sábado, 23 de julho de 2022

Em colisão com Santos Silva, Chega apela ao Chefe de Estado

 

Em comunicado enviado à comunicação social, o Chega, partido liderado por André Ventura, diz ter pedido uma “audiência com caráter de urgência” ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, alegadamente “devido à falta de isenção e independência” que tem marcado a atuação do presidente da Assembleia da República (AR), Augusto Santos Silva, relativamente ao grupo parlamentar do Chega. Está em causa a condução dos trabalhos, uma das competências regimentais do presidente da AR, e a alegação da sua falta de isenção e independência.

O mal-estar do partido já vem de algum tempo, mas a gota de água foi o episódio que, no âmbito da discussão da proposta de lei que altera a lei dos estrangeiros, no dia 21, levou o seu grupo parlamentar a abandonar o hemiciclo em protesto contra a condução dos trabalhos pelo presidente da AR, por este haver comentado uma intervenção de Ventura sobre estrangeiros em Portugal.

O partido sustenta que se trata de mais um lamentável episódio da parte de Santos Silva em relação ao Chega, demonstrando, uma vez mais, falta de isenção e independência, comportando-se como representante da maioria governativa, quando devia ser o garante do bom funcionamento dos trabalhos parlamentares, do pluralismo e da representatividade democrática. Acusa a segunda figura da hierarquia do Estado de um “comportamento persecutório” em relação ao Chega “desde o início da legislatura” e de uma “atitude de censura” que “desrespeita os cerca de 400 mil portugueses” que votaram nesta força política nas últimas eleições legislativas. E diz entender que está em causa “o normal e regular funcionamento da Assembleia da República e os direitos dos partidos da oposição”.

Em termos mais simples, o Chega aponta a Santos Silva a pretensão de representar o PS nas suas funções, quando o cargo que exerce deveria ser isento e imparcial.

A 8 de abril, na AR, enquanto Ventura fazia generalizações sobre a comunidade cigana, Santos Silva interrompeu-o referindo que “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal”, pedindo-lhe que continuasse a intervenção, “mas respeitando este princípio”. E, a 29 de junho, decidiu não admitir o projeto de lei do Chega sobre prisão perpétua, por considerar que “viola flagrantemente” os princípios da Constituição. Ventura replicou, dizendo que a rejeição do diploma era “má prática política” que não dignifica a Assembleia.

Desta vez, no debate da proposta do governo – mais três projetos de lei do Livre e uma iniciativa do Chega – que altera o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, Ventura acusou o executivo de querer que os imigrantes “venham de qualquer maneira” para Portugal e apontou: “Só há uns que nunca têm prioridade no discurso do Governo, os portugueses que trabalharam toda a vida, que pagam impostos e estão a sustentar o país”.

O líder deste partido chegou mesmo a dizer que os imigrantes que chegam a Portugal não são iguais aos portugueses que emigram para outros países.

Muitos protestos de vários deputados surgiram, pelo que o presidente da AR sentiu-se no dever de intervir e tomou posição: “Devo dizer que, como presidente da Assembleia da República de Portugal, considero que Portugal deve muito, mas mesmo muito aos muitos milhares de imigrantes que aqui trabalham, que aqui vivem e que aqui contribuem para a nossa Segurança Social, para a nossa coesão social, para a nossa vida coletiva, para a nossa cidadania e para a nossa dignidade como um país aberto inclusivo e respeitador dos outros”. E esta declaração suscitou aplausos de deputados de vários grupos, o que deixou isolado o partido contestatário.

Ventura retorquiu, observando que o presidente da AR deveria “abster-se de fazer comentários” sobre as intervenções dos deputados e Santos Silva respondeu que não representa o PS, mas sim “o chão democrático comum desta Assembleia, tal como a Constituição o determina e o Regimento o impõe”. E Santos Silva foi mais claro ainda: “A minha função mais básica é de assegurar o prestígio da Assembleia da República e, sempre que o prestígio da Assembleia da República esteja em causa, pode vossa excelência ter a certeza [de] que eu intervirei”.

Ainda o presidente da AR falava, quando a bancada do Chega abandonou o hemiciclo (o deputado Diogo Pacheco de Amorim saiu uns momentos mais tarde). E, como os deputados do Chega não voltaram ao hemiciclo até ao final da reunião plenária, não participaram nas votações, inclusive de algumas das suas iniciativas.

Mais tarde, em declarações aos jornalistas, o partido defendeu que “a democracia tem de ter espaço para todos os estilos de fazer política”, assumindo que abandonar o plenário em protesto contra o presidente da AR, apesar de ter um custo”, foi decidido “de forma pensada”.

O líder do Chega afirmou que “há uma maioria absoluta e um presidente da Assembleia da República refém dessa maioria” e acusou: “Só implica com o Chega”.

No domingo passado, dia 17, o Chega tinha divulgado um projeto de resolução – que vai ser discutida em setembro (após o fim das férias parlamentares) – em que pretende condenar o comportamento do presidente da AR por ausência de imparcialidade e de isenção no exercício do seu cargo. E Ventura explicou, no dia 21, que “é uma recomendação a um órgão de soberania que censure o presidente” e a AR “vota livremente se quer ou não censurar”.

