“A Igreja antiga encontrou, na
escultura do seu tempo, a figura do pastor que carrega a ovelha nos próprios
ombros. Talvez estas imagens façam parte do sonho idílico da vida campestre que
tinha fascinado a sociedade dessa época. No entanto, para os cristãos, esta
figura tornava-se, com toda a naturalidade, a imagem daquele que se encaminhou
para buscar a ovelha tresmalhada, a Humanidade; a imagem daquele que nos
acompanha nos nossos desertos e nas nossas confusões; a imagem daquele que
tomou sobre os seus ombros a ovelha perdida, que é a Humanidade, e a leva para
casa. Ela tornou-se a imagem do verdadeiro Pastor, Jesus Cristo.”
Bento
XVI, Vaticano, 7 de Maio de 2006
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O 4.º domingo da Páscoa é considerado o “Domingo do
Belo (Kalós, em grego) ou Bom
Pastor”, pois todos os anos, neste domingo, somos convidados a escutar um
trecho do capítulo 10 do Evangelho de João, que mostra Jesus como “o Belo
Pastor”, pois conhece e ama as suas ovelhas, cuida delas, em cada passo do
caminho, e dá a vida por elas, se for necessário. Por sua vez, as ovelhas de
Jesus sabem que podem confiar n’Ele, incondicionalmente. Ele chama-as pelo nome
de cada uma e cada uma ouve a sua voz e segue-O.
O evangelista utiliza esta imagem para uma catequese
sobre a missão de Jesus: a obra do Messias é levar os homens a pastagens
verdejantes e a fontes cristalinas de onde brota a Vida em plenitude.
Literariamente falando, este discurso simbólico
assenta em materiais do Antigo Testamento (AT), e, em especial, no texto de Ez
34, como chave da compreensão da metáfora do pastor e do rebanho.
Falando aos exilados da Babilónia, Ezequiel observa
que os líderes de Israel, maus pastores, levaram o Povo por caminhos de sofrimento,
de injustiça e de morte, mas o próprio Deus assumirá a condução do seu Povo: colocará
à frente do rebanho um Belo Pastor (o “Messias”), que o livrará da escravidão e
o conduzirá à Vida. Esta promessa de Deus cumpre-se em Jesus.
Segundo João, Jesus teria pronunciado o “discurso do
Belo Pastor” em Jerusalém, no contexto da “festa da Dedicação do Templo”, chamada,
em hebraico, “Hanûkkah”, e que celebra a purificação do Templo de Jerusalém
(164 a.C.), por Judas Macabeu, depois de o rei selêucida Antíoco IV Epifânio o
ter profanado (167 a.C.), edificando, ali, um altar a Zeus. O símbolo por
excelência dessa festa, a festa da Luz, é um candelabro de oito braços
(“hanûkkiyyah”), que vão sendo progressivamente acesos nos oito dias da festa.
Jesus tinha, pouco antes, curado um cego de nascença, assumindo-se como a Luz
que veio iluminar as trevas do Mundo.
Apesar do ambiente festivo, a relação entre Jesus e os
líderes judaicos é de grande tensão. Vendo a pressão dos líderes sobre o cego
de nascença, para que não abraçasse a luz, Jesus denuncia a forma como tratam a
comunidade, interessados em proteger os interesses pessoais e usando o Povo em
benefício próprio. São, pois, “ladrões e salteadores”, que tomaram de assalto o
rebanho que lhes foi confiado e roubam ao Povo a oportunidade de encontrar a Vida.
O evangelho desta dominga começa com a solene
apresentação que Jesus faz de si próprio: “Eu sou o Belo (Bom) Pastor”. O
adjetivo “belo” ou “bom” deve entender-se no sentido de “modelo” ou “ideal”. E
Jesus diz que o pastor modelo é capaz de dar a vida pelas suas ovelhas.
Jesus põe em confronto dois tipos de cuidadores do rebanho.
O primeiro tipo é o do pastor mercenário. O mercenário é contratado por
dinheiro. O rebanho não é seu e ele não ama as ovelhas que lhe foram confiadas.
Limita-se a cumprir contrato, fugindo de tudo o que ponha em perigo a sua vida
ou os seus interesses. O seu coração não está com o rebanho. Por isso, ao
sentir perigo, abandona o rebanho, a fim de salvaguardar os seus interesses
egoístas. O mercenário, se vê o lobo a preparar-se para atacar o rebanho, foge.
