domingo, 3 de julho de 2022

Um Chefe de Estado visita um país a convite do seu homólogo

 

 

As notícias destacaram a desmarcação de um encontro, com almoço, do Presidente do Brasil com o Presidente português. Não é a primeira vez que tal acontece. E não sei se a culpa é do temperamento instável de Bolsonaro ou se é da falta de observância do protocolo por Marcelo. Talvez seja por isso que não se levantou qualquer incidente diplomático.

Um grupo de 21 autores portugueses e dois chefs de cozinha desembarcaram no Brasil, para “uma experiência dos sentidos”, no dizer da entidade organizadora.

Quase 200 anos depois da independência, um grupo de portugueses desembarca no Brasil, desta vez, a convite para a 26.ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que começou no dia 2 de julho, no Expo Center Norte, foi visitada, no dia três, pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e dura até 10 de julho.

O grupo inclui 21 autores portugueses e de países africanos de língua oficial portuguesa mais dois chefs de cozinha que, ao longo de nove dias e 60 atividades, da literatura à gastronomia, da cultura aos negócios, tentarão estreitar laços culturais com o país anfitrião.

Portugal escolheu como mote para a sua participação a frase “É Urgente Viver Encantado”, de Valter Hugo Mãe, um dos escritores portugueses mais conhecidos no Brasil e a quem se se juntaram: Paulina Chiziane, primeira escritora africana a receber o Prémio Camões, Matilde Campilho, grande sensação da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2015, Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto, vencedores do Prémio Literário José Saramago, o historiador Rui Tavares, Kalaf Epalanga, Maria Inês Almeida, Afonso Cruz, Joana Bértholo, António Jorge Gonçalves, Dulce Maria Cardoso, Filipe Melo, Francisco José Viegas, Lídia Jorge, Luís Cardoso, Maria do Rosário Pedreira, Pedro Eiras, Ricardo Araújo Pereira, Teolinda Gersão, Valério Romão, Vítor Sobral e André Magalhães.

Para o presidente da Câmara Brasileira do Livro, entidade organizadora do evento, “os autores portugueses sempre tiveram a melhor recetividade no Brasil”, pois, “além da proximidade da língua e dos costumes, o facto de um número crescente de brasileiros escolherem Portugal como segunda pátria, nos últimos anos, criou referências e laços culturais ainda mais fortes”.

A ideia de oferecer aos cerca de 600 mil visitantes previstos uma programação multicultural que mescla literatura, gastronomia, cultura e negócios deve-se, segundo Vítor Tavares, “aos sentidos”, pelos quais passa “a experiência literária do indivíduo”. E cada vez mais a Bienal serve de ponto de encontro dos principais atores do mundo editorial e revela a vocação para promover networking, aprofundar-se em aspetos fundamentais do setor, contribuir para a profissionalização de toda a cadeia e fortalecer boas práticas de gestão junto dos empreendedores.

A este propósito, o embaixador de Portugal no Brasil declarou que “o turismo, a gastronomia, os próprios negócios que se fazem à volta dos livros, contribuem de modo relevante, no âmbito da chamada economia criativa, para a divulgação de um país” e que “o Portugal de hoje, moderno e competitivo, tem muito a mostrar”. E referiu que ser Portugal convidado de honra da Bienal é prova da amizade entre dois países soberanos que fizeram da sua herança maior a Língua Portuguesa, usada por mais de 280 milhões de falantes. Segundo o embaixador, “ao longo dos séculos de história que nos unem, houve momentos de encantamento, momentos de desânimo, momentos quentes e momentos frios”. E a realidade dos dias de hoje diz-nos que a comunidade brasileira em Portugal é a maior comunidade estrangeira.

E o presidente da Câmara Brasileira do Livro diz que, no fundo, a Bienal será bem-sucedida se “todo o mundo sair melhor do que entrou” (slogan geral desta edição).

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A comunicação social também relevou o facto de o avião que levou o Chefe de Estado ao Brasil ser um Airbus A330neo decorado com a cruz de Cristo e batizado de “Santa Cruz” – o mesmo nome do hidroavião Fairey III com que em 1922 os dois oficiais da Marinha fizeram a última parte da viagem e chegaram ao Rio de Janeiro. Diz a TAP que se trata de celebrar “a coragem e a visão destes heróis portugueses e a união entre as duas nações”,

A TAP repete, cem anos depois, o “voo histórico” de Sacadura Cabral, piloto, e Gago Coutinho, navegador, que, abrindo caminho “às viagens aéreas com precisão científica, graças a uma inovação de um simples sextante adaptado a um horizonte artificial”, “marcou para sempre a aviação moderna, numa aventura de 4.527 milhas que ligou, pela primeira vez, pelo ar, Lisboa e o Rio de Janeiro e, para sempre, Portugal e o Brasil”.

