A Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Páscoa, no Ano
B, fala-nos de Jesus Cristo como a fonte da Vida, de que bebem, unidos a Ele,
os discípulos feitos apóstolos, para testemunharem essa Vida em gestos
concretos de amor.
No trecho
evangélico desta dominga (Jo 15,1-8), que integra o seu discurso de despedida, Jesus apresenta-se
como “a verdadeira vide” e convida os discípulos a permanecerem ligados a Ele
para receberem a Vida. Jesus, a videira, e os discípulos, os sarmentos, não se
ficam na mera decoração do espaço, mas produzirão frutos bons, os que Deus
espera. Enquanto se mantiverem unidos a Jesus, os discípulos serão testemunhas
verdadeiras, entre os homens, da Vida nova de Deus.
Estamos em Jerusalém, na noite de quinta-feira, antes
da celebração da Páscoa judaica, cerca do ano 30. Jesus, reunido com os
discípulos à volta da mesa, está cônscio de que os dirigentes judaicos
decidiram dar-Lhe a morte e de que a cruz estava no horizonte próximo. Assim,
Jesus mandou organizar a ceia de despedida, a preparar os discípulos para o drama
que se avizinhava. Não queria que a sua morte os lançasse no caos da desesperança.
Naquele momento, várias questões pairavam no ar. Os
discípulos tinham de concretizar o Reino de Deus. Viveriam no Mundo e
testemunhariam o que tinham aprendido enquanto caminhavam atrás de Jesus. Podiam
e tinham de manter a ligação a Jesus e de continuar a receber d’Ele a Vida de
que necessitavam para continuarem a caminhada. Por isso, Jesus conversou
longamente com eles e deu-lhes preciosas indicações. Seriam uma comunidade de
serviço, poriam no centro de tudo o mandamento do amor (que os identificaria perante
o Mundo), teriam o Espírito Santo e a sua paz, nunca ficariam abandonados nem
órfãos e continuariam unidos a Ele e entre si. As palavras e os gestos de Jesus,
naquela hora, são o seu “testamento”.
O trecho em referência, designado como a “alegoria da
videira (ou vide) e dos ramos”, integra o “discurso de despedida”. Esta
alegoria tem profundas conotações veterotestamentárias e assume grande significado
no universo religioso judaico. No Antigo Testamento – sobretudo nos Profetas –
a videira e a vinha eram símbolos do Povo de Deus. Israel era como que a
videira que Javé arrancou do Egito, que transplantou para a Terra Prometida e
da qual sempre cuidou com amor. Era a vinha que Deus plantou com cepas
escolhidas, de que Ele cuidou e da qual esperava frutos abundantes, mas que só
produziu frutos amargos e impróprios. A antiga videira ou vinha de Javé
revelou-se uma verdadeira desilusão: não produziu os frutos que Ele esperava.
Jesus apresenta-Se como a verdadeira videira, a que
estão ligados os ramos, que são os seus discípulos. Esta videira, com estes
ramos, forma, portanto, o novo Povo de Deus. Da ação criadora e vivificadora de
Jesus nasce o novo Povo de Deus, a comunidade do Reino. Deus continua a ser o
agricultor que trata bem a sua vinha. Desta união vital nascerão bons frutos,
os frutos que Deus espera, os mesmos que Jesus produziu quando andava pelos
caminhos da Galileia e da Judeia a anunciar o Reino de Deus, a curar os
doentes, a libertar os que viviam prisioneiros, a dar Vida a todos os que
estavam privados de Vida. Se algum dos ramos não der bons frutos, o agricultor
(Deus) terá de o cortar. Esse ramo não recebe Vida da videira ou não deixa que
essa Vida se traduza nos frutos que Deus espera. Está, assim, a autoexcluir-se
da comunidade de Jesus.
Em contrapartida, Deus, o agricultor, cuidará de todos
os ramos que dão bons frutos, para que, pelo processo de limpeza (conversão)
nunca terminado, se libertem, cada vez mais, do egoísmo e deem frutos, cada vez
mais abundantes, de amor e de Vida.
Para que o dinamismo de Vida se concretize, os ramos
devem permanecer ligados à videira, pois, como não têm vida própria, não podem produzir
frutos por si próprios, mas precisam da seiva da videira. Têm, pois, os
discípulos de permanecer em Jesus. O verbo “permanecer” (“ménô”) é uma das
palavras-chave do texto (do v. 4 ao v. 8, aparece sete vezes), que exprime a
confirmação ou renovação de atitude já antes assumida. Supondo que o discípulo já
tenha aderido a Jesus, pretende-se que a adesão adquira solidez, estabilidade,
constância e continuidade. É um convite a que o discípulo mantenha a adesão a
Jesus e a identificação e a comunhão com Ele. Se o discípulo mantiver a sua
adesão, Jesus permanece no discípulo, isto é, continuará fielmente a oferecer
ao discípulo a sua Vida, o seu Espírito.
