança publicou dois livros, sobre os quais quase nenhum dos autores reconhecidos de então disse uma palavra – à exceção de Agustina e Cardoso Pires.”.
E continuou a sua explicitação:
Era um tempo em que todos esperávamos os grandes romances que estariam na gaveta e a democracia ainda não tinha acabado com os romances neorrealistas e existencialistas. Ele apareceu-me com um manuscrito e eu levei o livro a três editoras – só a Vega publicou. O que se passou a seguir é difícil descrever: o meio literário ficou em silêncio e, posteriormente, eram comentados como se fossem uma ofensa, mas todos o queriam ler. Em Memória de Elefante já estavam algumas das linhas de força do que hoje ele veio a escrever mas, em 1979, esses foram os dois livros que agitaram as consciências da burguesia de então.”.
Por seu turno, Dinu Flamand, recordando os tempos em que António Lobo Antunes o ajudou a viver fora da Roménia, recebendo-o na sua casa, disse que fora a primeira vez que viu um escritor profissional a trabalhar a facilitar-lhe a vida fora do país de origem. Disse lembrar-se de ter lido Fado Alexandrino e imaginar o que seria um livro destes na Roménia. E, após vários relatosagradeceu ao escritor “ter-lhe salvado a vida”.
E Nuno Lobo Antunes, o quinto irmão do autor, fechou a manhã com um rol de “críticas” ao António, divertiu a plateia, após confessar que só estava ali porque os seus irmãos mais velhos morreram. Recordando vários episódios da relação com o irmão, vincou:
Lembro-me de o ver escrever, mas o que mais estranhava era que usasse uma caveira como cinzeiro”.
No fim, listou os momentos mais gratos da sua infância e acusou o irmão de “ser um ladrão”:
Roubou para os seus livros as frases da família, tudo o que eram as minhas experiências e todo o meu passado. Deixei de ter histórias para contar e cada frase que leio nos seus livros esvazia-me do que eu fui.”.
Na parte da tarde, vários especialistas analisaram a obra de António Lobo Antunes e o escritor leu trechos do romance Os Cus de Judas, após o que Isabel Mota, Presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, deu início ao encerramento da conferência evocativa dos 40 anos de vida literária do escritor.
***
Que Lobo Antunes tem obra literária significativa e que merece a homenagem do meio literário e cultural é verdade. Porém, merecer o Prémio Nobel da Literatura ou dispensá-lo porque está acima de tudo isso e já entrou no Olimpo é petulância da parte do próprio e bajulação da parte de fãs. Nem a Grã Cruz da Ordem da Liberdade sobrepuja o Nobel, como quer o Presidente, que é ultraliberal na atribuição de condecorações, quase parecendo que as traz no bolso. Aliás, que luta pela liberdade se conhece em Lobo Antunes, a não a da linguagem extra ficção?
Quanto ao Nobel para Lobo Antunes, nada contra, mas que dizer de outros, se calhar, mais merecedores como, por exemplo, Mário Cláudio, que a Feira do Livro no Porto homenageou no passado dia 18 por ocasião dos seus 50 anos de vida literária. Quer-me parecer que ainda se apreciam as pessoas pelas condições de família, o que em democracia não é plausível.
Todavia, é de relevar a tonalidade musical da tessitura textual sobretudo no quadro da narrativa.
2019.09.30 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de setembro de 2019

Contundente censura à sociedade de consumo, opção pelos pobres


A liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano C propõe-nos a reflexão sobre a nossa relação com os bens deste mundo, incitando a vê-los, não como nossa pertença em exclusivo, mas como dons que Deus colocou nas nossas mãos para os administrarmos e partilharmos, com gratuitidade e amor. Com efeito, os dons não são nossos, mas de Deus e de todos os irmãos.
***
Na 1.ª leitura (Am 6,1a.4-7), Amós denuncia violentamente a classe dirigente ociosa, que vive no luxo à custa da exploração dos pobres, não se preocupando minimamente com o sofrimento e a miséria dos humildes. O profeta oriundo de Técua, que era pastor e plantador de sicómoros, anuncia que Deus não pactua com a situação, pois este sistema de egoísmo e injustiça não tem nada a ver com o projeto que Deus sonhou para os homens e para o mundo.
Estamos em meados do séc. VIII a.C. (cerca de 762 a.C.), no reino do Norte (Israel). As conquistas de Jeroboão II criaram bem-estar, riqueza, prosperidade; porém, esta situação de desafogo não beneficia toda a nação, mas apenas um grupo privilegiado (o dos nobres, cortesãos, militares, grandes latifundiários e comerciantes sem escrúpulos). Nasceu e cresceu uma classe dirigente poderosa, cada vez mais rica, a viver instalada no luxo, a explorar os pobres e que, apoiada por juízes corruptos, comete ilegalidades e prepotências. À margem, está o numeroso grupo dos pobres, vítimas inocentes e silenciosas dum sistema que gera injustiça, miséria, sofrimento, opressão. Neste contexto, o “profeta da justiça social” faz ouvir a sua denúncia profética do luxo e da luxúria das classes dominantes face a um povo abalado pela catástrofe da injustiça social e da invasão assíria. Por isso, esses ricaços sairão para o exílio na frente dos deportados. E o Profeta evoca ironicamente a gloriosa história antiga: os ricos, porque têm uma cítara para tocar, acham que são cantores como David. E lembram-se de que a Samaria é a casa de José, mas esquecem-se de que José distribuía alimento aos de sua casa.
O texto assumido para a 1.ª leitura pertence ao género literário dos “ais” (v. 1). Começa com a interjeição “hwy”, habitualmente usada em lamentações fúnebres. Corresponde ao grito das carpideiras a acompanhar o cortejo fúnebre. É o terceiro “ai” de Amós; os outros dois aparecem em Am 5,7 (a propósito da justiça e dos tribunais) e em Am 5,18 (a propósito do culto). Os profetas utilizam normalmente esta palavra como introdução a um oráculo que anuncia o castigo: indica que certas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte por causa dos seus pecados.