Assim, o último debate antes das férias parlamentares ficou marcado por (mais) um episódio de tensão entre Ventura, que fala em “censura”, e Santos Silva, que diz tudo fazer para evitar o discurso do ódio na AR. Por seu turno, o Partido Social Democrata (PSD) e a Iniciativa Liberal (IL) falam em processo “apressado”. E, com o Chega ausente da votação, a esquerda (PCP, BE e Livre) a recriar a geringonça e a direita e o PAN a absterem-se, a nova lei dos estrangeiros foi aprovada na AR, num debate marcado pelo confronto entre a bancada do Chega e o presidente da AR, depois de Ventura ter feito uma intervenção fora da caixa parlamentar. Com isto, o Chega acabou mesmo por faltar à votação de um diploma que apresentou.

No fundo, com a aprovação desta lei, o governo pretende, acima de tudo, agilizar processos, porque, segundo o diploma, passará a ser mais fácil a imigrantes vindos de países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) entrar, permanecer e sair de território nacional. Ao mesmo tempo, prevê-se a criação de um título que permita a entrada de pessoas em Portugal que procurem trabalho, válido por um período máximo de seis meses, agilizando assim processos e tornando mais fáceis situações como o trabalho remoto.

Para a deputada social-democrata Sara Madruga da Costa, há “aspetos importantes no diploma” mas há outros que “merecem muitas dúvidas”, como o acompanhamento de menores, e, na ótica do PSD, fica por esclarecer quem efetua a fiscalização do cumprimento da lei. E Patrícia Gilvaz, da IL, censurou “o processo legislativo apressado”, mas dizendo que o partido é favorável a iniciativas que “favoreçam a migração regulada e promovam o desenvolvimento do país”.

***

Nem a Constituição nem o Regimento da Assembleia da República preveem a moção de censura ao presidente da AR, como não preveem a sua destituição nem a da mesa pelo plenário, pelo que não faz sentido o projeto de moção de censura a Santos Silva.

É verdade que o Presidente da República “garante o regular funcionamento das instituições democráticas” (cf. Constituição da República Portuguesa – CRP, art.º 120.º), mas a única medida que pode tomar, para lá da magistratura de influência, é a demissão do governo (cf. CRP, art.º 195.º, n.º 2). Porém, é muito difícil demonstrar o irregular funcionamento das instituições democráticas, pelo que ainda não houve nenhuma demissão do governo com base nesta disposição constitucional. Os Presidentes da República têm preferido a dissolução da AR, que é uma decisão unipessoal a partir da avaliação que fazem da situação política no momento, ainda que seja necessário ouvir os partidos nela representados e o Conselho de Estado (cf. CRP, art.º 133.º, alínea e)), bem como respeitar o estipulado no art.º 172.º, n.º 1, da CRP (a AR não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses após a sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República e na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência). Por isso, o apelo a Marcelo, que nada poderá fazer, não passa de uma atitude de birra, porquanto a separação de poderes é um princípio constitucional e a interdependência dos poderes é exercida nos exatos termos da Constituição (cf. CRP, art.º 111.º). Não se justifica uma mensagem presidencial à AR.

No atinente às competências do presidente da AR, ressalta, nos termos regimentais, “admitir ou rejeitar os projetos e as propostas de lei ou de resolução, os projetos de deliberação e os requerimentos, verificada a sua regularidade regimental, sem prejuízo do direito de recurso para a Assembleia” (art.º 16, n.º 1, alínea c)); residir às reuniões plenárias, declarar a sua abertura, suspensão e encerramento, e dirigir os respetivos trabalhos (art.º 17, n.º 1, alínea a)); e conceder a palavra aos deputados e aos membros do governo e assegurar a ordem dos debates (art.º 17, n.º 1, alínea b)). Isto implica, por um lado, verificar se as iniciativas dos deputados ou do governo não são inconstitucionais, ilegais ou antirregimentais e, por outro, a direção dos trabalhos e a preservação da ordem implicam a observância de regras procedimentais e de conteúdo. Assim, iniciativa legislativa que preveja prisão perpétua ou de tempo demasiado prolongado é manifestamente inconstitucional, bem como qualquer afirmação parlamentar de caráter racista, xenófobo ou discriminatório, isto sem pôr em causa o poder dos deputados de “apresentar projetos de lei, de regimento ou de resolução” e de referendo (cf. CRP, art.º 156.º, alínea b)).

Quanto ao respeito pela dignidade da AR e dos deputados, é um dever de todos os deputados como o é o de participar nas votações (cf. Estatuto dos deputados, art.º 14.º, n.º 1, alíneas e) e c), respetivamente), portanto, igualmente do presidente da AR.

Por fim, é de referir que, em termos formais, os partidos da esquerda e o PSD não cumpriram a disposição regimental de eleição de um vice-presidente e de um secretário, de entre os quatro partidos mais votados, para a mesa da AR, não estando a mesa a funcionar com a totalidade possível dos seus membros (cf. art.º 22.º e n.º 2 do art.º 23.º do Regimento). É, portanto, uma vontade discutível da maioria, decorrente dos números 1 e 5 do art.º 23.º do Regimento.

Ora, um partido que a maioria não deseje não se combate com boicote regimental ou arregimental, mas com o debate e com a definição de políticas públicas que refreiem o populismo e respondam com eficácia às questões em que ele revele mazelas que efetivamente existam na sociedade, de modo que seja sempre a democracia representativa e participativa a ter razão.

Nunca se pode responder à intolerância com intolerância, mas com o debate e a clareza. Mais do que os partidos, talvez Santos Silva não esteja no caminho errado, nesta matéria.

2022.07.22 – Louro de Carvalho

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