Do recém-empossado
governo da Aliança Democrática (AD) é de esperar maior aposta na privatização
dos cuidados de saúde, sob o pretexto do défice de resposta do Serviço Nacional
de Saúde (SNS). Ganha, pois, oportunidade, uma leitura atenta do artigo “The effect of health-care
privatisation on the quality of care” (“O efeito da
privatização dos cuidados de saúde na qualidade dos cuidados”), de
Benjamin Goodair, publicado na revista Lancet,
a questionar as alegadas vantagens da privatização, de que respigam os aspetos
mais pertinentes.
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Nos últimos
40 anos, muitos sistemas de saúde, que eram propriedade pública ou financiados pelo
erário público, avançaram para a privatização, sobretudo pela externalização
para o setor privado. O principal objetivo era, alegadamente, melhorar a qualidade
dos cuidados pelo aumento da concorrência no mercado, juntamente com os
benefícios do setor privado, mais flexível e centrado no doente. Porém, surgiram
preocupações de que as reformas podiam resultar em piores cuidados, por ser
mais fácil reduzir custos do que aumentar a qualidade dos cuidados de saúde, e numerosos
estudos examinaram os efeitos na qualidade dos cuidados recebidos pelos doentes.
Em países de
elevado rendimento, os hospitais que passaram do público para o privado
tenderam a obter lucros mais elevados do que os públicos que não passaram,
sobretudo pela admissão seletiva de doentes e pela redução do número de funcionários.
Além disso, os aumentos agregados na privatização correspondem, não raro, a
piores resultados de saúde para os doentes. Poucos estudos avaliaram esta
reforma em todas as suas dimensões e há lacunas na literatura. Contudo, há evidências
que desafiam as justificações para a privatização dos cuidados de saúde, sendo fraco
o apoio científico a uma maior privatização dos serviços de saúde.
Desde os
anos 80, muitos serviços de saúde nacionalizados vêm procurando a privatização,
esperando que os mercados mistos e a inclusão de interesses privados melhorem a
qualidade a custo inferior ao do setor público. Embora haja muitas formas de
privatização, incluindo a transferência do financiamento do Estado para os
privados, a mais popular é a subcontratação ou externalização de
serviços. O governo mantém o poder de decisão, mas contrata uma organização
privada para prestar o serviço acordado. Embora o modelo seja apelativo, a sua
conveniência é contestada por quem aduz que os mecanismos de mercado não funcionam
eficazmente na saúde.
Os seus defensores
aduzem que a responsabilidade financeira obriga os privados a garantir o
bem-estar dos doentes, a inovar e a eliminar a burocracia desnecessária. Estes
motivos de lucro dariam a vantagem competitiva sobre o setor público, limitado
por culturas, por regulamentos rígidos e por poucos incentivos à inovação. E
os privados podem ter efeitos concorrenciais, melhorando o desempenho do
sistema, pois são incentivados a prestar serviços de qualidade, para ganharem a
confiança dos organismos que os contratam (sobretudo quando os preços são fixos,
em grande parte, o que sucede quando há comprador único, o governo).
Não obstante,
a motivação do lucro nem sempre dá os resultados desejados. Incentivar os privados
a priorizar a qualidade dos cuidados de saúde é desafiante para os organismos
públicos, pois a qualidade pode ser difícil de verificar e de ser prioritária.
A assimetria de informação surge quando os contratantes se esforçam por
identificar os níveis de qualidade e de desempenho dos prestadores. Os
mercados competitivos desencorajam os prestadores de revelar informações sobre
a qualidade dos serviços. Assim, os resultados observáveis (por exemplo, o
custo do serviço) podem ser prioritários, quando é difícil melhorar a qualidade,
em relação aos concorrentes.
Assim, nos
sistemas de saúde, a relação entre concorrência e qualidade é difícil de
identificar, se não houver dados fiáveis que a meçam. Na ausência de
incentivos corretos para que os prestadores privados priorizem a qualidade dos
cuidados, podem adotar-se políticas que façam sacrifícios marginais na
qualidade, em troca de reduções nos custos, como a redução do pessoal, a
diminuição dos salários, a escolha seletiva de doentes rentáveis, a prescrição
excessiva de serviços ou a alta prematura de doentes.
