Soam palavras em catadupa, corre
tinta escura e desfilam imagens em célere cortejo sobre a guerra Rússia-Ucrânia.
A onda de destruição, de morte e de fuga é deveras objetiva. A palavra de ordem
é só uma: condenação. E justifica-se a vaga de fundo solidária, humana, diplomática
e militar.
Simultaneamente, criaram-se
dois focos de pensamento único. Do lado da Rússia, a guerra (aliás, operação
militar especial na Ucrânia) tinha de se fazer, porque o Ocidente vem
hostilizando a idiossincrasia do povo eslavo, depois de ter contaminado aquela
enorme região do globo com as (des)vantagens do liberalismo político-económico.
E quem recusa, em idade adequada, a mobilização para a guerra sai de cena ou é
ostracizado. Ao mesmo tempo, quem não alinha pela lógica da necessidade e da
justeza da guerra é silenciado. Do lado do Ocidente, para lá da atitude condenatória
da guerra, o pensamento único, que paulatinamente foi construído, é o de que a
culpa é toda da Rússia, pelo que merece toda a cadeia de sanções económicas,
sem que se pense no efeito de ricochete sobres os países que as estabelecem, e a
Ucrânia merece todo o apoio político e a cooperação militar e paramilitar que o
Ocidente lhe possa dar.
Enquanto a Rússia acusa o
Ocidente de ter rasgado os acordos de não estender para leste a NATO (sigla
inglesa para Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a União Europeia (UE),
o lado de cá acusa a Rússia de Vladimir Putin de ditadura, de ambição expansionista,
em compensação da tragédia decorrente da desagregação da URSS (União das
República Socialistas Soviéticas).
Entretanto, a ONU (Organização
das Nações Unidas), obteve corredores humanitários para a saída de cidadãos que
são vítimas indiretas das operações militares e que não podem nelas participar,
logrou, recentemente, a celebração de um acordo entre a Rússia e a Ucrânia sobre
a exportação de cereais para os países que são clientes tradicionais. Não nos
iludamos: este acordo interessava à Rússia.
Fala-se de Putin como fragilizado,
eventualmente doente e com uma grave crise nas forças armadas. Porém, se não
tomou Kiev, nem destituiu o poder estabelecido na Ucrânia, soma vitórias nas
regiões ucranianas filorrussas e no boicote dos acessos dos Ucranianos ao Mar
Negro. Ao mesmo tempo, a Ucrânia, a Suécia e a Finlândia querem integrar a NATO;
e a Ucrânia e a Moldova já conseguiram, a 23 de junho, o estatuto de candidato
à UE, na esteira do que foi acontecendo com Albânia, Montenegro, República da
Macedónia do Norte, Sérvia e Turquia.
É tentador explicar tragédias e grandezas da História
pelo que fazem os homens que lideram coletivos humanos. Se a comunidade enfrenta
uma crise ou ambiciona algo de que não dispõe, ajoelha-se ante um D. Sebastião.
Se não o encontra a jeito, clama: “Faltam líderes”. E, quando uma tragédia de
origem humana se abate sobre um povo, o dedo incriminatório é apontado ao líder.
É o que sucede com Putin. Ora, para compreender a sua liderança, não basta
analisar o homem, pois a liderança é mais do que o líder. Interessa, pois,
considerar as crenças e expectativas dos liderados, bem como o contexto. O surgimento
de Donald Trump só se entende, se se prestar atenção ao caldo social, político e
económico que carateriza os Estados Unidos da América (EUA): custo de vida,
racismo, desigualdades, falta de um sistema de saúde equitativo.
Em meados da década de 2000, Alexander Motyl rotulou a Rússia de quase-fascista
ou protofascista, o que, não sendo consensual, ajuda a perceber o que se passa
na Ucrânia e que abalou a crença na democracia e no progresso económico, dados
como garantidos.