Em 1922, aqueles dois portugueses fizeram “mais de 60 horas de voo e oito escalas”, em três hidroaviões – “Lusitânia”, “Portugal” e “Santa Cruz” –, aventura iniciada a 30 de março e concluída em 17 de junho. Agora, realizou-se a viagem, mas sem escalas, em cerca de oito horas.

Neste voo comercial especial, juntamente com Marcelo, viajaram o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Francisco André. E a TAP assinala que Sacadura Cabral sugeriu a travessia aérea do Atlântico Sul, em 1919, para comemorar o primeiro centenário da independência do Brasil e levou três anos a preparar.

Aclamados entusiasticamente como heróis em todas as cidades brasileiras onde estiveram, os aeronautas portugueses haviam concluído com êxito, não apenas a primeira travessia do Atlântico Sul, mas, pela primeira vez na História da Aviação, tinha-se viajado sobre o Oceano Atlântico apenas com o auxílio da navegação astronómica a partir do aeroplano.

Embora a viagem tenha consumido setenta e nove dias, o tempo de voo foi de apenas sessenta e duas horas e vinte e seis minutos, tendo percorrido um total de 8 383 quilómetros. E a viagem serviu de inspiração para os raides posteriores de Sarmento de Beires, João Ribeiro de Barros e de Charles Lindberg, todas em 1927.

No dia 3, no Rio de Janeiro, Marcelo Rebelo de Sousa descerrou, na Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, no Rio de Janeiro, uma placa comemorativa alusiva à celebração dos 100 anos da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul e homenagearam-se os dois militares portugueses, Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Depois, interveio, elogiando o corajoso feito daqueles portugueses baseado na ciência, e descerrou uma placa numa sessão comemorativa dos cem anos da travessia aérea do Atlântico Sul, na zona portuária no centro da cidade. Cantou o hino nacional e também o do Brasil, invocou os heróis Gago Coutinho e Sacadura Cabral, “um teórico e um prático”, mas “tão iguais na epopeia de Portugal e do Brasil, aliás mais do que epopeia foi uma odisseia”. À época, foi uma vitória da ciência e de uma tecnologia inédita até então” – a “vitória da vontade, da força de dois servidores das forças armadas portuguesas”. Recordou que “a imprensa desses dias escrevera que “a expedição foi um beijo que atravessa um oceano” e, “para realçar “a unidade entre dois povos”, frisou que, “hoje, diríamos talvez um abraço que não atravessa, mas que está presente nos dois lados do oceano”.

Cem anos depois da Travessia do Atlântico Sul “celebramos a epopeia, mas também os 200 anos de independência dessa grande potência chamada Brasil”, afirmou o Presidente português, para quem “a ousadia, a solidariedade e visão são o que ainda hoje constrói um futuro melhor”.

Depois, o Presidente da República teve uma receção à comunidade portuguesa, no consulado geral português, em Botafogo, antes de seguir para São Paulo, onde participa na abertura oficial da 26.ª Bienal Internacional do Livro, que tem, nesta edição, Portugal como país homenageado.

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Não faltam, pois, motivos para Portugal estar bem representado no Brasil. Porém, algo não foi acautelado. Um chefe de Estado visita outro país a convite do seu homólogo desse país. Se Bolsonaro convidou Marcelo e desmarcou o encontro com ele em Brasília, não honrou as normas da hospitalidade do Estado visitado. Ao invés, se Marcelo foi ao Brasil a convite da entidade que organizou a Bienal do Livro, sem a concordância de Bolsonaro, não honrou o estatuto do visitante e do visitado. Não terá sido assim, pois o encontro entre Bolsonaro e Marcelo esteve marcado e era justo que ocorresse em nome da relação dos dois países, que é o que está em causa.

O pretexto parece ter sido o facto de o Presidente Marcelo se ter encontrado com o candidato presidencial Lula da Silva, de ideologia e praxe antagónicas das de Bolsonaro. Isso já aconteceu noutra ocasião, o que deveria ter motivado o Presidente português a repensar os contactos no Brasil. Porém, chamado à atenção para o facto de a ida do coração de Dom Pedro IV ao Brasil poder criar suscetibilidades em período pré-eleitoral, respondeu que nós sabemos distinguir as coisas. Pois, sim, mas era preciso ter a certeza de que os outros também o sabem e querem fazer, até porque, em política, o que parece é.

E é pena que isto tenha acontecido e vá acontecendo. Porém, a relação entre países estabelece-se e mantém-se entre os respetivos poderes instituídos, não entre os poderes candidatos.

Marcelo pode estar no Brasil com quem entender, mas o Presidente da República de Portugal não deve desafiar o poder instalado no Palácio do Planalto, até porque segundo alguns órgãos de comunicação social a visita é oficial. Algo falha no protocolo dos dois Estados.

2022.07.03 – Louro de Carvalho

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