Temos, neste caso, a classe dirigente, rica e indolente, que vive comodamente nos palácios da capital, que esbanja em luxos, que vive numa perpétua festa. São parasitas que se deitam “em leitos de marfim”, que comem alimentos selecionados, que bebem vinhos raros em excesso, que usam perfumes importados, que se divertem a ouvir música e a compor canções. O mais grave (embora Amós não o expresse claramente aqui) é que todo este luxo e esbanjamento resultam da exploração dos mais pobres e das rapinas e prepotências cometidas contra os fracos. De resto, esta classe rica e indolente vive egoisticamente mergulhada no seu mundo cómodo e não se preocupa minimamente com a miséria e o sofrimento que aflige os seus irmãos. Os pobres trabalham duramente, numa existência cheia de dores, trabalhos e misérias, para sustentarem a indolência e o luxo da classe dirigente.
É evidente que Deus não está disposto a pactuar com isto. A classe dominante da Samaria está a infringir gravemente os mandamentos da “Aliança” e Deus não aceita ser cúmplice dos que mantêm um elevado nível de vida à custa do sangue e das lágrimas dos pobres. Por isso, o castigo chegará em forma de exílio numa terra estrangeira. As elites têm que ir ao cativeiro para aprenderem a justiça e o direito. O profeta refere-se à queda da Samaria nas mãos dos assírios de Salamanasar V, em 721 a.C., e à partida da classe dirigente para o cativeiro na Assíria.
O trecho de Amós, uma contundente censura de Amós à “sociedade de consumo” de Jerusalém e da Samaria aplica-se como uma luva ao nosso tempo. Até parece que o filme da história se repete na sociedade atual tão consumista, tão voltada para o luxo desnecessário e para o prazer desenfreado, insensível aos muitos problemas provocados pela pobreza e exclusão. Campeiam os mesmos vícios que Amós denuncia nas classes ricas e ociosas e em quantos se deixam arrastar pelo desejo de ter, comprando coisas supérfluas e impondo sacrifícios à família para pagar as suas manias de grandeza, gastando de forma descontrolada para pagar os vícios (pequenos ou grandes), sem pensarem nas necessidades dos que dependem de si. Até os religiosos e religiosas com voto de pobreza gastam, às vezes, de forma supérflua, esquecendo que vivem das ofertas generosas de pessoas que têm menos do que eles. Pede-se, então, parcimónia no viver, no comer, no vestir e no beber e o não esquecimento dos pobres através de ação em concreto.
***
A insensibilidade ao sofrimento das pessoas mais humildes, excluídas e pobres, que estão na margem da sociedade, é também o tema da parábola do rico avarento e epulão e de Lázaro que lemos no Evangelho desta dominga (Lc 16,19-31). Continua o Evangelho a reflexão sobre o uso das riquezas que são dons de Deus e que, assim, devem ser postas ao serviço de todos. Jesus pede que tenhamos presente a dialética entre o eterno e o temporal. Aos que põem a finalidade da sua vida nos bens temporais não é fácil convencerem-se da sublimidade dos bens eternos. Assim já nos ensinou a Bem-Aventurada Virgem Maria no Magnificat (cântico da exultação da alma no Senhor, da gratidão laudante e da misericórdia): “Depôs do trono os poderosos e elevou os humildes; encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias” (cf Lc 1,52-53).
Na parábola do rico e de Lázaro, Lucas faz catequese sobre a posse dos bens. Na perspetiva lucana, a riqueza é um pecado, pois supõe a apropriação, em benefício próprio, de dons que Deus destina a todos os homens. Por isso, o rico é condenado e o pobre Lázaro recompensado.
Ora, todos somos convidados a refletir sobre a misericórdia, especialmente, na dialética do rico e do pobre, do eterno e do transitório e, sobretudo, da misericórdia e da justiça, que devem andar de mãos dadas e unidas.
Em termos de texto evangélico, a parábola é exclusiva do Evangelho de Lucas, mas é uma narrativa comum a outras literaturas e com o mesmo escopo: a moderação no uso das riquezas e a atenção aos pobres. Só que Jesus dá-lhe uma modelação escatológica própria. Assim, resulta que o trecho mais original da perícopa é a parte que fala dos irmãos do rico, isto é, aquelas pessoas que vivem neste mundo à semelhança do rico da parábola. Original é também o nome dado ao pobre. É a única parábola do Evangelho em que o protagonista tem um nome próprio: Lázaro – o que é simbólico, pois “Lázaro” significa “Deus ajuda”. 
Por via de regra o pobre é anónimo ou pouco nos interessa como se chama. Mas Jesus dá-lhe um nome, valoriza-o. O rico é quem fica sem nome. Como os ricos são conhecidos pelo nome, os leitores da parábola deram-lhe um nome: chamaram-no Epulão, que significa “comilão”. Os irmãos do Epulão, o rico deste mundo transitório, que também não têm nomes, não ouviram Moisés e os profetas. Por isso, em nada ouviriam quem viesse da visão beatífica, porque já não ouviram aos profetas. Moisés ensinou como seguir uma vida santa: tinha uma série de obrigações para com os pobres, sobretudo os órfãos e viúvas e alguns profetas haviam sido muito explícitos na defesa dos pobres e dos excluídos.
Moisés e os profetas da antiga Lei ensinaram com clareza. Muitos não os escutaram. Mas um morto ressuscitado não seria um professor melhor. Jesus ressuscitou dos mortos e não sabemos se é mais escutado que Moisés e os antigos profetas. De facto, continuam as riquezas do mundo, que pertencem a todos, acumuladas nas mãos de pouquíssimos. Continuam os nossos olhos a contemplar versões gigantescas da parábola do Epulão e de Lázaro.
Assim, a parábola projeta-nos para a vida na presença de Deus, nas alegrias eternas. Na vida presente somos livres de viver como queremos: no altruísmo ou no egoísmo, na virtude ou no pecado. A morte não apaga tudo, como gostariam alguns que assim acontecesse. A morte revela-nos o sentido da vida. É a morte, que o Evangelho chama de “fim dos tempos”, que fixa o destino futuro da criatura humana, destino eterno que depende de como vivemos o pequeno espaço de tempo na terra. E Deus julga-nos, após a morte, pelas escolhas que fizemos na vida presente. Quem é egoísta ou deixa de lado os pobres terá um julgamento à altura dos seus atos. A liberdade é dos maiores dons que Deus nos concede. Mas ela tem margens que a limitam: os preceitos divinos, que nos foram ensinados pelos profetas, pelo Evangelho. A vida presente, portanto, é decisiva. É nela que jogamos o nosso destino, é nela que escolhemos a eternidade.
