O Presidente da República (PR), no discurso de posse do governo, a 2 de
abril, insinuou a necessidade de entendimento entre a força partidária vencedora
das eleições, a Aliança Democrática (AD), e o Partido Socialista (PS), ao
vincar que o eleitorado, que se mobilizou, em força, para a mudança, votou no
centro moderado, rejeitando radicalismos de um ou de outro lado.
E, passando ao lado do seu conceito de hemisfério (pois não há hemisférios
quando a esfera não está dividida em duas partes iguais), é de notar que o chefe
de Estado frisou que a AD ganhou por muito pouco e que o partido que, antes,
deteve a maioria parlamentar perdeu por quase nada.
É óbvio que, em termos aritméticos, a direita parlamentar detém a maioria
absoluta dos mandatos. Porém, o primeiro-ministro (PM), quer em campanha
eleitoral, quer depois das eleições, sempre assegurou que não faria coligação
com a direita radical. O “não é não” de Montenegro ficou como palavra de honra,
que parece corresponder à maioria sociológica portuguesa e às expectativas da
União Europeia (UE).
Esta situação de não maioria parlamentar, mas em que há maioria de direita
e minoria de esquerda, e em que ninguém parece querer uma solução de bloco
central, coloca alguns problemas táticos. Um partido que, põe como condição
para apoio ao governo a entrada de filiados seus no elenco governamental ou a
adoção de suas opções de bandeira, só servirá para a tomada de medidas mais
radicais da AD. Um partido como o PS, que joga em dois tabuleiros – não alinhar
em coligações negativas contra o governo, sem solução alternativa, e persistir
em liderar a oposição política à atividade política da AD – arrisca-se a ficar
para a memória coletiva confundido com o governo ou responsabilizado pela inviabilização
de medidas que o país considere úteis para a resolução dos problemas que o apoquentam.
Uma coisa é certa: o PS deixa passar o programa do governo.
Há, contudo, uma série de leis prometidas à UE, no âmbito do Plano de Recuperação
e Resiliência (PRR) e no Portugal 2030, que valem muitos milhões de euros, pelo
que não podem deixar de ser levadas a cabo. Por outro lado, há legislação já em
vigor, que mereceu críticas dos anteriores partidos da oposição e que não podem
ser revertidas, sob pena de perda de muito dinheiro, a menos que o atual ministro
dos Negócios Estrangeiros – que tutela a área dos Assuntos Europeus –, com a
sua efetiva e propalada experiência europeia, consiga convencer Bruxelas da
bondade dos desejos do governo.
O secretário-geral do PS prometeu não inviabilizar o programa de governo,
disponibilizou-se para um orçamento retificativo, que seja elaborado até ao
verão e que concretize as negociações de várias carreiras da Administração
Pública (polícias, professores, militares, funcionários judiciais, guardas prisionais,
bombeiros profissionais, etc.), e fechou com Luís Montenegro um acordo inédito,
para repartir pelos dois partidos a presidência da Assembleia da República (AR),
desbloqueando o impasse institucional provocado pelo Chega e pela AD, cujos
líderes não negociaram. Todavia, a 27 de março, aos deputados do PS e aos
jornalistas quis vincar o aviso, para “que não haja ilusões sobre o futuro da
política, em Portugal: o PS não será o suporte de um governo da AD e é bom que
isso fique claro para todos”.
Só que há um considerável pacote de legislação que promete forçar mais de
uma dezena de acordos entre PS e o governo: as leis que o ex-PM António Costa
prometeu a Bruxelas para, em troca, obter financiamento para o PRR.
António Costa, ao assinar com Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão
Europeia, o plano operacional do PRR, sabia que os compromissos assumidos pelo
governo tinham campo aberto para serem implementados: o governo ia dispor de
maioria absoluta, com a qual podia, ainda que sozinho, fazer passar na AR até
as leis mais polémicas com que se tinha comprometera. Uma delas passou assim,
há pouco mais de meio ano: a reforma que forçou várias ordens profissionais a
aceitar rever as regras de acesso às profissões, ainda que sob protesto de muitas
e com vetos do PR pelo meio, que, aliás, adiaram a entrega de 800 milhões de
euros, quando foram processados os pagamentos da terceira tranche e da quarta.
