As
notícias destacaram a desmarcação de um encontro, com almoço, do Presidente do
Brasil com o Presidente português. Não é a primeira vez que tal acontece. E não
sei se a culpa é do temperamento instável de Bolsonaro ou se é da falta de observância
do protocolo por Marcelo. Talvez seja por isso que não se levantou qualquer
incidente diplomático.
Um grupo de
21 autores portugueses e dois chefs de cozinha desembarcaram
no Brasil, para “uma experiência dos sentidos”, no dizer da entidade organizadora.
Quase 200
anos depois da independência, um grupo de portugueses desembarca no Brasil, desta
vez, a convite para a 26.ª edição da Bienal Internacional do Livro de São
Paulo, que começou no dia 2 de julho, no Expo Center Norte, foi visitada, no
dia três, pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e dura até 10 de
julho.
O grupo
inclui 21 autores portugueses e de países africanos de língua oficial
portuguesa mais dois chefs de cozinha que, ao longo de nove
dias e 60 atividades, da literatura à gastronomia, da cultura aos negócios,
tentarão estreitar laços culturais com o país anfitrião.
Portugal
escolheu como mote para a sua participação a frase “É Urgente Viver Encantado”,
de Valter Hugo Mãe, um dos escritores portugueses mais conhecidos no Brasil e a
quem se se juntaram: Paulina Chiziane, primeira escritora africana a receber o
Prémio Camões, Matilde Campilho, grande sensação da Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip) de 2015, Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto,
vencedores do Prémio Literário José Saramago, o historiador Rui Tavares, Kalaf
Epalanga, Maria Inês Almeida, Afonso Cruz, Joana Bértholo, António Jorge
Gonçalves, Dulce Maria Cardoso, Filipe Melo, Francisco José Viegas, Lídia
Jorge, Luís Cardoso, Maria do Rosário Pedreira, Pedro Eiras, Ricardo Araújo
Pereira, Teolinda Gersão, Valério Romão, Vítor Sobral e André Magalhães.
Para o
presidente da Câmara Brasileira do Livro, entidade organizadora do evento, “os
autores portugueses sempre tiveram a melhor recetividade no Brasil”, pois, “além
da proximidade da língua e dos costumes, o facto de um número crescente de
brasileiros escolherem Portugal como segunda pátria, nos últimos anos, criou
referências e laços culturais ainda mais fortes”.
A ideia de
oferecer aos cerca de 600 mil visitantes previstos uma programação
multicultural que mescla literatura, gastronomia, cultura e negócios deve-se, segundo
Vítor Tavares, “aos sentidos”, pelos quais passa “a experiência literária do
indivíduo”. E cada vez mais a Bienal serve de ponto de encontro dos principais
atores do mundo editorial e revela a vocação para promover networking,
aprofundar-se em aspetos fundamentais do setor, contribuir para a
profissionalização de toda a cadeia e fortalecer boas práticas de gestão junto
dos empreendedores.
A este
propósito, o embaixador de Portugal no Brasil declarou que “o turismo, a
gastronomia, os próprios negócios que se fazem à volta dos livros, contribuem
de modo relevante, no âmbito da chamada economia criativa, para a divulgação de
um país” e que “o Portugal de hoje, moderno e competitivo, tem muito a mostrar”.
E referiu que ser Portugal convidado de honra da Bienal é prova da amizade
entre dois países soberanos que fizeram da sua herança maior a Língua
Portuguesa, usada por mais de 280 milhões de falantes. Segundo o embaixador, “ao
longo dos séculos de história que nos unem, houve momentos de encantamento,
momentos de desânimo, momentos quentes e momentos frios”. E a realidade dos
dias de hoje diz-nos que a comunidade brasileira em Portugal é a maior
comunidade estrangeira.
E o
presidente da Câmara Brasileira do Livro diz que, no fundo, a Bienal será
bem-sucedida se “todo o mundo sair melhor do que entrou” (slogan geral desta
edição).
***
A comunicação social também relevou o facto de o avião que
levou o Chefe de Estado ao Brasil ser um Airbus A330neo decorado com a cruz de
Cristo e batizado de “Santa Cruz” – o mesmo nome do hidroavião Fairey III com
que em 1922 os dois oficiais da Marinha fizeram a última parte da viagem e
chegaram ao Rio de Janeiro. Diz a TAP que se trata de celebrar “a coragem e a
visão destes heróis portugueses e a união entre as duas nações”,
A TAP repete, cem anos depois, o “voo histórico” de Sacadura
Cabral, piloto, e Gago Coutinho, navegador, que, abrindo caminho “às viagens
aéreas com precisão científica, graças a uma inovação de um simples sextante
adaptado a um horizonte artificial”, “marcou para sempre a aviação moderna,
numa aventura de 4.527 milhas que ligou, pela primeira vez, pelo ar, Lisboa e o
Rio de Janeiro e, para sempre, Portugal e o Brasil”.