Qualquer estado autoritário (e o de Putin é-o) se alicerça na burocracia do
Estado e na centralidade das forças armadas e da polícia política. Destrói as
marcas da democracia, nomeadamente a separação de poderes e as liberdades de
expressão, de associação e de imprensa. O Estado totalitário eleva ao máximo as
caraterísticas do autoritarismo, a fim de controlar a quase totalidade do
espaço público e do privado, com base numa ideologia abrangente que atravessa as
numerosas facetas da vida dos cidadãos, das organizações e das empresas. No
topo, senta-se o líder, rodeado de bufos e bajuladores, destruidor de qualquer laivo
de dissonância. Já o Estado fascista, que integra as marcas do autoritarismo e
do totalitarismo, apresenta notas peculiares. O líder goza de genuíno carisma,
gerador de acrítica e emocional adulação popular generalizada, nutrido pelo culto
da personalidade. Assim, a Espanha de Franco, o Chile de Pinochet e a Grécia
dos coronéis eram Estados autoritários. A Itália de Mussolini, a China de Xi
Jinping, a Alemanha de Hitler e a URSS de Estaline, podem ser denominadas como
fascistas.
Motyl concluiu que a Rússia de Putin se encaixa nesta definição, pois desmantelou
as instituições democráticas que estavam a despontar, foi desacreditando e
submetendo os opositores a bullying político, impedindo-lhes a
candidatura a eleições, e submeteu ao terror do controlo as liberdades de
expressão, de associação e de imprensa. Há indícios de que as eleições não são
livres nem justas e as sondagens são manipuladas, de modo que, se não agradam
ao poder, são escondidas.
Porém, a personalidade de Putin não explica tudo. A Rússia, como país muito
extenso é sensível a tentações separatistas, pelo que é gerida com mão de
ferro, na convicção de que a desordem, que sempre espreita, requer ordem
provinda de líderes fortes. Assim, é palco de uma sucessão de líderes
autocratas que gerem um Estado paternalista que se imiscui em muitas esferas da
vida.
Há cerca de uma década, o Concílio Mundial do Povo Russo (em que participam
altos dirigentes religiosos, políticos e militares), cujo dirigente é Kirill,
patriarca de Moscovo e de toda a Rússia e primaz da Igreja Ortodoxa Russa,
apoiante de Putin na guerra da Ucrânia, aprovou a declaração que decreta quem é
russo: “Russo é aquele que se considera russo; que não possui outras
preferências étnicas e que pensa em língua russa; que reconhece no cristianismo
ortodoxo a base da cultura espiritual nacional; que sente solidariedade com o
destino do povo russo.”
Em vários setores e estratos da Rússia, campeia a ideologia
hipernacionalista e supremacista que glorifica a guerra e a violência,
entroniza o passado da “Grande Nação Russa” e a sua coragem para combater o inimigo.
Durante séculos, este conceito foi tido como “uma missão de natureza divina”
para proteger outros eslavos e a ortodoxia. Apesar de o contexto ter mudado, integrar
um grande poder é símbolo da autoestima nacional e da mentalidade russa. Os Russos
estão cientes da grandeza, do status e do
prestígio do país, o que legitima o direito da Rússia de impor a sua vontade
sobre territórios vizinhos, pela negação da soberania desses povos, com fundamentos
alegadamente históricos. Ora, polícia política, elite militar, parlamento
controlado e burocracia corrupta fazem o núcleo do sistema governado pelo líder
incumbido de sustentar ou restaurar a grandeza da Rússia e o direito “natural” de
impor a vontade russa sobre as forças do mal.
Será absurdo chamar fascista a nação que lutou, a expensas de muito sangue
pátrio, contra o fascismo, mas é facto histórico que Estaline cooperou com
Hitler, por inconveniente que essa realidade seja para Putin, para a Rússia e
para os partidos comunistas. A II Guerra Mundial é um elemento do mito,
arquitetado por Putin, sobre a inocência russa e a grandeza perdida.
Dizem alguns que, na Rússia do século XXI, a expressão “antifascismo” representa
o direito de um líder russo definir os inimigos nacionais. Assim, para Putin e para
os que o rodeiam, são fascistas e nazis os que se opõe ao plano russo de
destruição da Ucrânia. Segundo tal lógica, os Ucranianos são nazis, por ousarem
contrariar a vontade do líder ungido por Deus para vencer o mal. Por isso, a
Ucrânia, fonte do mal, deve ser colonizada por uma Rússia, que é inocente.
A liderança de Putin é, pois, mais do que ele. Como todos os tipos de
lideranças, a malignidade emerge da interação entre líderes e liderados, num
determinado contexto, sob três vértices.