O discípulo permanece em Jesus, se continua a escutar
as suas palavras, a acolhê-las no coração, a pautar a sua vida por elas, a ver
os gestos que Ele fazia e a desenhar, a partir deles, o seu estilo de vida. O
discípulo permanece em Jesus, se não O perde de vista e caminha atrás d’Ele,
numa adesão todos os dias renovada. Há uma asserção de Jesus, no “discurso do
Pão da Vida”, que pode iluminar o sentido do permanecer unido a Jesus: “Quem
realmente come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele” (Jo 6,56). A carne de Jesus é a sua vida,
o seu sangue é a sua entrega por amor até à morte. Assim, “comer a carne e
beber o sangue” de Jesus é assimilar a sua existência, feita serviço e entrega
por amor, até ao dom total de si; é comprometer-se com uma existência feita
entrega a Deus e aos irmãos, até à doação completa da vida por amor. E a Eucaristia,
em que comemos a carne e bebemos o sangue de Jesus, é a celebração renovada da
nossa comunhão e do nosso compromisso com Jesus.
É preciso frisar que a união com Jesus não é
automática, que chega no Batismo e que fica para sempre. Depende, antes, da
decisão livre e consciente do discípulo, que tem de ser continuamente renovada
e assumida.
É possível que os discípulos se mantenham ligados a
Jesus e recebam d’Ele Vida, mesmo depois de Ele deixar de caminhar fisicamente
no meio deles, porque Ele lhes garantiu que seria sempre a “verdadeira videira”
onde os discípulos (os “ramos”) encontram Vida em abundância. Porém, os
discípulos têm de permanecer ligados a Jesus, de continuar a escutar as suas
indicações e de continuar a assumir, em cada passo da vida, o seu estilo de
viver e de amar.
***
A primeira
leitura (At 9,26-31), ao relatar a inserção de Paulo de Tarso na comunidade
cristã de Jerusalém, lembra-nos que a experiência cristã se constrói em
comunidade. É no diálogo e na partilha com os irmãos que a fé nasce, cresce e
amadurece. A comunidade cristã deve ser a casa de portas abertas, onde todos
têm lugar e podem fazer, de mãos dadas com os outros irmãos, a experiência de
encontro com o Ressuscitado.
O trecho em apreço situa-nos em Jerusalém, logo após o
regresso de Paulo. Inclui, num versículo final, um breve sumário da vida da
Igreja, como tantos outros, através dos quais Lucas faz um balanço da situação
e prepara os temas que vai tratar nas secções seguintes.
Na sua narração, o autor dos Atos dos Apóstolos apresenta um conjunto de informações históricas
sobre o acolhimento de Paulo pela comunidade de Jerusalém, após a sua fuga de
Damasco. Porém, Lucas, além das informações históricas, deixa entreler algumas
interrogações e desafios aos membros das comunidades cristãs – do seu tempo e
de todos os tempos e lugares – sobre a forma de viver e de testemunhar, em
comunidade, a fé em Jesus.
A desconfiança dos cristãos de Jerusalém em relação a
Paulo (“todos o temiam, por não acreditarem que fosse discípulo”) decorre do
que os cristãos de Jerusalém sabiam do passado de Paulo. Todavia, sem ser
demasiado direto, Lucas põe as comunidades cristãs de sobreaviso para um perigo
real: o medo do risco, a excessiva prudência e a instalação nos velhos esquemas
de sempre, podem ser obstáculos ao acontecer do hoje de Deus. Se a comunidade
cristã de Jerusalém tivesse decidido, por medo ou prudência excessiva, fechar
as portas a Paulo, tê-las-ia fechado ao dom de Deus e à novidade do Espírito, o
que teria empobrecido imenso a Igreja de Jesus.
O esforço de Paulo em integrar-se (“chegou a Jerusalém
e procurava juntar-se aos discípulos”) mostra a importância que dava ao viver
em comunidade, à partilha da fé. O cristianismo não é só encontro pessoal com
Jesus; é também a experiência de partilha da fé e do amor com os irmãos que
aderiram ao mesmo projeto e que são membros desta grande família. No diálogo e
na partilha comunitária, questionamos os limites dos entendimentos pessoais,
enriquecemo-nos com a experiência dos irmãos, ajudamo-nos mutuamente a vencer
as dificuldades, discernimos as sendas do Espírito e purificamos a nossa
experiência de fé.