Atualmente, com uma crise política, a que se seguiu uma AR muito dividida,
as contas são mais complicadas. O governo mudou e o seu líder fez campanha a
avisar que gostaria de rever algumas partes do PRR, que não teve o seu acordo,
mas, prometendo acelerar a sua execução, para receber os dinheiros. Talvez por
isso o eleitorado não tenha oferecido à AD a maioria absoluta!
Ora, o PSD devia saber como é difícil negociar com a UE. Por outro lado, sem
o apoio firme do Chega e com as muitas críticas que André Ventura tem feito ao
PRR, precisará do apoio do PS para aprovar, na AR, mais de uma dezena de leis
que foram prometidas a Bruxelas. A pressão enorme virá de autarcas, de
empresários, da equipa que está a fiscalizar a execução do PRR e do interior do
próprio partido. Com efeito, há ainda 15225211 milhões de euros por receber,
respeitantes a seis tranches que se prolongam até 2026.
O PS limita-se a dizer, agora, que vai “avaliar” todas as medidas que forem
à AR. Porém, como estão na sua bancada parlamentar vários membros do Executivo
de António Costa, incluindo Mariana Vieira da Silva, que tutelou o PRR, e
tendo Pedro Nuno Santos integrado o governo ao tempo da negociação do PRR,
dificilmente o PS poderá votar contra as medidas que desenhou no seu governo,
sobretudo quando passem pela AR e coloquem em causa o PRR.
É certo que nem todas as medidas inscritas no plano terão de passar pela
AR, como é o caso das que têm a ver com reorganização do Serviço Nacional de
Saúde (SNS). Porém, mesmo que sejam tomadas por decreto-lei, podem ser
apreciadas na AR, a pedido de 10 deputados; e alguns dos casos que têm de
passar pela AR são sensíveis. Tal é o caso da revisão dos benefícios fiscais
existentes, para determinar quais acabarão (processo a ser lançado já, mas com
fim previsto em 2026), ou o da criação da prestação social única, que pode
mudar, por exemplo, as condições de acesso e/ou os valores e que já tem grupo
de trabalho nomeado pelo PS para a começar a estudar.
Nestes dois últimos cenários, o trabalho preparatório demorará, ficando as
linhas precisas das reformas mais em aberto. Mais urgente é o novo regime de
avaliação dos funcionários públicos, que promete tensão com os sindicatos e implicará
mais despesa orçamental e que terá de entrar em vigor ainda este ano.
Há reformas a que o governo terá de dar prioridade máxima, pois os
dinheiros da UE chegam por semestres. Uma delas é a legislação sobre o mercado
de capitais, que tem de passar na AR; outra, que desbloqueará parte relevante
da quinta tranche do PRR, é a reforma da Administração Pública. Na declaração
que António Costa fez, a 25 de março, após o Conselho de Ministros especial com
o PR, justificou os atrasos no PRR por o seu governo ter estado em gestão e não
querer comprometer a orgânica do novo governo. Esta reforma implicará a fusão
de vários organismos de apoio aos ministérios, como os gabinetes de planeamento
e os gabinetes jurídicos, assim como as secretarias-gerais, limitando o número
de dirigentes e pretendendo aumentar e eficácia da gestão política. O PM ainda
não se pronunciou, mas é certo que recebeu esse dossiê na passagem de pasta de
António Costa, no fim da tarde de 27 de março.
Mais difícil será uma eventual renegociação do PRR em curso com a UE. A
margem é reduzida, pois houve renegociação a meio de 2023 e não está nenhuma
nova renegociação no horizonte. No futuro, talvez se possa abrir um processo
desse tipo com todos os países, mas será sempre fundamental a concretização dos
marcos acordados.
O chefe de Estado avisou que o tempo é curto para a magnitude do que há a
fazer e tendo em conta a situação de guerra que o Mundo e a Europa vivem e que
pode alterar a situação económica boa que o país tem. Por isso, acreditando na
capacidade do governo, que terá sempre o apoio do PR, aliás como os governos anteriores,
advertiu que é perigoso alterar o que está bem, mas é imperioso corrigir o que
é necessário corrigir e melhorar o que precisa de melhoria.
***
O posto de trabalho de um PM não será extinto por
falta de problemas a resolver, como disse António Costa, na conferência de
imprensa de despedida. E ao novo PM não faltará que fazer, a começar pelas
reivindicações de vários grupos de trabalhadores da função pública.
