Em
comunicado enviado à comunicação social, o Chega, partido liderado por André Ventura, diz ter pedido uma
“audiência com caráter de urgência” ao Presidente da República, Marcelo Rebelo
de Sousa, alegadamente “devido à falta de isenção e independência” que tem
marcado a atuação do presidente da Assembleia da República (AR), Augusto Santos
Silva, relativamente ao grupo parlamentar do Chega. Está em causa a condução
dos trabalhos, uma das competências regimentais do presidente da AR, e a
alegação da sua falta de isenção e independência.
O mal-estar do partido já vem de algum tempo, mas a gota de água foi o
episódio que, no âmbito da discussão da proposta de lei que altera a lei dos
estrangeiros, no dia 21, levou o seu grupo parlamentar a abandonar o hemiciclo
em protesto contra a condução dos
trabalhos pelo presidente da AR, por este haver comentado uma intervenção de
Ventura sobre estrangeiros em Portugal.
O partido sustenta que se trata de mais um lamentável episódio da parte
de Santos Silva em relação ao Chega, demonstrando, uma vez mais, falta de
isenção e independência, comportando-se como representante da maioria
governativa, quando devia ser o garante do bom funcionamento dos trabalhos
parlamentares, do pluralismo e da representatividade democrática. Acusa a
segunda figura da hierarquia do Estado
de um “comportamento persecutório”
em relação ao Chega “desde o início da legislatura” e de uma “atitude de
censura” que “desrespeita os cerca de 400 mil portugueses” que votaram nesta
força política nas últimas eleições legislativas. E diz entender que está em causa “o normal e regular funcionamento
da Assembleia da República e os direitos dos partidos da oposição”.
Em termos mais simples, o Chega aponta a Santos Silva a pretensão de
representar o PS nas suas funções, quando o cargo que exerce deveria ser isento
e imparcial.
A 8 de abril, na AR, enquanto Ventura
fazia generalizações sobre a comunidade cigana, Santos Silva interrompeu-o
referindo que “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal”, pedindo-lhe
que continuasse a intervenção, “mas respeitando este princípio”. E, a 29 de junho, decidiu não admitir o
projeto de lei do Chega sobre prisão perpétua, por considerar que “viola
flagrantemente” os princípios da Constituição. Ventura replicou, dizendo que a
rejeição do diploma era “má prática política” que não dignifica a Assembleia.
Desta vez, no
debate da proposta do governo – mais três
projetos de lei do Livre e uma iniciativa do Chega – que altera o regime jurídico de entrada,
permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional,
Ventura acusou o executivo de querer que os imigrantes “venham de qualquer
maneira” para Portugal e apontou: “Só há uns que nunca têm prioridade no
discurso do Governo, os portugueses que trabalharam toda a vida, que pagam
impostos e estão a sustentar o país”.
O
líder deste partido chegou mesmo a dizer que os imigrantes que chegam a
Portugal não são iguais aos portugueses que emigram para outros países.
Muitos protestos de vários deputados surgiram, pelo que o presidente da
AR sentiu-se no dever de intervir e tomou posição: “Devo dizer que, como presidente da Assembleia da República de Portugal,
considero que Portugal deve muito, mas mesmo muito aos muitos milhares de
imigrantes que aqui trabalham, que aqui vivem e que aqui contribuem para a
nossa Segurança Social, para a nossa coesão social, para a nossa vida coletiva,
para a nossa cidadania e para a nossa dignidade como um país aberto inclusivo e
respeitador dos outros”. E esta declaração suscitou aplausos de deputados de
vários grupos, o que deixou isolado o partido contestatário.
Ventura retorquiu, observando que o presidente da AR deveria “abster-se
de fazer comentários” sobre as intervenções dos deputados e Santos Silva
respondeu que não representa o PS, mas sim “o chão democrático comum desta
Assembleia, tal como a Constituição o determina e o Regimento o impõe”. E
Santos Silva foi mais claro ainda: “A minha função mais básica é de assegurar o prestígio
da Assembleia da República e, sempre que o prestígio da Assembleia da República
esteja em causa, pode vossa excelência ter a certeza [de] que eu intervirei”.
Ainda o
presidente da AR falava, quando a bancada do Chega abandonou o hemiciclo (o deputado Diogo Pacheco de
Amorim saiu uns momentos mais tarde). E, como
os deputados do Chega não voltaram ao hemiciclo até ao final da reunião
plenária, não participaram nas votações, inclusive de algumas das suas
iniciativas.
Mais tarde, em
declarações aos jornalistas, o partido defendeu que “a democracia tem de ter
espaço para todos os estilos de fazer política”, assumindo que abandonar o
plenário em protesto contra o presidente da AR, apesar de ter um custo”, foi
decidido “de forma pensada”.
O
líder do Chega afirmou que “há uma maioria absoluta e um presidente da
Assembleia da República refém dessa maioria” e acusou: “Só implica com o
Chega”.
No domingo passado, dia 17, o Chega
tinha divulgado um projeto de resolução – que vai ser discutida em setembro
(após o fim das férias parlamentares) – em que pretende condenar o
comportamento do presidente da AR por ausência de imparcialidade e de isenção
no exercício do seu cargo. E Ventura explicou, no dia 21, que “é uma recomendação a um órgão de
soberania que censure o presidente” e a AR “vota livremente se quer ou não
censurar”.
