sexta-feira, 29 de julho de 2022

Acordo Rússia-Ucrânia é bom, mas não resolve crise cerealífera

 

 

A 22 de julho, a Rússia e a Ucrânia, com mediação da Turquia e das Nações Unidas (ONU), assinaram um acordo – válido por 120 vias, mas renovável – sobre a exportação de cereais, através dos portos do Mar Negro, para que esta base alimentar volte aos mercados mundiais – acordo em que não acreditavam os analistas nem os líderes mundiais, porque decorre a guerra e é nula a confiança entre as partes.

O objetivo é garantir a passagem de cereais e de outros bens essenciais, entre os quais o óleo de girassol, de três portos ucranianos, incluindo Odessa, mesmo com a guerra em várias partes do país, bem como a passagem segura de produtos fertilizantes produzidos na Rússia, essenciais para garantia de maior rendimento e de maiores e melhores colheitas.

A Ucrânia, um dos maiores exportadores mundiais de trigo, milho e óleo de girassol, teve as suas exportações suspensas, durante meses, após a invasão russa, embora com exceções criadas em articulação com países limítrofes. A ONU avisara que a guerra agravava a desnutrição e atirava para a fome milhões de pessoas, antecipando os seus altos representantes que os primeiros embarques de cereais pudessem começar logo no dia 23, com a esperança de atingir os níveis de exportação pré-guerra dos três portos ucranianos – uma taxa de cinco milhões de toneladas por mês – dentro de semanas, de modo que o transporte de milhões de toneladas a partir de portos do Mar Negro mitigue a crise alimentar mundial. Porém, em Kiev, continua o ceticismo sobre as intenções da Rússia, embora Mykhailo Podolyak, conselheiro do presidente da Ucrânia, tenha afirmado que o país confia na ONU e na Turquia para acompanhar o cumprimento do acordo.

Uma coligação de funcionários turcos, ucranianos e da ONU monitoriza o carregamento de cereais em embarcações que partirão dos referidos portos e se deslocarão por uma rota pré-planeada através do Mar Negro, minado por forças ucranianas e russas, sem que se possa descartar a hipótese de acidente, como um navio com alimentos atingir uma mina ou um navio russo disparar, por engano, contra uma embarcação com cereais. Contudo, se Russos e Ucranianos quiserem que o acordo funcione, têm as necessárias habilidades profissionais para minimizar os riscos de um desastre não intencional. Navios ucranianos guiam os navios que transportam os cereais, para que naveguem pelas áreas minadas ao longo da costa, usando um mapa, fornecido pela parte ucraniana, com os canais seguros sinalizados. As embarcações cruzam o Mar Negro rumo ao estreito de Bósforo, monitorizadas por um centro de coordenação conjunta em Istambul, com representantes da ONU, da Ucrânia, da Rússia e da Turquia. Os navios que entram na Ucrânia são inspecionados sob a supervisão do mesmo centro de coordenação, para garantir que não carregam armas ou equipamento utilizáveis ​​para atacar o lado ucraniano.

Entretanto, alguns analistas admitem que isto pode constituir uma espécie de “cavalo de Troia”. Com efeito, pode ser impedida a entrada de algumas embarcações nos portos e, apesar das oportunidades, há riscos para os donos dos barcos, ainda que com seguro, acontecendo que nem sempre as tripulações aceitam entrar num país onde decorre uma guerra em larga escala. Por outro lado, embora possa não ser problema garantir a segurança da caravana de embarcações, ao menos do ângulo técnico, pode a Rússia encontrar outra forma de travar as exportações ucranianas, com mais bombardeamentos, arruinando as infraestruturas portuárias de exportação da Ucrânia, para não violar formalmente o acordo, mas impedindo as exportações agrícolas.