O líder maligno tende a ser desprovido de empatia e emoldurado pela ambição
de poder, às vezes com missões ditas virtuosas. O narcisismo do líder, como o
seu sentido de omnisciência, reforça tal impulso. Este líder pode ser mesmo um
psicopata sagaz que manipula os liderados e os observadores, até que tudo venha
à tona. Com o decurso do tempo, captura as instituições e remove pesos e
contrapesos ao poder. Justifica-se com a necessidade de remover obstáculos à
prossecução da missão, assumindo que a sua pessoa e o povo são indissociáveis,
pelo que ataca as instituições, a separação de poderes e as liberdades. Os
instintos do autocrata estão acima da lei e das instituições. E temos o caldo
que produz a perpetuação no poder e domina o processo de liderança, ou porque a
soberba toma conta do líder, ou porque este fica manietado pelo medo de perder
a vida se abandonar a função. Assim, quanto maior é o receio do líder, maior é
a paranoia contra os inimigos, reais ou imaginários; e, quanto mais violenta é
a repressão, maior é o desejo de vingança dos opositores, gerando-se uma
espiral progressivamente destrutiva.
O segundo vértice da malignidade é a coroa das pessoas ressabiadas,
desprovidas de empatia, entusiasmadas com a liderança “forte” que decide por
elas. Estas pessoas entregam-se aos ditames do líder de forma acrítica,
legitimando-lhe as malfeitorias e os dislates éticos. No processo, surgem
seguidores oportunistas, cientes de que, para se manterem no círculo do poder,
têm de mostrar lealdade pessoal ao líder, pelo que acabam por apoiar, ativa ou passivamente,
a malignidade. Este tipo de líder rodeia-se de bajuladores que lhe dizem o que ele
deseja ouvir. Com o decurso do tempo, a tomada de decisões baseia-se em
informação incompleta e agrava-se o isolamento do líder perante a realidade.
O terceiro vértice é o contexto. A liderança maligna emerge quando a
situação induz os liderados a depositarem esperanças no líder salvador. Quando
a autoestima ou a identidade do povo se sente ameaçada por inimigos externos, o
povo entrega-se nas mãos do redentor. Alguns são dotados de um faro particular
para os descontentamentos, o que os leva a cavalgar a frustração dos liderados
e a prometer-lhes um futuro que resgate o orgulho perdido.
Entretanto, face a obstáculos provindos dos inimigos e desleais, o líder e os
liderados diabolizam a discordância. Para a vencer, o líder manda e os
liderados aceitam a remoção de pesos e contrapesos institucionais. Assim, os
tribunais ou o parlamento são empobrecidos, ainda que, na aparência, se
mantenha a separação de poderes. E o líder dispõe das condições para se
perpetuar no poder e, se necessário, mudar a Constituição. Este desastre
institucional é reforçado por outro efeito que emerge quando o líder promete
resgatar o orgulho perdido e restaurar a ordem: as vitórias iniciais do líder,
que o inebriam, tal como aos liderados. Tornando-se hiperautoconfiante, o líder
subestima os riscos das suas destemidas, ou mesmo temerárias, ações. A certo
momento, a inebriação coletiva gera a perda de discernimento, que induz a
escalada de violência, que pode conduzir à destruição irracional do inimigo e à
decadência coletiva. E, quando a paranoia impera, o líder não se importa se
levar os liderados consigo para o túmulo, pois quem não continua a luta, ainda
que inglória, não merece viver sem o líder.
***
Por
sua vez, Volodymyr Zelensky, que passou de ator a chefe de Estado, em 2019, em
virtude de campanha antissistema, ganhou a simpatia dos líderes ocidentais e da
comunicação social e tem servido de provedor do povo, liderando esta realidade trágica.
E porquê? Vendo o perigo de uma guerra sem retorno, voltou-se para a UE, que
ofereceu o estatuto de candidato ao país, e para a NATO, que, embora não haja efetivado
a integração da Ucrânia, vem, desde há muito, armando e treinando o seu exército
(já entrou ela na Ucrânia), dantes, face à iminência de agressão russa, agora,
perante a invasão. Assim, se Putin elegeu aquele país como terreno de confronto
com a NATO, esta serve-se dele como palco de confronto com a Rússia. E fica
entre a espada e a parede a Ucrânia, entalada por conflito que pensa ganhar (ninguém
quer negociar), mas que pode custar a paz à Europa e ao mundo, fruto da ambição
hegemónica de dois blocos tornados antagónicos.
2022.07.25 – Louro de Carvalho
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