Na perspetiva teológica de Lucas, a riqueza – legítima ou ilegítima – é sempre culpada. Os bens não pertencem a ninguém em particular, nem sequer àqueles que trabalharam duramente para se apossarem de uma grossa fatia dos bens que Deus pôs no mundo. São dons de Deus, postos à disposição de todos os seus filhos, para serem partilhados e para assegurarem uma vida digna a todos. Quem se apodera – ainda que legitimamente – desses bens em benefício próprio, sem os partilhar, defrauda o projeto de Deus. Quem usa os bens para ter uma vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo-se das necessidades dos outros homens, defrauda os seus irmãos que vivem na miséria. Nesta história, Jesus ensina que não somos donos dos bens que Deus pôs nas nossas mãos, ainda que os tenhamos adquirido de forma legítima: somos administradores, encarregados de partilhar com os irmãos o que pertence a todos. Esquecer isto é viver de forma egoísta e, por isso, merece o destino os “tormentos”.
Por via de regra, os ricos são infelizes, porque se rodeiam de bens como se de uma fortaleza se tratasse. São incomunicáveis. Vivem a defender-se a si e às “suas” riquezas. Os pobres não têm nada a perder. Por isso, as mãos mais pobres são as que mais se abrem para tudo dar.
Neste mundo de competição, a riqueza transforma as pessoas em concorrentes. A riqueza não é vista como gestão do que deve servir para todos, mas como conquista e expressão de status. Tal atitude marca a riqueza financeira, a riqueza cultural e a riqueza afetiva.
A aventura do amor, inaugurada por Cristo e prosseguida depois dele, convidando o homem a consentir ativamente na lei da liberdade, causou, de facto, mudança progressiva nas relações dos homens.  O Evangelho não nos ensina nada sobre revolução. Tentar construir uma teologia da revolução a partir do Evangelho é iludir-se e não captar o essencial.
Os cristãos, conquistados pela aventura do amor e só na medida que aceitam vivê-la como Cristo e em seu seguimento, estarão atentos em fazer com que ela não degenere em novas opressões e em novo legalismo. Deus faz opção pelos pobres. Não elege a pobreza pela pobreza, mas a pobreza pela grandeza de generosidade, perdão e amor. Deus, enfim, não exige que os ricos se desfaçam dos bens, mas que sejam generosos e que os seus bens aproveitem aos mais necessitados através da partilha voluntária, ditada pela boa consciência.
***
A 2.ª leitura (1 Tim 6,11-16), apesar de não apresentar uma relação direta com o tema, concorre para ele, alicerçando no lado espiritual. Traça o perfil do “homem de Deus”, que é alguém que ama os irmãos, que é paciente, que é brando, que é justo e que transmite fielmente a proposta de Jesus. Poderíamos, também, acrescentar que é alguém que não vive para si, mas que vive para partilhar tudo o que é e que tem com os irmãos.
Paulo fala do testemunho de Cristo neste mundo, que não é pacífico. É luta: o bom combate que devemos travar até ao fim para vivermos para sempre com Aquele que possui o fim da História.
Este trecho paulino apresenta as virtudes dos líderes da comunidade. Os ministros da Igreja devem cuidar do tema da avareza, que chega a abalar a fé. Por isso, todos os que servem o Evangelho devem cultivar as virtudes, procurando de um modo autêntico serem fiéis à profissão de fé que manifestaram e que lhes foi confiada por Jesus Cristo até à consumação dos tempos. Tudo isso, porque a Igreja está no tempo do seu crescimento e deve, ontem, hoje e sempre, conservar o que lhe é confiado. Paulo opõe ao ideal de vida dos falsos cristãos (cf 1Tm 6,3-10) a elevação moral dos verdadeiros discípulos de Cristo (cf 1Tm 6,11-16), que Timóteo, como bispo, deve tornar exemplar em sua própria vida.
No contexto da 1.ª carta de Paulo a Timóteo a comunidade sofre a influência de “falsos mestres”, que difundem doutrinas estranhas. Os “falsos mestres” são orgulhosos, ignorantes, discutem questões sem importância, fomentam a inveja, a discórdia, os insultos, as suspeitas injustas, as invejas e ciúmes e estão preocupados com as questões do lucro (cf 1Tm 6,4-6). Neste “ambiente” é importante sublinhar as caraterísticas do verdadeiro discípulo, através de quem a verdadeira fé é transmitida.
O “homo Dei” (homem de Deus) deve cultivar a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança, a doçura. Tem de ser paciente e manso, diante das dificuldades que o serviço apostólico levanta. Deve guardar o mandamento do Senhor – isto é, a verdade da fé transmitida pela tradição apostólica. No respeitante ao seu perfil, tudo se resume no amor para com os irmãos (é este amor que nos eleva para o amor de Deus), no entusiasmo pelo ministério e na capacidade de transmitir a verdadeira doutrina, herdada dos apóstolos. E o texto termina com um hino litúrgico que apresenta Deus como o Senhor dos senhores, o único soberano, O que possui a imortalidade, a glória e o poder universal. É uma solene doxologia que provém do repertório das orações usadas nas sinagogas judaicas do mundo grego e que apresenta Deus em contraste com os falsos deuses e com os títulos humanos atribuídos a reis e imperadores.
O “homo Dei”  vive com entusiasmo a fé, ama os irmãos, trata a todos com doçura, paciência, e mansidão e dá testemunho da verdadeira doutrina de Jesus, sem se deixar seduzir e desviar pelas modas ou pelos interesses próprios. A proposta feita a Timóteo deve, sobretudo, caraterizar a vida dos que têm responsabilidades na animação das comunidades cristãs. Os animadores das nossas comunidades devem pautar a sua vida e o seu ministério pelo amor, mansidão, paciência e capacidade de doar a vida e de servir os irmãos.
Quem ama não suporta a sorte de quem é vítima da fome, da miséria, da doença e da guerra. E, enquanto clama junto dos poderosos sobre a condição de quem sofre, compromete-se na missão.
2019.09.29 – Louro de Carvalho

sábado, 28 de setembro de 2019

Na semana do futuro, a terceira greve climática


De acordo com a Sky News, no dia 27 de setembro, em cerca de 170 países organizaram-se mais de seis mil eventos através das redes sociais, culminando uma semana de mobilização global pelas alterações climáticas.
