É proverbial a ironia do Papa Francisco por
trás do seu reconhecimento de que está sozinho nas escolhas pastorais corajosas, como na recente concessão de
bênçãos religiosas, embora não litúrgicas, a casais em situação irregular à Igreja,
incluindo os casais de pessoas do mesmo sexo. Também parece deixar transparecer
um certo medo, misturado
com amargura, ao perceber
que grandes setores da Igreja, incluindo alguns dos mais praticantes, não o
seguem.
A este respeito,
o teólogo Vito Mancuso aborda a crescente solidão de Bergoglio, tendo como pano de
fundo a sua participação no programa Che tempo che fa.
Os apelos do Papa pelo meio ambiente e pela paz caem regularmente no
vazio. Todavia, ainda que as suas advertências não sejam acolhidas, é certo que não há, no Mundo, outra autoridade moral
e espiritual como a sua. E essa capacidade de questionar o poder político e
económico, mesmo com o risco de fracasso, constitui o destino de Francisco.
É um extraordinário comunicador cuja solidão induz
um sentimento de ternura. É bom termos um Papa que, apesar da dificuldade em
governar e em se fazer ouvir nos níveis mais altos, é capaz de sintonizar, como poucos, sobre os
problemas dos homens e das mulheres do nosso tempo, de escrever poderosas
encíclicas em defesa da criação e da Humanidade, fáceis de compreender,
mas difíceis de levar à prática. Afinal, a solidão de Bergoglio é a dos profetas que escutam a voz de
Deus e olham além das contingências.
A solidão papal era
obrigatória nos tempos de Pio IX e Pio XII, quando o Pontífice era
distante das pessoas. Agora, desaparecido, há décadas, o plural majestático (nós)
e banida a cadeira gestatória, o facto de o Papa estar isolado é problema eclesial.
O próprio Francisco percebeu
que não faltam os que, profanando o sentido genuíno da oração, já não rezam por
ele, mas contra ele.
Não acertou
totalmente as contas com as forças efetivas à sua disposição na Igreja. Em mais
de dez anos de pontificado, criticou publicamente as condutas da Cúria
Romana. É como se um primeiro-ministro criticasse, publicamente, os seus
ministros. Daí resulta que não recebe especial simpatia do seu executivo,
embora haja honrosas exceções.
Além disso, persiste um
contínuo descontentamento à direita católica e à esquerda, com a primeira a
censurá-lo por ter desconsiderado a Tradição e a segunda por falta de coragem. É paradigmática a questão da bênção a
casais em situação irregular: por um lado, o Pontífice aprova-as; por outro, logo em seguida, especifica que
devem ser feitas rapidamente e sem publicidade. Aparenta que desejaria isto,
mas que não pode, o que se mostra difícil de se conciliar com o sentido último
da religião. Com efeito, quem acredita, precisa de pontos firmes de apoio à fé.
Sobre esta matéria, chegou-se até a um documento do episcopado africano
substancialmente contrário ao que estabelecido pelo Papa – quase um unicum na
História da Igreja. É sintoma
de que desapareceu o princípio de autoridade, outrora expresso na frase “Roma locuta, causa finita”. Todavia,
foi o próprio Francisco quem
contribuiu para o destruir, com a sua insistência sobre a colegialidade e
sobre a sinodalidade. Infelizmente, a Igreja mostra que não está preparada para
acolher estas mudanças. Se Bento
XVI era um teólogo e menos um Papa, o seu sucessor é um profeta, mais do que um
Pontífice.
***
Já o jornalista Francesco Peloso
sustenta que Francisco está cada vez mais sozinho e talvez isolado, não confiando
em quase ninguém. Com efeito, faz e desfaz com base em critérios que podem ser compreendidos
ou que podem ser difíceis de entender; dá entrevistas em quais cede a várias polémicas
e avança, sem hesitação, rumo ao Jubileu de 2025, um ano cheio de eventos.
A solidão papal aparenta ser a
condição em que se encontra, de momento, o líder da Igreja católica, mas trata-se
de solidão mais procurada do que imposta.
Muitas das últimas decisões do Papa Bergoglio,
além de serem surpreendentes no mérito, contradizem a vontade de afirmar
o princípio
sinodal na vida da Igreja.