Anteriores
análises centraram-se nos efeitos da propriedade dos hospitais na qualidade, de
forma transversal, isto é, comparando os resultados de prestadores públicos e de
privados. Estes comportam-se de forma diferente daqueles. No entanto, esta
asserção não é absoluta. Com efeito, as análises transversais, quanto à
propriedade, nem sempre identificam um grupo de comparação que preste serviços
semelhantes a tipos de doentes semelhantes. O setor privado trata, em geral, pessoas
mais saudáveis em sistemas de saúde em que alguns serviços são prestados pelo
Estado e outros pelos privados. Os indivíduos que acedem a cuidados de saúde
privados tendem a ter mais recursos e melhor saúde. Por isso, ao comparar
resultados em hospitais públicos e privados, é difícil controlar o enviesamento
dos doentes menos graves que são selecionados em hospitais privados e que têm
melhores resultados, não devido à qualidade, mas devido ao estado de saúde
subjacente desses doentes. O efeito da propriedade é só parte da justificação
para privatizar.
Por outro
lado, a concentração no tipo de propriedade esquece o facto de a concorrência
entre prestadores dever produzir efeitos indiretos positivos na qualidade dos
cuidados prestados pelos prestadores públicos. Se a externalização funcionar
como os defensores teorizam, os prestadores públicos melhorarão a sua qualidade,
aprendendo com os prestadores inovadores do setor privado, ou devido a motivação
intrínseca para evitar perder contratos para os privados. E a concorrência permitirá
que os contratantes sejam mais exigentes no processo de contratação. Assim,
quaisquer diferenças entre prestadores públicos e privados podem ser
tendenciosas para compreender todos os efeitos do crescimento das
externalizações.
A nível
ecológico, elevadas taxas de privatização e de externalização corresponderam,
quase sempre, a piores resultados em termos de saúde. Analisados os níveis
regionais de privatização para um país inteiro, concluiu-se que o aumento da
percentagem de externalização correspondia a taxas de mortalidade evitáveis
mais elevadas do que antes da externalização. E, avaliadas as taxas de
mortalidade em populações encarceradas, encontraram-se taxas de mortalidade
evitáveis mais elevadas, à medida que aumentava a proporção de cuidados de
saúde externalizados. Além disso, os serviços de limpeza externalizados
correspondiam a taxas mais elevadas de infeção hospitalar do que os serviços de
limpeza internos.
Foram
encontrados resultados mais matizados na Suécia, quando os resultados em termos
de hospitalizações evitáveis melhoraram em todo o país, após a reforma de
privatização dos cuidados primários. O estudo não mostrou uma variação
dose-resposta – isto é, as áreas reformadas primeiro ou que tiveram os maiores
aumentos de prestadores privados não mostraram as maiores melhorias na
qualidade. Por isso, este fator não é atribuível a causa conhecida.
Até agora, nenhum
dos estudos descobriu que o aumento da privatização correspondia a melhores
resultados de saúde para os doentes.
Alguns
estudos avaliaram o pessoal como medida intrínseca da provável qualidade dos
cuidados recebidos pelos doentes ou em termos das condições de emprego do
pessoal. Vários artigos mediram a diferença relativa das taxas de contratação
de pessoal antes e depois da privatização dos hospitais. Em geral, os
estudos concluíram que a externalização correspondia a um menor número de
efetivos por doente. O mesmo se verificou em relação ao pessoal de
limpeza. Todavia, o efeito variava consoante o tipo de pessoal. Por exemplo, só
os enfermeiros mais qualificados tiveram números reduzidos nos hospitais
externalizados, em comparação com os hospitais públicos, nos Estados Unidos da
América (EUA). E, nos estudos que mediram o número de médicos, este valor
não foi reduzido após a privatização, ao passo que a maioria das outras
categorias de pessoal o foi.