A iniciativa global já não é de agora e partiu da adolescente sueca Greta Thunberg, de 16 anos, que se tornou a ativista de referência na luta contra as alterações climáticas, desafiando os decisores políticos de todo o mundo. Ficou conhecida por ter incentivado todos os estudantes a fazerem greve às “sextas-feiras, pelo futuro”, denunciando a inércia dos políticos nacionais e internacionais perante as alterações climáticas. “Eu não quero a vossa esperança. Eu não quero que sejam esperançosos. Eu quero que vós entreis em pânico”, dizia Greta, perante líderes mundiais reunidos em Davos, no Fórum Económico Mundial, em janeiro deste ano.
Segundo os observadores, o furacão Greta Thunberg começa a ter efeitos: milhões de pessoas, na sua maioria, jovens e estudantes, foram arrastadas e estiveram, a 27 de setembro, em greve pelo clima em todo o mundo, com milhares de iniciativas, e deram, assim, sequência a um movimento inspirado por aquela ativista sueca, que se tornou o rosto desta luta.
Estas manifestações culminaram uma semana de mobilização global pelas alterações climáticas que arrancou, no dia 23, com a Cimeira do Clima da ONU, convocada por António Guterres. Então a ativista, num discurso emocionado em que apontou o dedo aos governantes, clamou:
Aqui e agora é onde dizemos que basta. O mundo está a acordar. E a mudança está a chegar, quer gostem ou não.”.
***
Porém, o dia 27 é só um dos dias da greve climática de setembro de 2019, também conhecida como Semana Global do Futuro, que se concretizou numa série de paralisações e protestos internacionais protagonizados por jovens e adultos para exigir que sejam tomadas medidas para combater as mudanças climáticas. As greves ocorreram entre 20 de setembro, três dias antes da cimeira climática das Nações Unidas, e 27 de setembro, termo da Semana Global do Futuro. Os protestos começaram a ocorrer em 4.500 locais em 150 países. O evento fez parte da greve escolar pelo movimento climático, inspirado pela ativista Greta Thunberg, referida.  
Os protestos de 20 de setembro foram provavelmente as maiores greves climáticas da história mundial, pois os organizadores relataram que mais de 4 milhões de pessoas participaram das greves em todo o mundo, incluindo 1,4 milhões de participantes na Alemanha. Estima-se que 300.000 manifestantes participaram em greves na Austrália, que outras 300.000 pessoas se juntaram a protestos no Reino Unido, que manifestantes em Nova Iorque – onde Greta Thunberg fez um discurso – totalizaram aproximadamente 250.000 e que mais de 2.000 cientistas em 40 países se comprometeram a apoiar as greves.
Uma segunda onda de protestos ocorreu em 27 de setembro, com mais de 2.400 protestos planeados. Foram relatados números: 1 milhão de manifestantes na Itália; e 170.000 pessoas na Nova Zelândia. No Canadá, onde Greta Thunberg falou, o conselho escolar de Montreal cancelou as aulas para os seus 114.000 alunos.
Esta é a terceira das greves escolares pelo movimento climático. A primeira greve, em março de 2019, teve 1,6 milhões de participantes de mais de 125 países. A segunda, de maio de 2019, foi marcada para coincidir com a eleição do Parlamento Europeu para o quinquénio de 2019-2024, consistindo em mais de 1.600 eventos em 125 países. A terceira ocorreu entre 20 e 27 de setembro. Foram programadas para durante as cimeiras das Nações Unidas: Cimeira do Clima para a Juventude (21 de setembro) e Cimeira da Ação Climática (23 de setembro). E 27 de setembro é também o aniversário da publicação de “Silente Spring”, um livro de 1962 que foi fundamental para iniciar o movimento ambientalista.
A 20 de setembro, no Brasil, nomeadamente no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza, Maceió, Recife, São Luís e São Salvador, ocorreram diversas manifestações em que as pessoas protestaram contra os incêndios na Amazónia, contra as indústrias poluentes (termoelétricas), contra as mudanças climáticas e para que todos ajudem a “salvar o planeta”.
Centenas de estudantes na capital portuguesa de Lisboa protestaram para uma demanda do Governo por medidas ambientais, incluindo o encerramento de centrais de carvão e gás no país, além de várias outras questões sobre o meio ambiente em Portugal.
Os principais protestos ocorreram nos Estados Unidos, nomeadamente em Nova Iorque (onde se realizou a Cimeira do Clima da ONU) e em Washington, DC, a capital. Mas também houve protestos em dezenas de outros países. Na Austrália, cerca de 300 mil pessoas foram às ruas em mais de 100 cidades; em Londres (Inglaterra), o número foi de 100 mil pessoas. Na Alemanha, cerca de 1,4 milhões de pessoas compareceram nos protestos. Milhares e milhares de pessoas também foram às ruas em África do Sul, Bolívia, Dinamarca, Países Baixos, Oceânia, Índia, Noruega, Polónia, Lituânia, Ucrânia e em diversos outros países.
Alguns meios de comunicação previram que a greve fosse o maior protesto climático da história mundial, sendo que, posteriormente, os organizadores relataram que mais de 4 milhões de pessoas participaram nas ações de greve em todo o mundo, confirmando assim as expectativas.
E em 27 de setembro, foram planeados e realizados mais de 6.000 protestos em todo o mundo. Os principais protestos, como se referiu acima, ocorreram na Itália, onde houve mais de 1 milhão de manifestantes nas ruas, e na Nova Zelândia, onde houve mais de 170.000 pessoas a protestar. E, no Canadá, onde Greta Thunger falou, o conselho escolar de Montreal cancelou as aulas para os seus 114.000 alunos.
O líder espiritual, Dalai-Lama, publicou uma mensagem no Twitter a apoiar as manifestações:
Esta é provavelmente a geração mais jovem que tem sérias preocupações com a crise climática e seus efeitos no meio ambiente. Eles estão a ser muito realistas sobre o futuro. Eles veem que precisamos ouvir os cientistas. Nós devemos encorajá-los.” – afirmou.