Assim, depois de ter chamado, no verão passado,
a Roma,
um dos poucos colaboradores em quem parece confiar, o cardeal argentino Víctor
Fernández, atual prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF),
o Papa avança, a passos rápidos para dar corpo à visão de Igreja descrita
e anunciada, muitas vezes, ao longo da última década. Porém, há atitudes que
parecem ir em detrimento do sínodo geral da Igreja, convocado
pelo Papa argentino, para chegar a escolhas mais partilhadas e colegiais,
envolvendo também os leigos no processo. Às vezes, até parece que esse estilo
de atuação em Igreja já não é uma prioridade.
Além disso, o Pontífice entrou numa dinâmica de “pressa”,
provavelmente cônscio de que o seu tempo à frente da Igreja, ultrapassado o
limiar de 87 anos, não será muito. Terá, segundo alguns, feito uma mudança de
volta inteira (de 360 graus) na sua forma de proceder, tornando-se mais um papa
soberano e um pouco menos bispo de Roma. Não obstante, não deixa de assumir o perfil
de pastor, que assoma, pelo menos, em dois aspetos: na multiplicidade das vezes
em que abandona o discurso escrito e passa ao improviso, mais em consonância com
situação aqui e agora; e na constante preocupação com os temas que asfixiam a
vida no Mundo.
Não pode passar eclipsado o facto de Bergoglio ter
acelerado em alguns temas, depois da morte de Bento XVI.
A presença do Papa Emérito foi pesada para Francisco, mais do que transpareceu.
Prova disso é a nomeação para o DDF – o
instrumento principal da ação teológica e de governo de Ratzinger –
precisamente do Cardeal Fernández, acompanhada de uma carta do Papa a
declarar encerrado o período do antigo Santo Ofício como órgão
de controlo: “A Igreja”, escrevia o Papa Francisco, em julho de
2023, “precisa de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua
compreensão da verdade, sem que isso implique impor uma forma única de a
expressar. Porque as diferentes linhas de pensamento filosófico, teológico e
pastoral, quando se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor,
também podem fazer a Igreja crescer. Esse crescimento harmonioso preservará a
doutrina cristã de forma mais eficaz do que qualquer mecanismo de controlo.”
É, pois, o contrário do que Ratzinger fizera, primeiro, como prefeito e,
depois, como Papa. Assim se chega, em poucos meses, à “ Fiducia supplicans”,
o documento que permite a bênção dos casais em situação irregular,
e, recentemente, à “Dignitas infinita”, a declaração sobre a dignidade humana,
talvez algo confusa nos conteúdos, apesar dos cinco anos de desenvolvimento, o
que, se, por um lado confirma a doutrina clássica da Igreja sobre temas
eticamente sensíveis, como o aborto, a eutanásia, a teoria de género, por outro
lado, na orientação bergogliana, associa esses temas às grandes questões
sociais da época: a guerra, a pobreza, o tráfico de seres humanos, a violência
contra as mulheres, etc. Assim, estabelece que não há uma espécie de verdade
“maior” e outra de verdade “menor”, na defesa da vida e da moral.
Também no caso, não parece que os protestos
que surgiram no Mundo católico LGBTQ pela facilidade com que foi “liquidada”
a discussão sobre a diversidade sexual – pelo Papa que maior sensibilidade mostrara
sobre o assunto – voltando ao clássico bíblico “Deus os criou homem e
mulher", afetem em muito a Santa Sé, interessada em desmantelar a
abordagem de quem o havia precedido, mais do que em desenvolver uma discussão
em sentido sinodal. Entretanto, da Alemanha e de outros ambientes
católicos “liberais” no Mundo, chegaram ataques violentos contra a parte bioética da Declaração, sinal de que
adicionar temas sociais em chave progressista, mantendo intacto o arcabouço tradicionalista no
restante, é artifício que difícil de incorporar.
Também a referência ao vínculo entre Francisco e Bento XVI,
reivindicada por Bergoglio em várias entrevistas, retratando um Bento XVI, o
aliado mal aconselhado, quando não manipulado, por Monsenhor Georg Gänswein, seu
secretário, descrito como uma espécie de Rasputin na corte vaticana, não só não
é muito credível, dado o calibre da personagem, mas também parece ser o
indicador do desconforto vivido ao longo do pontificado pelo Papa argentino,
que pouco transpareceu. Além disso, Francisco vai nomear núncio apostólico Gäswein,
para encerrar o caso.