O lobo representa tudo o que põe em perigo a vida das ovelhas: interesses dos
poderosos, opressão, injustiça, violência e ódio do Mundo. Os dirigentes judeus
são “mercenários”. O outro tipo é o “Belo Pastor”. O pastor verdadeiro presta o
serviço por amor. Não está interessado em cumprir contrato, mas em fazer com
que as ovelhas tenham vida e sejam felizes. A prioridade é o bem delas. Ele
ama-as. Por isso, arrisca tudo em benefício do rebanho. Está disposto a dar a vida
pelas ovelhas, que ama e que podem confiar n’Ele. Jesus é o modelo do verdadeiro
pastor.
Depois, Jesus aprofunda a ligação do Belo Pastor com
as suas ovelhas. Conhece cada uma delas, tem uma relação pessoal e única com
cada, conhece-lhes os sofrimentos, os dramas, os sonhos e as esperanças. É relação
tão especial que é semelhante à relação de amor e de intimidade que tem com o próprio
Deus, seu Pai. Este amor, pessoal e íntimo leva Jesus a pôr a vida ao serviço
das suas ovelhas, e até a oferecê-la para que todas elas tenham Vida e Vida em
abundância. Quando as ovelhas estão em perigo, Ele não as abandona. A sua
atitude de defesa intransigente do rebanho é ditada por um amor sem limites,
que vai até ao dom de si próprio.
Mais adiante, Jesus diz quais são as suas ovelhas e
quem pode fazer parte do rebanho. Ao dizer “tenho ainda outras ovelhas que não
são deste redil e preciso de as reunir”, deixa claro que a sua missão não se
encerra nas fronteiras limitadas do Povo judeu, mas é universal e destina-se a dar
Vida a todos os povos da Terra. A comunidade de Jesus, a Igreja, não se esgota
numa determinada instituição nacional, social ou cultural, mas é comunidade sem
fronteiras, onde todos têm lugar. É comparável, como diz o Papa Francisco, à Capelinha
das Aparições do Santuário de Fátima, transparente e de portas abertas a todos,
todos, todos. O que é decisivo, para integrar a comunidade de Jesus, é acolher o
seu projeto. Nascerá, então, a comunidade única, cuja referência é Jesus e que
caminhará com Ele ao encontro da Vida eterna (“elas ouvirão a minha voz e
haverá um só rebanho e um só pastor”).
Por fim, Jesus revela que a sua missão se insere no
desígnio do Pai de dar Vida aos homens. Assume esse desígnio e dedica toda a
sua vida terrena a cumprir a missão que o Pai lhe confiou. Ao cumprir o projeto
de amor do Pai em prol dos homens, age de acordo com a sua condição de Filho. Ao
dar a sua vida, Jesus está cônscio de que não perde nada. O seu dom não termina
em fracasso, mas em glorificação. Para quem ama, não há morte, pois o amor gera
a Vida definitiva. A sua entrega não é acidente ou inevitável fatalidade, mas o
gesto livre de alguém que ama o Pai, ama os homens e escolhe o amor até às
últimas consequências. O seu dom, livre, gratuito e generoso, manifesta o seu
amor pelo Pai e pelos homens.
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A primeira
leitura (At 4,8-12) dá-nos
um testemunho de Pedro, proclamado em Jerusalém ante as autoridades judaicas:
Jesus é o único Salvador, já que “não existe debaixo do céu outro nome, dado
aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. É a forma particular de Pedro para
dizer que Jesus é o único pastor que nos conduz à Vida verdadeira.
O trecho em referência é, sobretudo, uma catequese
destinada aos crentes, mostrando-lhes como se deve concretizar o testemunho dos
discípulos sobre Jesus. A primeira indicação que Lucas dá é que Pedro estava
“cheio do Espírito Santo”. Os discípulos não estão sozinhos ou abandonados à
sua sorte, quando vão ao Mundo para anunciar a salvação. É o Espírito que os
conduz na missão, os orienta no testemunho e lhes dá a coragem necessária para
enfrentarem a hostilidade do Mundo. Cumpre-se a promessa de Jesus: “Quando vos
levarem às sinagogas, aos magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com
o que haveis de dizer em vossa defesa, pois o Espírito Santo vos ensinará, no
momento próprio, o que haveis de dizer” (Lc
12,11-12).