É certo que as duas partes firmaram o compromisso de não realizar ataques a qualquer um dos navios comerciais ou a portos envolvidos na exportação de cereais e fertilizantes e que estão presentes nos portos responsáveis da ONU e da Turquia para demarcarem as áreas protegidas pelo acordo. Porém, altos funcionários da ONU disseram, antes da assinatura do acordo, que a retirada de minas da costa da ucraniana não era opção viável e as autoridades ucranianas aduziram que a remoção de minas defensivas do litoral aumentaria a vulnerabilidade a ataques russos. No entanto, o texto final do acordo contém diretrizes para potencial operação de eliminação de minas, a fim de a rota marítima dos navios ser segura, e prevê uma potencial embarcação de busca e salvamento no Mar Negro.  

Em todo o caso, como não foi negociado nenhum cessar-fogo, as embarcações que não sejam alvo de ataques navegam em zona de guerra, pelo que ataques perto dos navios ou nos portos que utilizam podem colocar o acordo em risco. Além disso, é possível a quebra de confiança ou o desacordo entre inspetores e funcionários da coordenação conjunta. E o papel da ONU e da Turquia é mediar essas divergências no local e fazer cumprir o acordo.

Alguns analistas apontam que um dos riscos para Ucrânia e para o mundo é o incumprimento russo, lembrando que a Rússia assinou muitos acordos com a Ucrânia e violou-os várias vezes (alguns países fizeram o mesmo com a Rússia). O mais notório é o acordo de Budapeste, em 1994, de garantia da segurança e da integridade territorial da Ucrânia. E frisam que Vladimir Putin, presidente russo e Sergey Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros afirmaram que “reabrir os portos fortalece a Ucrânia, o que não é do interesse da Rússia”.

No entanto, crê-se que não haverá navios da Marinha russa nas águas dos portos ucranianos, nem inspeções do lado russo dentro das fronteiras ucranianas, pois os turcos assumem o controlo e a Rússia assume obrigações, não com a Ucrânia, mas com a ONU e a Turquia. Além disso, não são apenas as autoridades ocidentais que esperam que a Rússia cumpra o acordo. Também muitos amigos de Moscovo, em África e no Médio Oriente, ficarão furiosos, se o acordo falhar. Assim, a Rússia mostrará que leva a sério o acordo, mas levantará questões sobre a implementação e acusará a Ucrânia de contrabando de armas a bordo dos navios com alimentos, se achar que isso servirá a sua causa junto da opinião pública. No fundo, o acordo interessa-lhe.

O acordo permite libertar, para o mundo, até 50 milhões de toneladas de cereais, quando os stocks estão baixos, o que livrará da fome dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Porém, é de considerar que outros fatores – como a seca, sobretudo em África, mas também em muitos países da Europa e do resto do mundo – estão a elevar os preços dos alimentos, independentemente dos acontecimentos na Ucrânia. Por isso, o acordo resolverá apenas parte do problema. Mesmo assim, é um significativo passo, pois os mercados mundiais já começaram a reagir: os preços, em geral, estão a diminuir, pois os mercados mundiais acreditam no acordo e acham que é exequível.

As exportações darão à Ucrânia dinheiro, emprego, desenvolvimento e capacidade de procurar novas oportunidades. Com o mar desbloqueado, a vida voltará aos portos ucranianos, a Odessa. Muitos retomarão o emprego. Parecendo que se trata apenas de cereais, é um começo importante.

***

Porém, enquanto a frente diplomática fala em avanços no escoamento dos cereais, a realidade é outra. Passados oito dias, inda não saíram dos portos e há agricultores sem dinheiro para rações dos animais. Portugal, à semelhança de muitos outros países, cuja dependência das importações de cereais tem aumentado nos últimos tempos e cuja debilidade das colheitas se espera neste ano, debate-se com o persistente fenómeno da seca severa e, em muitas zonas, extrema, mercê das alterações climáticas, que provocam aquecimento global, aumento do nível das águas oceânicas e liquefação de glaciares, e propiciam ambiente mais favorável à deflagração e alastramento de incêndios florestais, de que resulta a pulverização e a erosão de terras, a rarefação da vegetação e a crassa escassez de água. Por isso, esperava-se que o predito acordo resultasse.