Em 1922, aqueles dois portugueses fizeram “mais de 60 horas
de voo e oito escalas”, em três hidroaviões – “Lusitânia”, “Portugal” e “Santa
Cruz” –, aventura iniciada a 30 de março e concluída em 17 de junho. Agora, realizou-se
a viagem, mas sem escalas, em cerca de oito horas.
Neste voo comercial especial, juntamente com Marcelo, viajaram
o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e o secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Francisco André. E a TAP assinala que Sacadura
Cabral sugeriu a travessia aérea do Atlântico Sul, em 1919, para comemorar o
primeiro centenário da independência do Brasil e levou três anos a preparar.
Aclamados
entusiasticamente como heróis em todas as cidades brasileiras onde estiveram,
os aeronautas portugueses haviam concluído com êxito, não apenas a primeira
travessia do Atlântico Sul, mas, pela primeira vez na História da Aviação,
tinha-se viajado sobre o Oceano Atlântico apenas com o auxílio da navegação
astronómica a partir do aeroplano.
Embora a
viagem tenha consumido setenta e nove dias, o tempo de voo foi de apenas
sessenta e duas horas e vinte e seis minutos, tendo percorrido um total de 8
383 quilómetros. E a viagem serviu de inspiração para os raides
posteriores de Sarmento de Beires, João Ribeiro de Barros e de Charles
Lindberg, todas em 1927.
No dia 3, no Rio de Janeiro, Marcelo Rebelo de Sousa descerrou, na Orla Prefeito Luiz Paulo
Conde, no Rio de Janeiro, uma placa comemorativa alusiva à celebração
dos 100 anos da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul e homenagearam-se os
dois militares portugueses, Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Depois,
interveio, elogiando o corajoso feito daqueles portugueses baseado na ciência,
e descerrou uma placa numa sessão comemorativa dos cem anos da travessia aérea
do Atlântico Sul, na zona portuária no centro da cidade. Cantou o hino nacional e também o do Brasil,
invocou os heróis Gago Coutinho e Sacadura Cabral, “um teórico e um prático”,
mas “tão iguais na epopeia de Portugal e do Brasil, aliás mais do que epopeia
foi uma odisseia”. À época, foi uma vitória da ciência e de uma tecnologia
inédita até então” – a “vitória da vontade, da força de dois servidores das
forças armadas portuguesas”. Recordou que “a imprensa desses dias escrevera que
“a expedição foi um beijo que atravessa um oceano” e, “para realçar “a unidade
entre dois povos”, frisou que, “hoje, diríamos talvez um abraço que não
atravessa, mas que está presente nos dois lados do oceano”.
Cem anos depois da Travessia do
Atlântico Sul “celebramos a epopeia, mas também os 200 anos de independência
dessa grande potência chamada Brasil”, afirmou o Presidente português, para
quem “a ousadia, a solidariedade e visão são o que ainda hoje constrói um
futuro melhor”.
Depois, o Presidente da República teve uma receção à
comunidade portuguesa, no consulado geral português, em Botafogo, antes de seguir
para São Paulo, onde participa na abertura oficial da 26.ª Bienal Internacional
do Livro, que tem, nesta edição, Portugal como país homenageado.
***
Não faltam,
pois, motivos para Portugal estar bem representado no Brasil. Porém, algo não foi
acautelado. Um chefe de Estado visita outro país a convite do seu homólogo
desse país. Se Bolsonaro convidou Marcelo e desmarcou o encontro com ele em
Brasília, não honrou as normas da hospitalidade do Estado visitado. Ao invés,
se Marcelo foi ao Brasil a convite da entidade que organizou a Bienal do Livro,
sem a concordância de Bolsonaro, não honrou o estatuto do visitante e do
visitado. Não terá sido assim, pois o encontro entre Bolsonaro e Marcelo esteve
marcado e era justo que ocorresse em nome da relação dos dois países, que é o
que está em causa.
O pretexto
parece ter sido o facto de o Presidente Marcelo se ter encontrado com o candidato
presidencial Lula da Silva, de ideologia e praxe antagónicas das de Bolsonaro. Isso
já aconteceu noutra ocasião, o que deveria ter motivado o Presidente português
a repensar os contactos no Brasil. Porém, chamado à atenção para o facto de a ida
do coração de Dom Pedro IV ao Brasil poder criar suscetibilidades em período
pré-eleitoral, respondeu que nós sabemos distinguir as coisas. Pois, sim, mas
era preciso ter a certeza de que os outros também o sabem e querem fazer, até
porque, em política, o que parece é.
E é pena que
isto tenha acontecido e vá acontecendo. Porém, a relação entre países estabelece-se
e mantém-se entre os respetivos poderes instituídos, não entre os poderes candidatos.
Marcelo pode
estar no Brasil com quem entender, mas o Presidente da República de Portugal
não deve desafiar o poder instalado no Palácio do Planalto, até porque segundo alguns
órgãos de comunicação social a visita é oficial. Algo falha no protocolo dos dois
Estados.
2022.07.03 – Louro de Carvalho
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