“Cheio do Espírito Santo”, Pedro – o paradigma do
discípulo que testemunha Jesus e o seu projeto ante o Mundo – passa de réu a
acusador. Os dirigentes judaicos, barrados pelos seus preconceitos e
interesses, catalogaram a doutrina de Jesus como contrária ao desígnio de Deus
e assassinaram Jesus, mas a ressurreição demonstrou que Jesus veio de Deus e
que o projeto d’Ele tem o selo de garantia de Deus. Ao ressuscitar Jesus, Deus
desautorizou os líderes religiosos de Israel e deu razão a Jesus. Citando um
salmo, Pedro compara a insensatez dos Judeus à cegueira do construtor que
rejeita como imprestável a pedra que vai aproveitada por outro construtor como
pedra principal. Jesus é a pedra base do projeto que Deus tem para o Mundo. A
prova é o paralítico que adquiriu a mobilidade pela ação de Jesus (“é por Ele
que este homem se encontra perfeitamente curado na vossa presença”). Os Judeus
rejeitaram Jesus, porque estão longe da lógica de Deus.
Pedro remata o discurso, garantindo que Jesus é a
fonte única de onde brota a salvação, ou seja, a libertação dos males físicos e
a salvação entendida como totalidade. Jesus (o nome hebraico “Jesus” significa
“Javé salva”) é o único canal por onde a salvação de Deus atinge os homens. É afirmação
contundente, porque é feita “olhos nos olhos” aos que condenaram Jesus como
blasfemo. E aos que aderiram a Jesus a exortação é a que sejam testemunhas da
salvação, levando o nome de Jesus a toda a parte, com toda a “parresía”, palavra
grega que significa audácia, valentia, contra o medo, contra a adversidade e a hostilidade
ambiente hostil e adverso.
***
A segunda
leitura, da 1.ª Carta de João (1Jo
3,1-2), convida-nos a contemplar o amor de Deus pelo homem. É porque nos
ama com “amor admirável” que Deus está apostado em levar-nos a superar a nossa
condição de debilidade e de fragilidade e nos enviou Jesus, o Belo Pastor. E, à
laia de prólogo à segunda parte da carta, o autor recorda aos cristãos que Deus
os constituiu seus “filhos”. Por detrás dessa iniciativa de Deus está o seu
imenso amor. O título de “filhos de Deus” que os crentes ostentam não é só título
honorífico, mas título que define a situação dos que são amados por Deus com um
amor “admirável” e que receberam de Deus Vida nova.
Ser “filho de Deus” implica estar em comunhão com Ele
e viver consoante com o seu desígnio. Os “filhos de Deus” realizam as obras de
Deus, ao passo que os “filhos do diabo” rejeitam a vida nova de Deus e não
praticam “a justiça, nem amam o seu irmão”.
A condição de “filhos de Deus”, que fazem as obras de
Deus, situa os crentes numa posição singular ante o “Mundo”. Vivendo em
conformidade com o desígnio de Deus, conduzem as suas vidas com valores
diferentes dos valores do “Mundo”, pelo que este irá ignorá-los e, mesmo,
persegui-los. Com efeito, o “Mundo” também recusou Cristo e a sua proposta de
salvação.
Apesar de serem já “filhos de Deus” desde o dia do Batismo
(o dia em que aceitaram a vida nova de Deus), os crentes continuam a caminho da
sua realização definitiva, a caminho do dia em que a fragilidade e a finitude
humanas serão superadas. Então, manifestar-se-á, nos crentes, a Vida plena. Os
crentes estarão em total comunhão com Deus e serão “semelhantes a Ele”. A
filiação divina é uma realidade que marca a caminhada dos seres humanos pela
Terra e que implica uma vida de coerência com as obras de Deus. Porém, só no
céu, depois de se libertar da sua condição de fragilidade, o crente conhecerá a
sua realização plena.
***
Têm razão os filhos de Deus, quais ovelhas amadas pelo
Belo Pastor, que deu a vida por elas, para cantarem, sobretudo em Tempo de
Páscoa:
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se
pedra angular.
2024.04.21 – Louro de Carvalho
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