O ator australiano Chris Hemsworth publicou um vídeo no Instagram em que aparece no meio da manifestação. E escreveu:
A crise climática está sobre nós. As crianças entendem a ciência básica de que, se continuarmos a poluir o planeta, as mudanças climáticas piorarão e elas não terão futuro.” – escreveu o ator.
***
Na Nova Zelândia, o número de manifestantes atingiu valores recorde. Para os organizadores da greve pelo clima neste país, que citam “fonte credíveis”, foram mais de 170 mil as pessoas a aderir – o que significa que mais de 3,5% dos neozelandeses saíram à rua.
Na manhã do dia 27, uma carta assinada por 11 mil neozelandeses já tinha sido entregue no Parlamento a pedir que o Governo declarasse emergência climática. E Raven Maeder, coordenadora do School Strike 4 Climate, na Nova Zelândia, disse ao The Guardian:
Os nossos representantes precisam de nos mostrar medidas significativas e imediatas que salvaguardem o nosso futuro neste planeta”.
E acrescentou:
Nada mais importará se não pudermos cuidar da Terra para as gerações atuais e futuras. Esta é a nossa casa.”.
***
Entretanto, a jovem ativista do clima Greta Thunberg e o líder yanomami Davi Kopenawa estão entre os 4 ganhadores, anunciados, no passado dia 25, do prémio Right Livelihood 2019, uma prémio sueco alternativo ao Nobel. Thunberg conquistou o prémio “por inspirar e ampliar as demandas políticas por urgente ação climática que reflete factos científicos”, informou a Fundação Right Livelihood em comunicado.
No dia 23, a jovem sueca acusou os líderes mundiais por não terem enfrentado as mudanças climáticas, num discurso no início da Cimeira do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque.
Thunberg iniciara solitários protestos semanais do lado de fora do Parlamento da Suécia há um ano. Inspirados por ela, no dia 27, milhões de jovens foram às ruas em todo o mundo a pedir que os governos presentes na cimeira tenham atitudes emergenciais.
E a conquista de Kopenawa deve-se à sua “corajosa determinação em proteger as florestas e a biodiversidade da Amazónia, e as terras e a cultura de seus povos indígenas”, segundo a fundação. O líder indígena, fundador e presidente da Hutukara Associação Yanomami, em Roraima, denuncia o garimpo ilegal nas terras da sua tribo.
***
Portugal juntou-se, no dia 27, ao movimento global pelo clima lançado pela predita adolescente sueca. Desencadearam-se múltiplas iniciativas associadas a uma greve geral às aulas, ao trabalho e ao consumo, na tentativa de envolver a sociedade na defesa do planeta, incentivada pelos jovens. Alunos e professores trocaram  as aulas por atividades planeadas em dezenas de municípios e para participarem nas manifestações previstas para a tarde. Três sindicatos, entre os quais dois do setor da educação (Fenprof e STOP) entregaram pré-avisos de greve para efeitos da participação dos docentes.
Marcada paras as 15 horas, a concentração no largo lisboeta do Cais do Sodré contou com milhares de pessoas de todas e idades e variadas nacionalidades, que protestaram contra as “políticas falhadas” dos decisores políticos, como explicou à agência Lusa Sinan Eden, um dos responsáveis pela organização do evento. “Nós somos o plano B”, declarou à agência Lusa, durante a manifestação cujo slogan mais proclamado é “não há planeta B”.
Ao invés das últimas duas greves que se realizaram em Portugal no passado ano letivo, esta aconteceu poucos dias depois de ter arrancado o começo das aulas, o que dificultou a mobilização de estudantes, explicou Sinan Eden. Apesar disso, os jovens foram a maioria no protesto em Lisboa, que arrancou cerca das 15,30 horas e que teve como destino final o Rossio, num cortejo que juntou jovens de várias idades, idosos, várias famílias, grupos de amigos, pais e filhos – mais de 20 mil pessoas (na capital) – no encerramento da Semana Global pelo Clima. Em paralelo, centenas de pessoas juntaram-se no Campus de Benfica do IPL (Instituto Politécnico de Lisboa), na Praça da Saúde da ESTeSL e no Campus do ISEL. Em comunicado, o IPL referiu com notório orgulho:
Uma manifestação massiva da comunidade do Politécnico de Lisboa que deu provas do empenho da instituição para com questões das alterações climáticas, associando-se ao movimento #climatestrike”.
Na verdade, unidos pelo clima, professores, alunos e pessoal não docente juntaram-se 11 minutos num gesto simbólico.
Em Coimbra, a manifestação realizou-se da Praça Dom Dinis para a Câmara Municipal e em Ponta Delgada, o protesto realizou-se nas Portas da Cidade. Cerca de 30 localidades em Portugal aderiram a esta semana de ação global pelo clima, de Arcos de Valdevez a Lagos, passando por Viana do Castelo, Porto, Aveiro, Setúbal e Sines. E mais de 4 milhões de pessoas desfilaram pelo mundo, em milhares de iniciativas, dando sequência ao movimento de Greta.
Eu não quero viver nas cinzas. Quero ter um futuro. Quero ser professora e para isso preciso de ter alunos.” – diz Catarina Alpoim, lisboeta de 27 anos, que estuda Belas Artes e que foi uma entre milhares de pessoas que pedem aos políticos que ponham o ambiente nas suas agendas.
Na véspera, viu um documentário sobre a extinção de corais, depois lembrou-se do incêndio que fustigou milhares de hectares na Amazónia, Brasil, e decidiu fazer a caminhada pelo ambiente.
O ambiente não tem preço. Quero o mundo que mereço.” – pedem os manifestantes. Querem garantir a neutralidade de carbono até 2030, exigem o encerramento das centrais de carvão na próxima legislatura e o fim dos projetos que aumentem as emissões a nível nacional, como o aeroporto do Montijo. No manifesto, publicado na página oficial do movimento, reivindicam também a reforma da floresta e da agronomia, bem como a gratuitidade dos transportes públicos. Os principais visados são os políticos. Pede-se-lhes que tomem medidas concretas, “menos conversa e mais ação”. “O clima a aquecer e os políticos estão a ver”, acusam.
Bianca Castro, uma das organizadoras da manifestação, conclui:
Finalmente, conseguimos fazer a primeira greve global em Portugal e está a correr muito bem: temos o apoio dos mais velhos, estamos empenhados e há três sindicatos que estão do nosso lado”.