Alguns
artigos analisaram os resultados para os trabalhadores, tais como salários,
contratos e saúde dos trabalhadores. No Canadá, a externalização dos serviços
de alimentação e de limpeza correspondeu a menor número de lesões conexas com o
trabalho e a períodos mais curtos de baixa por cada lesão conexa com o trabalho
(bem como a algumas que se mantiveram inalteradas). Um estudo qualitativo
de acompanhamento sugeriu que a probabilidade de subnotificação destes incidentes,
após a privatização, dificultou a interpretação dos dados e discutiu as
incertezas sobre se a privatização melhorou as condições de trabalho ou se
apenas suprimiu a comunicação de dados. Outro artigo avaliou as alterações
na desigualdade salarial, na segurança do emprego e na carga de trabalho na
Coreia do Sul, tendo encontrado piores resultados em todos estes domínios nos
serviços privatizados, em comparação com os não privatizados.
Dois artigos
que avaliaram a conversão de hospitais públicos em privados, nos EUA,
concluíram que os hospitais se tornaram menos acessíveis, após a conversão,
porque a combinação de casos mudou para doentes mais rentáveis e porque o
número de serviços prestados foi reduzido. Porém, a conversão das práticas de
cuidados primários, na Croácia, em propriedade privada teve resultados mais positivos
– os doentes recebem horários de consulta mais precisos e acedem aos cuidados
de saúde através de novos meios, como chamadas telefónicas fora de horas. Em
geral, os resultados sugerem que o acesso aos cuidados de saúde pode ser
afetado de diferentes formas, com horários de marcação precisos e tempos de
espera reduzidos, mas com efeitos que podem prejudicar os grupos cujos tratamentos
têm baixos lucros para o setor privado.
Os estudos
centrados em resultados financeiros podem ter conclusões diferentes. Contudo,
verificou-se a tendência para o aumento das margens de lucro dos hospitais, que
passaram a ter fins lucrativos e que tiveram, em média, desempenho financeiro
pior do que os hospitais que permaneceram públicos. Talvez haja um efeito de seleção,
pelo que é necessário trabalhar mais para compreender melhor os efeitos no
desempenho financeiro.
Enfim, há um pequeno número de estudos que abordam o efeito da privatização na qualidade
dos cuidados oferecidos pelos prestadores de cuidados de saúde, mas o quadro é consistente.
No mínimo, a privatização dos cuidados de saúde quase nunca teve efeito positivo
na qualidade. E a terceirização não é benigna, pois reduzirá custos, mas em
detrimento da qualidade. Globalmente, a análise fornece provas que desafiam a
justificação para a privatização da saúde e conclui que o apoio científico para
maior privatização dos serviços de saúde é fraco.
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A
este respeito, diz o constitucionalista Vital Moreira que “a ineficiência do
SNS, entre nós”, tal como “o argumento ideológico contra ele”, leva ao “triunfo
da opção privatizadora”.
Vital Moreira, respondendo a um leitor segundo o qual “as PPP [parcerias público-privadas]
na gestão de hospitais do SNS (Braga, Loures, etc.) provaram ser vantajosas,
justificando-se o seu regresso”, refere que a
hostilidade às PPP, no I Governo de António Costa, não contara com o seu
apoio, como em tempo explanou, por serem “um bom exercício de benchmark
competition para a gestão pública, cuja ineficiência é um dos
principais handicaps do SNS, e que a reforma, há pouco
iniciada – diretor executivo do SNS, instituição das ULS [Unidades Locais de Saúde],
regime de ‘dedicação plena’, etc., – pode melhorar, se não for interrompida”.
Porém, receia que, “em vez de apostar na melhoria da eficiência do SNS”,
o governo “prefira usar a ineficiência existente como pretexto para os seus projetos
de privatização, que não se limitam às PPP…”.
Em minha
opinião, privatizar corresponde à tendência de os governos se desresponsabilizarem
dos setores que promovem o Estado social: Educação, Saúde, Segurança Social,
etc. Depois, a asserção, assaz repetida, de que os privados gerem melhor faz
escola. Mais: os privados, pagam melhor, no imediato, e “selecionam” mais os
doentes. Além disso, ao enunciarem-se as vantagens do setor privado, esquecem-se
as suas limitações. Ora, a questão resolve-se com a atratividade das carreiras
e com a concorrência, por um lado, e com a cooperação, por outro, com os
setores privado, social e solidário. Isso gera mais despesa estrutural? Paciência!
Vivemos num país de pessoas cada vez mais envelhecidas e frágeis, a que o SNS
tem de dar resposta condigna.
2024.04.02 – Louro de Carvalho
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