O papel de Barnabé na integração de Paulo é
significativo (“Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos apóstolos e contou-lhes
como Saulo, no caminho, tinha visto o Senhor”): acredita em Paulo e leva a
comunidade a acolhê-lo. Mostra o papel de cada cristão na integração comunitária
dos irmãos, inclusive dos que, pelo seu percurso de vida, foram rotulados e
afastados, e mostra que é tarefa do crente questionar a comunidade e ajudá-la a
descobrir os desafios sempre novos de Deus.
Fica realçado o entusiasmo com que Paulo dá testemunho
de Jesus e a coragem com que enfrenta as dificuldades e oposições resultantes do
seu testemunho – atitude que vai caraterizar toda a sua vida apostólica. O verdadeiro
encontro com Jesus resulta no testemunho do Evangelho. Paulo está consciente de
que foi chamado por Jesus, de que recebeu de Jesus a missão de anunciar a
salvação a todos os homens, pelo que nada nem ninguém será capaz de arrefecer o
seu zelo no anúncio do Evangelho. E Lucas sugere, com esta notícia, que todos os
que se encontram com Jesus devem tornar-se testemunhas credíveis e corajosas do
Evangelho. É verdade que a pregação cristã suscita o conflito com os poderes
interessados em perpetuar as trevas, a mentira, a opressão. A fidelidade ao
Evangelho e a Jesus provoca sempre a oposição de quem teme a luz e a verdade. O
caminho do discípulo de Jesus é um caminho marcado pela cruz (não caminho de
morte, mas de Vida). E os discípulos, cônscios disto, não se deixem paralisar
pelo medo.
O sumário final recorda um elemento que está sempre
presente no horizonte da catequese lucana: é o Espírito Santo que conduz a
Igreja na sua marcha pela história. É Ele que lhe dá estabilidade (“como um
edifício”), lhe alimenta o dinamismo (“caminhava no temor do Senhor”) e a faz
crescer (“ia aumentando”). E esta certeza deve fundamentar a nossa esperança.
***
O texto da segunda leitura (1Jo 3,18-24) pertence a uma secção que
poderíamos intitular “Viver como filhos de Deus” (1Jo 3,1-24) e
conclui a reflexão sobre o amor aos irmãos, apresentado como consequência da
filiação divina.
Na base da vida cristã está o “acreditar em Jesus” e o
amar os irmãos “como Ele mandou”. São esses os “frutos” que Deus espera de
todos os que estão unidos a Cristo. Se testemunharmos em gestos concretos o
amor de Jesus, estamos unidos a Jesus e a vida de Jesus circula em nós.
No versículo que antecede o trecho em apreço, a Carta
interpela os crentes: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão
com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode
permanecer nele?” (1Jo 3,17). E, logo
a seguir, conclui que o amor aos irmãos não se manifesta em declarações de boas
intenções, mas em gestos concretos de partilha e de serviço, em prol dos irmãos.
E é assim que se revela a autenticidade da vivência cristã e se dá testemunho
do desígnio salvador de Deus.
Se deixamos o amor conduzir a nossa vida, estamos no
caminho da verdade. Com o coração aberto ao amor, ao serviço e à partilha, estamos
tranquilos porque estamos em comunhão com Deus. Pode a consciência acusar-nos
dos erros passados e reprovar algumas das nossas opções; mas, se amarmos,
estamos perto de Deus, pois Deus é amor. O amor liberta-nos de todas as dúvidas
e inquietações, pois dá-nos a certeza de que estamos na rota de Deus; e se Deus
“é maior do que o nosso coração e conhece tudo”, nada temos a recear. Viver no
amor é viver em Deus e estar entregue à sua bondade e à misericórdia. Com a
consciência em paz e sabendo que Deus nos acolhe e ama (porque acolhemos o amor
e nele vivemos), podemos dirigir-Lhe a oração, certos de que Ele nos escuta,
pois atende a oração daquele que cumpre os seus mandamentos.
Os dois versículos finais recapitulam o que ficara
dito. A exigência basilar da via cristã é crer em Jesus e amar os irmãos. Crer
em Jesus e cumprir o mandamento do amor são a mesma questão. Quem guarda os
mandamentos (especialmente o do amor, que tudo resume) vive em comunhão com
Deus e já possui algo da natureza divina (o Espírito). É o Espírito de Deus que
dá aos crentes a possibilidade de produzirem obras de amor.
2024.04.28 – Louro de Carvalho
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