A principal diferença entre este protesto e os anteriores é que, desta vez, não são só os jovens quem desfilou entre o Cais do Sodré e o Rossio, em Lisboa: havia gente de todas as idades, apesar de os mais novos continuarem em maioria. A manifestação contou com o apoio de mais de 50 organizações, como a Zero ou a Amnistia Internacional, e foi aceite por três sindicatos, que entregaram pré-avisos de greve: a Fenprof (Federação Nacional dos Professores), o STOP (Sindicato de Todos os Professores) e o STSSSS (Sindicato dos Trabalhadores da Saúde, Solidariedade e Segurança Social). Pedro Neto, diretor da Amnistia Internacional em Portugal, disse ao DN:
Defender o planeta é como o artigo 0 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, por isso, temos de estar todos juntos nesta luta”.
Lucília Sutil, docente de Ciências Naturais da Escola IBN Mucana, em Cascais, trouxe duas turmas de nono ano à manifestação: “Eles pediram. Só diziam que queriam muito vir e não fazia sentido não os trazer: é isto que ensinamos na escola” – justificou.
Na capital, enquanto decorria a manifestação, a Extinction Rebellion Portugal – um movimento internacional que chegou a Portugal há um ano – juntou-se à Greve Climática Global através de um bloqueio na avenida Almirante Reis, marcado para as 17 horas. Às 20 horas estava ainda prevista uma vigília que partia do Príncipe Real para chegar à Assembleia da República. Era para lá que se encaminhavam muitos dos que participaram na manifestação. Outros propunham-se rever o caminho que fizeram em sentido contrário – Rossio para o Cais do Sodré – para recolha do lixo que encontrassem pelo caminho, “porque isto é uma manifestação pelo ambiente”. Houve quem optasse por sentar-se no chão da praça do Rossio para uma sessão de meditação em honra da Terra. E a PSP teve de retirar jovens que persistiam em permanecer em frente da sede do Banco de Portugal.
***
Esta foi a terceira greve climática deste ano. Também em Portugal a primeira paralisação em defesa do ambiente aconteceu em março e contou com a presença de cerca de 20 mil jovens a lembrar que “não há planeta B”. Em maio, dois dias após as eleições europeias, os estudantes voltaram a trocar as salas de aula pela rua em nome do combate às alterações climáticas – um protesto que se estendeu por mais de uma centena de países. Só em Lisboa, em frente ao Parlamento, estiveram mais de 5.000, apoiados por associações ambientalistas como a Zero.
***
Há, no entanto, que advertir que nem tudo depende do homem, que, diga-se a verdade, se descuidou e, na mira de grandes lucros e na ânsia desenfreada do progresso, estragou o planeta com aval de cientistas, que garantem a validade das escolhas (a ciência tem de considerar as diversas variáveise políticos, que decidem supostamente em nome do bem comum.
Assim, a subida do nível do mar não resulta apenas do aquecimento global, mas também do movimento das placas tectónicas, ventos, ondas, ciclo lunar, fenómenos de agradação (formação de praias) e de degradação (das costas).
O aquecimento não é só da responsabilidade do homem, mas também do Sol. Por outro lado, os ciclos lunares, interferindo com a gravitação da Terra, por vezes “puxam” os oceanos e estimulam as correntes marinhas quentes e frias, que afetam os climas locais e o clima global.
É preciso não esquecer o impacto nos microclimas e nos climas locais por parte dos incêndios (muitos, mas nem todos, por culpa do homem), derrocadas, inundações (estas habitualmente sem culpa do homem), tempestades, e indústrias (estas, sim, obra do homem, mas algumas tornaram-se necessárias).
O derretimento glacial resulta não apenas do aquecimento, mas também das ondas marítimas quentes provindas do sul que, entrando no Ártico, aquecem as águas profundas e descongelam a infraestrutura dos icebergues.
Há quem preveja que, a seguir a esta onda de aquecimento global, venha uma onda de arrefecimento até 2035.
E as chuvas, embora possam ser influenciadas pela vegetação existente aqui e ali, são fundamentalmente fenómenos cíclicos de variação da temperatura dos oceanos que originam precipitação nos continentes, não dependendo propriamente do aquecimento global.
Enfim, apesar de nem tudo o que de mau se passa na Terra ser culpa homem, este não pode deixar de fazer tudo o que pode e deve para evitar as catástrofes ambientais, mas também sem fundamentalismos e excessos, como, por exemplo, eliminar drasticamente o consumo de carne de certos animais. Não é por ser uma universidade a decretar a ausência de carne de vaca nas ementas estudantis que a medida tem suporte e justificação científicos. Quando não, para levarmos tudo às últimas consequências, proibíamos as pessoas de respirar para não se poluir o ambiente com a emissão de CO2, que, diga-se, também é necessário para a vida na Terra (sem ele as plantas não realizam a fotossíntese).
Por isso, ativismo, sim, mas fundamentalismo, não!
2019.09.28 – Louro de Carvalho  

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Pelo bem-estar de todos e pelo progresso equitativo e sustentável


São três os eventos destes dias que dizem respeito ao enunciado em epígrafe e em que o Papa teve intervenção.
***
Hoje, dia 27, o Santo Padre iniciou as suas atividades com a receção, na Sala Clementina, no Vaticano, a 180 participantes no seminário sobre “O bem comum na era digital”, promovido pelo Pontifício Conselho para a Cultura e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral – um seminário em que os participantes propõem as bases éticas para a defesa da dignidade de toda a pessoa humana, em vista do bem comum, que são as bases do verdadeiro progresso equitativo e sustentável.
Sobre este encontro, Francisco disse:
Os notáveis desenvolvimentos no campo tecnológico, especialmente sobre a inteligência artificial, apresentam implicações cada vez mais significativas em todos os setores da ação humana. Por isso, acho mais do que necessários debates abertos e concretos sobre este tema.”.
Neste sentido, o Pontífice retomou a sua encíclica Laudato sí, sobre o cuidado da casa comum, estabelecendo um paralelismo básico: o benefício indiscutível a obter do progresso tecnológico pela humanidade dependerá da extensão em que as novas possibilidades disponíveis forem usadas de maneira ética. Tal paralelismo e correlação, para o Papa Francisco, exigem que, pari passu com o imenso progresso tecnológico em andamento, haja um desenvolvimento adequado de responsabilidades e valores. Ao invés, segundo o Pontífice, o “paradigma tecnocrático”, que promete um progresso descontrolado e ilimitado, será imposto e até poderá eliminar outros fatores de desenvolvimento, com enormes perigos para toda a humanidade.