Assim, o último debate antes das
férias parlamentares ficou marcado por (mais) um episódio de tensão entre
Ventura, que fala em “censura”, e Santos Silva, que diz tudo fazer para evitar
o discurso do ódio na AR. Por seu turno, o Partido Social Democrata (PSD) e a
Iniciativa Liberal (IL) falam em processo “apressado”. E, com o Chega ausente
da votação, a esquerda (PCP, BE e Livre) a recriar a geringonça e a direita e o
PAN a absterem-se, a nova lei dos estrangeiros foi aprovada na AR, num debate
marcado pelo confronto entre a bancada do Chega e o presidente da AR, depois de
Ventura ter feito uma intervenção fora da
caixa parlamentar. Com isto, o Chega acabou mesmo por faltar à votação de
um diploma que apresentou.
No fundo, com a aprovação desta lei,
o governo pretende, acima de tudo, agilizar processos, porque, segundo o diploma, passará a ser mais
fácil a imigrantes vindos de países da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP) entrar, permanecer e sair de território nacional. Ao mesmo tempo, prevê-se a criação de
um título que permita a entrada de pessoas em Portugal que procurem trabalho,
válido por um período máximo de seis meses, agilizando assim processos e
tornando mais fáceis situações como o trabalho remoto.
Para a deputada social-democrata Sara
Madruga da Costa, há “aspetos importantes no diploma” mas há outros que
“merecem muitas dúvidas”, como o acompanhamento de menores, e, na ótica do PSD,
fica por esclarecer quem efetua a fiscalização do cumprimento da lei. E Patrícia
Gilvaz, da IL, censurou “o processo legislativo apressado”, mas dizendo que o
partido é favorável a iniciativas que “favoreçam a migração regulada e promovam
o desenvolvimento do país”.
***
Nem a
Constituição nem o Regimento da Assembleia da República preveem a moção de
censura ao presidente da AR, como não preveem a sua destituição nem a da mesa
pelo plenário, pelo que não faz sentido o projeto de moção de censura a Santos
Silva.
É verdade que o
Presidente da República “garante o regular funcionamento das instituições
democráticas” (cf. Constituição da
República Portuguesa – CRP, art.º 120.º), mas a única medida que pode
tomar, para lá da magistratura de influência, é a demissão do governo (cf. CRP, art.º 195.º, n.º 2). Porém, é muito
difícil demonstrar o irregular funcionamento das instituições democráticas,
pelo que ainda não houve nenhuma demissão do governo com base nesta disposição
constitucional. Os Presidentes da República têm preferido a dissolução da AR,
que é uma decisão unipessoal a partir da avaliação que fazem da situação política
no momento, ainda que seja necessário ouvir os partidos nela representados e o
Conselho de Estado (cf. CRP, art.º
133.º, alínea e)), bem como respeitar
o estipulado no art.º 172.º, n.º 1, da CRP
(a AR não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses após a sua eleição, no
último semestre do mandato do Presidente da República e na vigência do estado
de sítio ou do estado de emergência). Por isso, o apelo a Marcelo, que nada
poderá fazer, não passa de uma atitude de birra, porquanto a separação de
poderes é um princípio constitucional e a interdependência dos poderes é
exercida nos exatos termos da Constituição (cf. CRP, art.º 111.º). Não se justifica uma mensagem presidencial à AR.
No atinente às
competências do presidente da AR, ressalta, nos termos regimentais, “admitir ou rejeitar
os projetos e as propostas de lei ou de resolução, os projetos de deliberação e
os requerimentos, verificada a sua regularidade regimental, sem prejuízo do direito
de recurso para a Assembleia” (art.º 16, n.º 1, alínea c)); residir às reuniões plenárias, declarar a sua abertura,
suspensão e encerramento, e dirigir os respetivos trabalhos (art.º 17, n.º 1,
alínea a)); e conceder a palavra aos
deputados e aos membros do governo e assegurar a ordem dos debates (art.º 17,
n.º 1, alínea b)). Isto implica, por
um lado, verificar se as iniciativas dos deputados ou do governo não são
inconstitucionais, ilegais ou antirregimentais e, por outro, a direção dos
trabalhos e a preservação da ordem implicam a observância de regras
procedimentais e de conteúdo. Assim, iniciativa legislativa que preveja prisão
perpétua ou de tempo demasiado prolongado é manifestamente inconstitucional,
bem como qualquer afirmação parlamentar de caráter racista, xenófobo ou
discriminatório, isto sem pôr em causa o poder dos deputados de “apresentar
projetos de lei, de regimento ou de resolução” e de referendo (cf. CRP, art.º 156.º, alínea b)).
Quanto ao respeito
pela dignidade da AR e dos deputados, é um dever de todos os deputados como o é
o de participar nas votações (cf. Estatuto
dos deputados, art.º 14.º, n.º 1, alíneas e) e c), respetivamente),
portanto, igualmente do presidente da AR.
Por fim, é de
referir que, em termos formais, os partidos da esquerda e o PSD não cumpriram a
disposição regimental de eleição de um vice-presidente e de um secretário, de
entre os quatro partidos mais votados, para a mesa da AR, não estando a mesa a
funcionar com a totalidade possível dos seus membros (cf. art.º 22.º e n.º 2 do
art.º 23.º do Regimento). É,
portanto, uma vontade discutível da maioria, decorrente dos números 1 e 5 do art.º
23.º do Regimento.
Ora, um partido que
a maioria não deseje não se combate com boicote regimental ou arregimental, mas
com o debate e com a definição de políticas públicas que refreiem o populismo e
respondam com eficácia às questões em que ele revele mazelas que efetivamente
existam na sociedade, de modo que seja sempre a democracia representativa e
participativa a ter razão.
Nunca se pode
responder à intolerância com intolerância, mas com o debate e a clareza. Mais
do que os partidos, talvez Santos Silva não esteja no caminho errado, nesta
matéria.
2022.07.22 – Louro de Carvalho
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