Ao
fim de oito anos, António Costa pretendeu arvorar-se em gestor de quatro crises
na política corrente e em propulsionador de sete mudanças estruturais. Deixou
as contas certas, que incluem o crescimento “dez vezes superior” aos 15 anos
anteriores, o maior excedente da democracia, de 1,2%, a que correspondem mais
de 3,2 mil milhões de euros, e o indicador de que mais se orgulha: o aumento das
qualificações, a taxa de desemprego em mínimos, a taxa de emprego em máximos e
o aumento das receitas da Segurança Social. A sua prestação de contas, vista
como propaganda por muitos, no PSD, foi uma forma de vincar que o seu capital
político não se esgota com o fim do seu terceiro governo.
As palavras de Costa, que pretende que sejam lidas
no âmbito institucional, configuram um acerto de contas com o passado. Com Luís
Montenegro em Bruxelas, deixou claro que tinha ido sossegar as instituições
europeias com a mensagem de estabilidade e de tranquilidade, o que não fizeram consigo,
quando assumiu o cargo de chefe do governo, em 2015; e, na despedida, salientou
que, ao iniciar funções estava preocupado com o défice, não com o excedente (preocupação
de alguns).
Com alguns, no PSD, a acusarem a “pressão” ao
dizerem que o excedente serve para o PS criar a ideia de que “há dinheiro para
tudo”, o PM cessante quis deixar a ideia de que a herança financeira é também
política, ao permitir “liberdade” de escolha.
Outra
herança é o investimento, muito dele em obras inscritas no PRR. Num resumo de
pasta de transição, Costa deixou escrito que muito do que Montenegro vai
inaugurar fica pronto pelo seu Executivo – ao invés do que tinha, quando chegou
ao governo. É o caso dos hospitais (Alentejo e Sintra, à beira de serem
inaugurados), mas também na ferrovia, na habitação pública (32 mil casas em
construção ou em concurso) e em residências estudantis (40 prontas até ao fim
do ano).
Outro
ponto é o facto de o governo do PS ter deixado a dívida abaixo dos 100% e as
empresas públicas a darem lucro, como a TAP (177 milhões de euros), a Caixa
Geral de Depósitos (CGD) e a CP – Comboios de Portugal. Ironicamente, A TAP e a
CP são duas empresas que estavam na tutela de Pedro Nuno Santos, o ministro que
se sentiu obrigado à demissão.
António
Costa disse não querer condicionar o primeiro-ministro, que recebeu, em São
Bento, a 27 de março, quando ainda era indigitado. Prometeu-lhe “total
colaboração, neste período de transição”, e desejou-lhe “as maiores felicidades
pessoais e políticas”. Contudo, deixou-lhe pressão com significado político ou
não tivesse sido a receção da Comissão Técnica Independente (CTI), que analisou
as localizações para o novo aeroporto um dos seus últimos atos no cargo: o governo
da AD pode resolver, “a qualquer instante”, a localização do novo aeroporto. É
um caso que o PR não esqueceu no seu discurso de 2 de abril.
***
Entretanto, alguns partidos já apresentaram
prioridades legislativas para o novo ciclo político. Bloco de Esquerda (BE), Partido
Comunista Português (PCP) e Iniciativa Liberal (IL) foram os primeiros. Só a AD
e o PS, centrados na tática, ainda não apresentaram iniciativas legislativas. O
Chega avançou com a problemática das forças de segurança; a IL quer reverter o programa
“Mais Habitação; o BE quer uma comissão parlamentar de inquérito à atuação da
Global Media Group; o PCP os aumento do salário
mínimo (mil euros, neste ano) e das reformas e pensões (7,5%) e os lucros da
banca a suportar o aumento das taxas de juro do crédito à habitação; o Livre
quer o excedente orçamental a combater a pobreza; e o partido Pessoas-Aninais-Natureza
(PAN) quer o combate cerrado à violência, nomeadamente a doméstica e a atinente
aos animais.
Não obstante estas prioridades, os partidos
referidos já apontam para o cumprimento de todas as promessas eleitorais. Vamos
ver se há dinheiro e vontade política, na AR e no governo.
2024.04.03
– Louro de Carvalho
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