Ora, com este encontro sobre “O bem comum na era digital”, os participantes contribuem “para prevenir esta deriva e tornar concreta a cultura do encontro e do diálogo interdisciplinar”. E o Papa vincou:
Muitos de vós sois representantes importantes de vários campos das ciências aplicadas. Por isso, expressais, não apenas competências diferentes, mas também sensibilidades diferentes e várias abordagens diante das problemáticas que, fenómenos como a inteligência artificial, abrem nos setores de sua pertinência.”.
O objetivo principal do encontro é, na ótica do Pontífice, bastante ambicioso: obter critérios e parâmetros éticos básicos, capazes de fornecer orientações sobre as respostas aos problemas éticos suscitados pelo uso invasivo das tecnologias, quando a humanidade enfrenta desafios inauditos e novos, que exigem novas soluções. E Bergoglio ponderou:
Logo, aprecio o facto de vós não terdes medo de declinar, às vezes até de maneira precisa, certos princípios morais, tanto teóricos quanto práticos, no contexto do ‘bem comum’. O bem comum é um bem ao qual todos os homens aspiram.”.
Com efeito, as problemáticas que os encontristas são chamados a analisar dizem respeito a toda a humanidade e exigem soluções urgentes. E, a este respeito, Francisco citou alguns exemplos práticos e atuais como a robótica, instrumento eficiente, utilizado para aumentar os lucros, mas que priva milhares de pessoas do trabalho, colocando em risco a sua dignidade. Outro exemplo é o das vantagens e riscos associados ao uso da “inteligência artificial” em grandes questões sociais. Por isso, o progresso tecnológico exige um olhar, uma reinterpretação e um cuidado em termos éticos. E o Papa afirmou:
Se o chamado progresso tecnológico da humanidade se tornar inimigo do bem comum, poderá levar a uma infeliz regressão e a uma forma de barbárie ditada pela lei dos mais fortes. Portanto, queridos amigos, agradeço pelo vosso trabalho por uma civilização, que busca reduzir as desigualdades económicas, educacionais, tecnológicas, sociais e culturais.
Francisco concluiu a sua alocução expressando, ante os participantes no seminário, o seu apreço pelas bases éticas propostas, que garantem a defesa da dignidade de toda a pessoa humana, em vista do bem comum. Um mundo melhor e mais equitativo – advertiu o Papa – só será possível graças ao progresso tecnológico, se, porém, ele for acompanhado por uma ética baseada na visão do bem comum, na ética de liberdade, na responsabilidade e fraternidade, capaz de promover o pleno desenvolvimento das pessoas em relação à criação.
Na verdade, se as tecnologias ajudam o homem e a comunidade, constituem uma forte mais-valia facilitadora; porém, se absorvem o homem, criando-lhe dependências irresistíveis, ou se são utilizadas de forma perversa ou para fins perversos, serão fator de escravização, despersonalização e mesmo morte.
***
Hoje, antevéspera do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (celebrar-se-á no próximo dia 29, domingo), o esmoler pontifício visitou duas instalações para encontrar milhares de trabalhadores agrícolas, sendo a maioria oriunda da África, que vivem em condições de grave precariedade a nível jurídico, habitacional e de saúde. E esteve entre os braçantes nas plantações de tomate.
Na verdade, o Papa Francisco enviou o seu esmoler, o Cardeal Konrad Krajewski, ao sul da Itália, para visitar os chamados “guetos” da região de Foggia, que abrigam os migrantes empregados na agricultura.
O esmoler, acompanhado do Bispo de San Severo, Dom Giovanni Checchinato, e do Arcebispo de Foggia-Bovino, Dom Vincenzo Pelvi, visitou duas instalações para encontrar milhares de trabalhadores agrícolas, sendo a maioria proveniente da África (principalmente da Nigéria, Gana, Senegal e Gâmbia), que vivem em condições de grave precariedade a nível jurídico, habitacional e de saúde. Com este gesto, lê-se num comunicado da Esmolaria Apostólica, o Pontífice quis manifestar a sua proximidade “a todas essas pessoas vítimas da exploração, da marginalização e da exclusão, levar-lhes uma palavra de esperança e fazer-se voz do seu grito de ajuda”.
Trata-se, segundo o predito comunicado, uma visita que faz ressoar com força as palavras do Papa Francisco na mensagem para este 105.° Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, podendo ler-se:
A resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Mas estes verbos não valem apenas para os migrantes e os refugiados; exprimem a missão da Igreja a favor de todos os habitantes das periferias existenciais, que devem ser acolhidos, protegidos, promovidos e integrados. Se pusermos em prática estes verbos, contribuímos para construir a cidade de Deus e do homem, promovemos o desenvolvimento humano integral de todas as pessoas e ajudamos também a comunidade mundial a ficar mais próxima de alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável que se propôs e que, caso contrário, dificilmente serão atingíveis.”.
O horizonte temporal de julho a setembro concentra a colheita de tomates no sul da Itália. Milhares de trabalhadores sazonais – muitos deles em situação irregular – são empregues nesta atividade e abrigados em instalações improvisadas. São “guetos” sem iluminação, sem rede de esgoto e com escassez de água potável. Trabalha-se o dia inteiro, sob o sol escaldante e com baixíssima remuneração. Grande parte é de migrantes irregulares.
Enfim, estamos visceralmente na linha do atual pontificado: Igreja em saída, misericórdia, atenção aos pobres e cuidado da casa comum. Tudo isto implica a reforma permanente da Igreja – pessoas e estruturas – e um olhar mais amigo do mundo para que se torne cada vez mais com aquilo que Deus sonhou para ele. Mais do que ver os males, cujas raízes há que extirpar, importa pesquisar e contemplar nele os sinais de Deus e as marcas do Verbo seminal.
No Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o Papa Francisco celebrará a Santa Missa na Praça São Pedro, para cuja participação convida com vista a expressar também com a oração “a proximidade aos migrantes e refugiados do mundo inteiro”. De facto, não são apenas migrantes, mas pessoas a quem não pode ser retirada ou diminuída a dignidade humana.