Porém, graças à dificuldade no acesso aos alimentos, designadamente às rações à base de milho importado, bem como à falta de água em muitas explorações nacionais, nem sequer para dar de beber aos animais, há agricultores criadores de gado que se estão a desfazer dos animais: mandam-nos abater ou vendem-nos, com perdas de rendimento, antes do tempo normal. O secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais (IACA), Jaime Piçarra, sustenta que os preços dos cereais continuam muitíssimo dependentes da guerra, a que se junta ainda a relação euro/dólar, com a moeda europeia a enfraquecer, o que, “se é bom para as exportações, penaliza as importações”. E recorda: “Temos ainda a crise energética e a pressão sobre os biocombustíveis. Continuamos com instabilidade e volatilidade, e assim é mais difícil assegurar coberturas [de fornecimento de alimentos] a médio e longo prazo.”

Tudo indica, segundo alguns especialistas, que a pressão sobre os preços está para continuar e, mesmo que a Rússia respeite os acordos e comecem a ser retirados dos portos ucranianos os cerca de 25 milhões de toneladas de cereais, será uma operação logística não realizável numa semana nem num mês. Mais: trata-se de assegurar o escoamento dos cereais do ano passado que estão nos silos portuários, pois os cereais semeados este ano, ainda antes da guerra, irão ter uma fraca produtividade. De facto, os agricultores ucranianos, antes da invasão russa, já vinham a sentir o encarecimento dos fatores de produção. E, com a guerra, estão sem acesso a combustíveis, a máquinas, a fitofármacos e a toda a gama de químicos que normalmente são utilizados nas sementeiras. Em resultado de tudo isto, é esperada uma colheita bastante abaixo das expectativas iniciais, como confirmam por vários agricultores de países vizinhos da Ucrânia.

Entretanto, Sergey Lavrov continua em estado de negação, e no dia 27, em visita a Adis Abeba, capital da Etiópia, afirmando que o seu país não é responsável pelo aumento do preço dos alimentos na sequência da invasão da Ucrânia, rejeitou a “crise alimentar”. E acusou os Estados Unidos da América (EUA) e os países europeus de terem aumentado os preços por fomentarem políticas irresponsáveis ou mesmo acumulado alimentos durante a pandemia de covid-19.

A pari, a Marinha ucraniana afirma que os três portos daquele país designados para proceder às exportações de cereais “retomaram o trabalho”, embora estejam a ser feitos esforços para garantir a segurança dos corredores de passagem. Os EUA fizeram saber que, se a Rússia não permitir o escoamento dos cereais por via marítima, estarão disponíveis a pôr em marcha um ‘plano B’, por via terrestre, embora não tenham apresentado os pormenores. A União Europeia (UE), onde o trigo representa mais de 50% dos cereais cultivados, prevê atingir, em 2022 e 2023, uma exportação recorde na ordem dos 40 milhões de toneladas de cereais. Apesar disso, está a encorajar os Estados-membros a aumentarem as suas produções. E Portugal, que produz 18% dos cereais que consome, quer aumentar os números até ao dobro, a avaliar pelo anúncio de incentivos pelo Governo, através de um plano estratégico para a produção de cereais. É, pois, de aguardar pelos investimentos na inovação e no desenvolvimento tecnológico, melhorar a qualidade dos nossos solos e a disponibilidade de água, visando cereais regados.

Se assim for, podemos a crise será, de facto, uma oportunidade. Porém, será o Governo português capaz das diligências adequadas para que seja reduzida ao mínimo a crise em Portugal, limitando a escassez dos cereais e das forragens, travando a escalada de preços, reforçando as virtualidades do tecido empresarial e robustecendo o setor social e solidário? Ou teremos de concluir pela quase inanidade do Programa Portugal 2020, do ambicioso Programa Portugal 2030 e do corrente Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)?

2022.07.29 – Louro de Carvalho

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