Finalmente, mais um golpe de freio ao Sínodo, que
deveria marcar nova etapa no caminho da reforma empreendida pelo Concílio Vaticano II,
foi dado por Francisco, ao instituir dez grupos de trabalho –
sobre os temas que emergiram da primeira fase da assembleia sinodal, do ecumenismo
a “algumas questões teológicas e canónicas, em torno de formas
ministeriais específicas” (incluindo o diaconato feminino) – que acompanharão o
sínodo até à fase final de outubro, mas depois (surpresa) os seus trabalhos
continuarão até junho de 2025 e, sobretudo, serão coordenados pelos diversos
dicastérios da Cúria Romana. Resta saber que peso real que terão, a esse
ponto, as resoluções tomadas pela assembleia sinodal, em outubro próximo.
Além disso, entre as decisões
surpreendentes tomadas pelo Papa, no último período, está a
defenestração de cardeal vigário para a diocese de Roma, Angelo De Donatis,
nomeado penitenciário-mor (um papel menor na Cúria) e, por isso, demitido do
cargo que ocupava. De Donatis tem 70 anos, quando o limite canónico que
obriga a apresentar a renúncia à liderança de uma diocese para um bispo é de 75
anos, sem considerar que, se não houver óbices particulares, o Papa, muitas
vezes, concede alguns anos de prorrogação. Ao despedir o vigário mais
cedo, Francisco fez
um ato com poucos precedentes históricos, o que em si não é escandaloso, mas
não são claras as razões da escolha do Pontífice. E, há um ano, Francisco havia
promulgado uma nova constituição apostólica, “In ecclesiarum communione”,
com a qual reorganizava a sua diocese, destituindo o cardeal vigário e
atribuindo os poderes ao vice-gerente, um dos bispos auxiliares (atualmente, Monsenhor Baldassarre Reina)
que, em vários assuntos, incluindo os de caráter administrativo, agora responde
ao bispo de Roma, ou seja, ao próprio Papa.
Não é por acaso que o Pontífice decidiu adiar a nomeação de
novo cardeal vigário. A razão prende-se, provavelmente, com uma auditoria contabilística
iniciada, em 2021, pelo gabinete do auditor geral da Santa Sé, sobre
a diocese
de Roma.
Entre as coisas a avaliar, estavam os balancetes finais e de previsão, bem como
vários aspetos da administração e dos procedimentos, como investimentos
financeiros, gestão do património, incluindo imóveis e recursos humanos.
Nada se sabe sobre os resultados dessa investigação interna, como
é um mistério bem guardado a verdadeira situação financeira da diocese do Papa,
a qual, segundo se especula, estará à beira da falência. Porém, são apenas
rumores, para já.
De Donatis também
acabou no olho do furacão pela gestão desajeitada do caso de Marko Ivan Rupnik,
ex-jesuíta artista-teólogo, acusado de abusos sexuais e de poder, por numerosas
freiras pertencentes à comunidade Loyola, que o próprio fundou. O jesuíta
– que também contou com o apoio de Bergoglio, durante muito tempo – foi,
defendido por De Donatis, durante o tempo todo; por outro lado, os seus
mosaicos adornam a capela do seminário maior de Roma, obra cujos custos não são
conhecidos. Além disso, na diocese da capital italiana, não se sabe qual é a
situação do tema abusos e, também nesse aspeto, a transparência não o forte da
casa.
Francisco,
portanto, está cada vez mais sozinho e isolado. Não se pode governar de
joelhos, disse Francisco, nos últimos meses, referindo-se aos
problemas de saúde que o afligem, há tempo, e aos rumores recorrentes daqueles
que falaram de renúncia, mas talvez a questão esteja agora a tornar-se
mais amplificada. Aliás, já dispôs que pretende ser sepultado, não no Vaticano,
mas na Basílica de Santa Maria Maior (pela sua devoção à Virgem “Salus Populi
Romani”) e que, se renunciar, ficará com o título de Bispo Emérito de Roma.
***
A solidão é a sina dos grandes
homens, que agradam a poucos. E, quanto à sinodalidade, um estilo que se impõe à
Igreja como uma das suas marcas ônticas, é de advertir que se trata de caminho
difícil (com altos e baixos), parecendo que, às vezes, há mais pedras do que
caminho. Por isso, a sinodalidade e a colegialidade precisam de ser calibradas
com indicadores claros de firmeza, de trabalho intenso e de autoridade não
fragilizada.
2024.04.16 – Louro de Carvalho
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