***
Por fim, um evento não menos importante.
Francisco recebeu em audiência, no dia 26, na Sala do Consistório, no Vaticano, 120 participantes da 1.ª Assembleia Geral de Talitha Kum, Rede Internacional da Vida Consagrada contra o tráfico de pessoas – que, este ano, completa este ano dez anos de fundação e vida.
Com efeito, esta organização, constituída como uma das vanguardas da Igreja contra o tráfico de pessoas, nasceu, em 2009, a partir duma intuição missionária da UISG (União Internacional das Superioras Gerais).
Depois de agradecer a saudação da Irmã Gabriella Bottani, coordenadora internacional da rede Talitha Kum, e da Irmã Jolanda Kafka, presidente da UISG, o Pontífice frisou:
“Em apenas dez anos, chegou a coordenar 52 redes de religiosas presentes em mais de 90 países em todos os continentes. Os números de seu serviço falam claro: dois mil agentes, mais de quinze mil vítimas do tráfico ajudadas e mais de duzentas mil pessoas alcançadas com atividades de prevenção e conscientização.”.
De facto, é obra ter, “em apenas dez anos”, a Talitha Kum ter chegado “a coordenar 52 redes de religiosas presentes em mais de 90 países em todos os continentes”. E o Papa, congratulando-se com o organismo pelo trabalho importante que realiza “nesse âmbito tão complexo e dramático”, uma obra que une a missão e a colaboração entre os Institutos, disse: 
Vós escolhestes estar na linha de frente. Por isso, as numerosas congregações que trabalharam e continuam a trabalhar como ‘vanguardas’ da ação missionária da Igreja contra a chaga do tráfico de pessoas, merecem reconhecimento. Trabalhar juntas. É um exemplo. É um exemplo para toda a Igreja, também para nós: homens, sacerdotes e bispos. É um exemplo!”.
Esta é a primeira Assembleia Geral de Talitha Kum e tem como objetivo a avaliação do caminho percorrido e a identificação das prioridades missionárias para os próximos cinco anos. E Francisco recordou às participantes: “Vós decidistes discutir duas questões principais relacionadas com o fenómeno do tráfico nas várias sessões de trabalho”. A primeira considera as grandes diferenças que ainda marcam a condição das mulheres no mundo, que derivam principalmente de fatores socioculturais; e a segunda, os limites do modelo de desenvolvimento neoliberal, que com a sua visão individualista, corre o risco de desresponsabilizar o Estado”. São desafios complexos e urgentes que exigem respostas adequadas e eficazes. 
E o Pontífice vincou solidariamente:
Sei que na vossa assembleia vós vos comprometeis a encontrar soluções, evidenciando os recursos necessários para realizá-las. Aprecio esse trabalho de planeamento pastoral com vista a uma assistência mais qualificada e profícua às Igrejas locais.”.
A propósito, Francisco recordou que a Secção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral publicou recentemente as Orientações Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas”, “um documento que explicita a complexidade dos desafios de hoje e oferece indicações claras para todos os agentes pastorais que desejam implicar-se nesse âmbito”.
Depois, incentivou todos os institutos femininos de vida consagrada que apoiaram o compromisso das suas religiosas na luta contra o tráfico e na assistência às vítimas; encorajou os institutos femininos a prosseguirem nesse compromisso; e apelou também a outras congregações religiosas femininas e masculinas, a “que se unam a essa obra missionária, disponibilizando pessoas e recursos a fim de alcançar todos os lugares”. E disse às participantes:
Espero que se multipliquem as fundações e os benfeitores que garantem o seu apoio generoso e desinteressado às vossas atividades. Nesse convite a outras congregações religiosas, também penso nos problemas que muitas congregações religiosas têm, e talvez algumas possam dizer, tanto femininas quanto masculinas: ‘Temos tantos problemas para resolver dentro, não podemos ...’. Dizei-lhes que o Papa disse que os problemas ‘internos’ são resolvidos saindo para a rua. Que entre ar fresco.”.
E, tendo em conta a extensão dos desafios colocados pelo tráfico de pessoas, pelo que é preciso promover um compromisso sinérgico por parte das diferentes realidades eclesiais, explicou:
Se, por um lado, a responsabilidade pastoral é confiada essencialmente às Igrejas locais e aos Ordinários, por outro, deseja-se que eles saibam envolver no planeamento e na ação pastoral as congregações religiosas femininas e masculinas, e as organizações católicas presentes em seus territórios, a fim de tornar mais rápida e eficaz a obra da Igreja.
Segundo o Papa, “na luta contra o tráfico de pessoas, as congregações religiosas realizam de modo exemplar a sua tarefa de animação carismática das Igrejas locais”. E “as suas intuições e iniciativas pastorais traçaram o caminho de uma resposta eclesial urgente e eficaz”. Ora, este é “o caminho que o Espírito Santo fez: Ele é o autor da desordem na Igreja com muitos carismas e, ao mesmo tempo, é o autor da harmonia na Igreja”;  e é este “um caminho de riqueza”, pois “é estar na Igreja, com os dons do Espírito Santo: é a liberdade do Espírito”.
Por fim, o Papa exortou:
Nunca termineis o dia sem pensardes no olhar de uma das vítimas que vocês conheceram. Esta será uma oração bonita.”.
***
O progresso sustentável e equitativo implica a atenção a todos e a eliminação das estruturas e mecanismos de degradação da dignidade humana, bem como a ecoeconomia, o cuidado da casa comum e a erradicação da pobreza. Tudo isto passa pela promoção da educação, da cultura e da saúde pública e a de cada um. Se as ferramentas tecnológicas servirem este desiderato, teremos um mundo outro: de fraternidade, desenvolvimento, paz, justiça e prosperidade.
Para conseguir a satisfação deste grande objetivo, o Papa acredita que é necessário articular a instituição eclesial estruturada em suas normas com a energia que os organismos carismáticos, dons dos Espírito em prol da comunidade e do mundo, que pululam ao sabor da vitalidade evangélica a criar sinergias.
Se, como diz o povo, em tempo de guerras não se limpam armas, quando a magnitude e extensão dos problemas arrasam, todas as ações são necessárias e exigem rapidez. Tão importante como a prudência é o arrojo!
2019.09.27 – Louro de Carvalho